4. DAS MODALIDADES
A doutrina adota critérios variados para apresentar a classificação das obrigações segundo suas modalidades. Acolhe-se neste trabalho, ante a organização didática, a classificação apresentada por Maria Helena Diniz. Para essa autora, a fiança pode ser: (i) em relação ao objeto: civil ou comercial; (ii) quanto à forma: convencional, legal ou judicial[33].
É civil a fiança cuja obrigação garantida não tem natureza mercantil ou não seja o afiançado empresário. Caso contrário, tem-se a fiança mercantil. A principal importância dessa distinção era saber que na primeira o fiador tinha a seu favor o benefício de ordem, o que não se verificada na segunda. Porém, com a edição código civil vigente, caiu por terra essa relevância, já que ambos os institutos passaram a ter o mesmo regramento. Assim, tem-se que o fiador, quer em fiança civil, quer em fiança mercantil, goza do benefício de ordem, pelo qual tem direito de ver a obrigação ser exigida primeiramente do afiançado.
A fiança convencional ou contratual é “aquela oriunda espontaneamente da vontade das partes (credor e fiador), mesmo sem a anuência do devedor afiançado[34]”. Esta consiste no tema principal deste trabalho, a ela se aplicando na íntegra todos os conceitos e características apresentados.
A fiança legal, como sugere a própria designação, decorre de imposição da lei. Leciona Arnaldo Rizzardo que essa fiança “é firmada antes de iniciar-se um ato jurídico, ou antes de uma pessoa entrar na posse de alguma coisa, como na entrega de bens de ausente ou incapazes a um curador”. Outros exemplos são citados por Maria Helena Diniz, como os previstos nos arts. 1280 (fiança exigível, por proprietário de prédio, de vizinho que tenha direito de fazer obras), 1305, parágrafo único (fiança exigível, pelo dono de parede divisória, do vizinho que nela pretenda fazer alicerce) e 260, II (fiança prestada, por um dos credores, ao(s) devedor(es) de obrigação indivisível), do Código Civil[35].
Por sua vez, a fiança judicial é a determinada pelo juiz, de ofício ou a requerimento das partes. É caracterizada por ser prestada pelo próprio devedor, traduzindo uma “exigência processual”[36]. Como exemplo, a doutrina indica os artigos 925 e 940 do Código de Processo Civil:
“Art. 925 Se o réu provar, em qualquer tempo, que o autor provisoriamente mantido ou reintegrado na posse carece de idoneidade financeira para, no caso de decair da ação, responder por perdas e danos, o juiz assinar-lhe-á o prazo de 5 (cinco) dias para requerer caução sob pena de ser depositada a coisa litigiosa
[...]
Art. 940 O nunciado poderá, a qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição, requerer o prosseguimento da obra, desde que preste caução e demonstre prejuízo resultante da suspensão dela”.
Segundo Silvio de Salvo Venosa, a fiança legal e a fiança judicial, diferentemente da convencional, constituem ato unilateral, sem conteúdo contratual, muito embora possam valer-se do regramento da fiança convencional em caso de ausência de norma específica[37].
O autor aborda, ainda, sobre a fiança criminal, prevista no Código de Processo Penal, afirmando que ela “não é pessoal, mas pecuniária, amoldando-se ao conceito de caução real”[38]. Essa fiança, preconizam Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona, “garante não o cumprimento de uma prestação patrimonial, mas, sim, o direito à liberdade do acusado, na efetivação da presunção de sua inocência até o trânsito em julgado do processo penal correspondente”[39].
Arnaldo Rizzardo aponta como modalidades também a fiança fiscal e a fiança bancária, previstas, respectivamente, nos art. 4º, inc. II, e 9º, II, da Lei nº 6.830 de 22 de setembro de 1980 (Lei de execução fiscal), a primeira, permitindo a execução fiscal da dívida contra o fiador, e a segunda, possibilitando que o executado ofereça garantia da execução[40].
5. DOS EFEITOS
A fiança, como dito alhures, é contrato firmado entre o credor e o fiador, vale dizer, não tem, como elemento indispensável, a participação do devedor afiançado, podendo, inclusive, ser estabelecido contra a sua vontade. Todavia, no estudo dos efeitos da fiança o devedor tem posição certa, justificando sua qualificação como interessado no contrato.
Assim, tem-se na sempre atual lição de Orlando Gomes que a fiança produz efeitos de duas ordens, a saber: “a) relações entre o credor e o fiador; b) relações entre o afiançado e o fiador”[41].
Passa-se à análise de ambas em tópicos específicos, a seguir.
5.1 Dos efeitos decorrentes das relações entre credor e fiador
Dessas relações, exsurge como efeito maior, e que mais caracteriza a ideia que se tem de fiança, o denominado benefício de ordem ou de excussão, previsto no art. 827 do Código Civil, segundo o qual o “fiador demandado pelo pagamento da dívida tem direito a exigir, até a contestação da lide, que sejam primeiro executado os bens do devedor”. Daí, falar-se que o fiador é “um sujeito passivo de segundo grau”[42].
Extrai-se, pois, do próprio dispositivo a natureza jurídica desse instituto. Trata-se, materialmente, de direito subjetivo do fiador, corolário da subsidiariedade e da acessoriedade da fiança[43]. No direito processual, pode ser definido como uma exceção[44], latu sensu, uma defesa à disposição do fiador, a quem compete invocá-la, já que não se opera pleno iure[45].
Para viabilizar o exercício dessa faculdade, o Código de Processo Civil prevê, como modalidade de intervenção de terceiros, o chamamento ao processo, regulado nos artigos 77 a 80 do diploma.
A invocação do benefício de ordem, contudo, pressupõe a observância de duas condições pelo fiador. A primeira, já referida no dispositivo citado, é de caráter temporal, ou seja, refere-se ao momento em que o fiador deve exercer o direito – “até a contestação da lide”.
A essência dessa condição é apresentada por Arnaldo Rizzardo, citando Clóvis Beviláqua, segundo o qual:
“Supõe a lei que o credor, como é de direito seu, vencida a obrigação e não recebendo o seu pagamento, aciona o fiador. Este defende-se com a dilatória do benefício de ordem ou de excussão. Mas já não o poderá invocar, utilmente, se a lide estiver contestada, porque, então, entende-se que o pleito está, definitivamente, travado e seria injusto gravame imposto ao credor permitir que todo o seu esforço, tempo e dispêndio com o processo resultassem, à última hora, perdidos pelo benefício concedido ao fiador”[46].
Embora com outras palavras, o ilustre projetista do Código Civil de 1916 refere-se à situação semelhante ao que hodiernamente se denomina estabilização subjetiva da demanda, que impede a alteração das partes de um processo a partir de determinado momento.
A segunda condição está prevista no parágrafo único do art. 827 do Código Civil vigente, e impõe uma conduta positiva ao fiador, qual seja, “nomear bens do devedor, sitos no mesmo município, livres e desembargados, quantos bastem para solver o débito”.
Novamente, convém trazer à baila a mens legis revelada por Clóvis Beviláqua, referido por Arnaldo Rizzardo:
“É outra atenuação equitativa dos efeitos, que poderia ter sobre os legítimos interesses do devedor, o benefício de ordem. Se a fiança foi prestada para assegurar a solução da dívida, o fiador terá de solvê-la, desde que o devedor principal não possua bens com que se desobrigue. Nisto consiste o benefício de ordem; mas a lei, que o concede, impõe ao fiador a obrigação de demonstrar que o benefício pode ser invocado, pois que o devedor está em condições de pagar, isto é, possui bens em quantidade suficiente para satisfação do débito”[47].
Esse benefício estabelece, portanto, a regra vigente no contrato de fiança, segundo a qual a responsabilidade do fiador perante o credor é subsidiária, e não solidária. Contudo, o Código Civil, no art. 828, prevê as exceções a essa regra, situações em que o fiador não poderá invocar o benefício de ordem. Assim, não gozará do benefício o fiador: a) que dele houver renunciado expressamente no contrato; b) que houver se obrigado como principal pagador, ou devedor solidário; c) que cair em insolvência ou falência.
Verifica-se que as hipóteses previstas nos itens “a” e “b” decorrem da manifestação do próprio fiador, abdicando de um benefício que é inerente à natureza do contrato. Daí, defende a doutrina de Flávio Tartuce[48], embasada no art. 424 do Código Civil e no princípio da função social do contrato, não ser válida essa renúncia no caso de contrato de fiança por adesão.
No mesmo sentido, o Enunciado nº 364 do Conselho da Justiça Federal consigna que “no contrato de fiança é nula a cláusula de renúncia antecipada ao benefício de ordem quando inserida em contrato de adesão”.
Outro efeito decorrente do vínculo existente entre fiador e credor diz respeito à situação em que mais de uma pessoa presta fiança ao mesmo débito, consoante disposto no art. 829 do Código Civil. É a denominada fiança conjunta. Nesses casos, tem-se a figura dos cofiadores, os quais, inexistindo previsão quanto à divisão da responsabilidade entre eles pelo débito, serão igualitária (concursu partes fiunt[49]) e solidariamente[50] responsáveis, entre si, pelo adimplemento da obrigação. Essa divisão de responsabilidade é chamada de benefício da divisão.
Sobre o instituto, leciona Maria Helena Diniz:
“O benefício da divisão só existirá se houver estipulação. E, uma vez convencionado o benefício da divisão, cada fiador só responderá pro rata pela parte que, em proporção, lhe couber no pagamento. P. ex., se a dívida for de 90 mil, sendo dois fiadores, que estipularam tal benefício, o credor só poderá exigir 45 mil de cada um, havendo inadimplemento do devedor (CC, art. 929, parágrafo único)”[51].
Situação distinta verifica-se quando tais cofiadores pactuam determinado limite da reponsabilidade para cada fiador, circunstância em que não haverá a distribuição proporcional da responsabilidade, mas cada um responderá pelo quantum expressamente assumido. É o que consta do art. 830 do Código Civil.
Conforme dito, ausente o benefício da divisão entre os cofiadores, tem-se estes por responsáveis solidários entre si. Em consequência, para evitar o enriquecimento sem causa, o cofiador que pagar a dívida integralmente tem ação regressiva contra os demais cofiadores, vale dizer, aquele se sub-roga no direito do credor em face destes, os quais serão responsabilizados na medida de suas respectivas quotas. Trata-se do benefício da sub-rogação, ou tecnicamente, uma hipótese de sub-rogação legal[52]. E, na qualidade de sub-rogado, pode o fiador, Segundo Arnold Wald:
“...obter não só a devolução do que pagou como ainda os juros do desembolso pela taxa legal estipulada na obrigação principal e, na falta de estipulação, de acordo com a taxa legal, e, finalmente a indenização de perdas e danos e de tudo que sofreu em virtude da fiança (arts. 831 a 833 do CC)[53]”.
Essa pretensão do sub-rogado, com vistas a evitar o enriquecimento sem causa dos demais cofiadores, deve ser exercida no prazo prescricional de três anos, nos termos do art. 206, §3º, IV, do Código Civil.
Ressalta Silvio de Salvo Venosa, contudo, que “não há sub-rogação se o pagamento feito pelo fiador foi com ânimo de doação, que depende de exame do caso concreto”[54].
Seja na responsabilidade solidária entre os cofiadores, seja na estipulação do benefício da divisão, caindo em insolvência um dos fiadores, a sua responsabilidade será distribuída entre os demais, conforme prevê o art. 831, parágrafo único, da lei substantiva.
Maria Helena Diniz relaciona como também efeito da relação jurídica em destaque a circunstância de que “o credor só poderá exigir a fiança no termo fixado para a obrigação principal”[55]. Como já visto algures, não há óbice a que uma obrigação futura ou mesmo condicional venha constituir objeto de contrato de fiança. Em tais casos, enquanto não se verificar líquida, certa e exigível a obrigação principal, nada poderá o credor fazer para obrigar o fiador.
Por fim, a título de efeito da relação em análise, tem-se a faculdade de o fiador “opor ao credor as exceções que lhe forem pessoais, e as extintivas da obrigação que competem ao devedor principal, se não provierem simplesmente de incapacidade pessoal, salvo o caso do mútuo feito a pessoa menor”, nos termos do art. 837 do diploma material.
Deixa-se de traçar maiores considerações quanto à incapacidade pessoal do devedor, posto que já abordada anteriormente. Como exceções pessoais passíveis de alegação pelo fiador, elenca Arnaldo Rizzardo[56], “a incapacidade para ser fiador, a nulidade da fiança, a exoneração pela decorrência do prazo, pela motatória, etc”. A título de causa extintiva da fiança, destaca o autor, “a prescrição, a compensação, a novação feita sem consenso do fiador com o devedor originário” entre outras.
Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona indicam, como exeções pessoais, os vícios de consentimento na celebração do contrato principal, a compensação, a confusão e a remissão; e, como exceções impessoais, a incorreção de valores, taxa de juros e a prescrição[57].
5.2 Dos efeitos decorrentes das relações entre afiançado e fiador
O primeiro efeito destacado na doutrina de Orlando Gomes é o já referido benefício da sub-rogação, no entanto, este é exercido pelo fiador que paga a dívida em face do afiançado, devedor da obrigação principal. São asseguradas a esse fiador as mesmas pretensões já analisadas que tem o cofiador sub-rogado contra os demais cofiadores. São elas, na lição do citado autor:
“a) obter o ressarcimento de todas as perdas e danos resultantes do pagamento;
b) ser indenizado dos prejuízos sofridos em razão de fiança;
c) ser reembolsado dos juros correspondentes ao capital que desembolsou para pagar a dívida”[58].
O benefício da sub-rogação está previsto no art. 831 do Código Civil ao dispor que “o fiador que pagar integralmente a dívida fica sub-rogado nos direitos do credor”. Nada obstante a lei falar em pagamento integral, a doutrina é pacífica no sentido de que “o fiador que pagar somente uma parte da dívida, mesmo que obrigado à totalidade, não fica impedido de receber a cifra desembolsada[59]”. No mesmo sentido, é a lição de Silvio Venosa[60] e Carlos Alberto Bittar[61]. Tem-se, nesse caso, a sub-rogação legal parcial.
Impende registrar que não se aplica a sub-rogação em face do devedor a limitação presente na sub-rogação contra os cofiadores, na medida em que o fiador, no primeiro caso, não tem que observar qualquer quota, já que o devedor é titular do débito em sua integralidade, e por todo ele pode ser demandado pelo fiador.
Todavia, a professora Maria Helena Diniz apresenta situações em que o exercício desse direito de ação regressiva do fiador sub-rogado é flexibilizado, mesmo diante do afiançado. Leciona a mestre da PUC/SP:
“...não haverá tal direito regressivo se: o fiador, pagando o débito, não comunicar o fato ao devedor, que realiza um segundo pagamento ao credor, caso em que a repetio indebiti competirá ao fiador e não ao devedor; o fiador oferecer a garantia animus donandi; o pagamento for efetuado em prejuízos dos direitos do devedor principal, ou seja, no caso de pagamento excessivo, quanto à parte excedente à dívida, no de pagamento antecipado ou no de ser pago o que não era devido (RJE, 1:518; Bol. AASP, 1.833:8)[62]”
De outro lado, convém destacar a faculdade prevista no art. 834 do Código Civil, enquanto efeito também decorrente do vínculo existente entre o afiançado e o fiador. Prevê o dispositivo que, “quando o credor, sem justa causa, demorar a execução iniciada contra o devedor, poderá o fiador promover-lhe o andamento”.
Primeiramente, importante frisar que não cabe ao fiador iniciar a execução contra o devedor, mas apenas dar-lhe prosseguimento. Em sentido contrário, tem-se a lição de Flávio Tartuce[63], segundo a qual pode o fiador, ante a inércia do credor, promover a execução contra o devedor, com fundamento no art. 567, II, do Código de Processo Civil.
Doutrina Silvio de Salvo Venosa que “cuida-se de hipótese de substituição processual. Essa intervenção objetiva minorar a situação do fiador. No caso concreto, há que se verificar a ocorrência de retardamento injustificado”[64].
Para Arnaldo Rizzardo[65], estando vencida a dívida sem que o credor acione o afiançado, cabe ao fiador reclamar, através de notificação, estabelecendo prazo para que o credor providencie as medidas de exigibilidade da obrigação. Nessa ordem de ideias, discorre Rizzardo que, decorrido o prazo sem manifestação do credor, surge para o fiador o direito de ação de exoneração da fiança. Consigna o autor que duas são as condições para o exercício dessa pretensão: a) que a dívida já se tenha tornado exigível; b) que tenha ocorrido o vencimento do prazo estabelecido da fiança, após o qual o devedor se obrigou a desonerar o fiador. São requisitos alternativos, bastando a presença de um deles para que se reconheça a legitimidade da pretensão.
A doutrina de Orlando Gomes aponta, ainda, como direito do fiador, a possibilidade de exigir que o devedor satisfaça a obrigação ainda antes de haver pago, bem como de exigir que este o exonere da fiança, desde que tenha decorrido o prazo dentro do qual se obrigou a libertá-lo. Trata-se da redação do artigo 1499 do Código Civil de 1916, que não foi reproduzido pelo vigente diploma. Assim, deve o entendimento ser analisado com as devidas cautelas.
Quanto à primeira faculdade – exigir que o devedor satisfaça a obrigação -, como bem observam Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona[66], é plenamente aceitável, consubstanciando “consequência lógica do exercício do benefício de ordem”. Contudo, o mesmo não ocorre em relação ao segundo direito – exigir exoneração da fiança -, pois, como já assentado alhures, “a relação contratual da fiança não é mantida entre fiador e o devedor afiançado, mas sim, entre o fiador e o credor, pelo que somente este último pode desonerá-lo”. No ponto, assevera Arnaldo Rizzardo ser “inconcebível se vá tentar providência contra o devedor principal”[67].
Outro relevante efeito da relação entre afiançado e fiador é o que consta do artigo 835 do Código Civil, verbis:
“Art. 835 O fiador poderá exonerar-se da fiança que tiver assinado sem limitação de tempo, sempre que lhe convier, ficando obrigado por todos os efeitos da fiança, durante sessenta dias após a notificação do credor”.
De início, cabe distinguir essa possibilidade de exoneração da que exposta por Arnaldo Rizzardo, na lição acima citada. A presente hipótese refere-se, exclusivamente, à fiança fixada por tempo indeterminado e não tem como pressuposto necessário à exigibilidade da obrigação afiançada. Já a ação de exoneração apresentada pelo referido autor tem como premissas a exigibilidade dessa obrigação ou, alternativamente, que tenha decorrido o prazo estabelecido na fiança após o qual o devedor se obrigou a desonerar o fiador, pelo que se denota ser esta fiança de prazo determinado.
O dispositivo legal institui verdadeiro direito potestativo ao fiador, que “pode querer com efeitos sobre a esfera jurídica de outrem [credor], o qual não pode e não deve fazer nada, apenas tem que se sujeitar às consequências”[68]. Todavia, tais efeitos se projetam para o futuro, quando se terá a liberação do fiador.
Ponto muito discutido nesse tema diz respeito à aplicabilidade do art. 835 do Código Civil ao direito do inquilinato, tendo em vista o que disposto no art. 39 da Lei nº 8245/90, o qual estende a responsabilidade do fiador “até a efetiva devolução do imóvel”, simbolizada pela entrega das chaves, não concebendo, portanto, a possibilidade de exoneração através da notificação.
Trata-se de aparente conflito entre norma geral e norma especial, diante do que, em tese, ter-se-ia por prevalente esta última em detrimento daquela. Assim sendo, o fiador, mesmo diante de contrato de fiança por prazo indeterminado, não teria, a priori, a faculdade de notificar o credor para exonerar-se da responsabilidade, pois esta subsistirá até a entrega das chaves.
Vale destacar, como bem lembra Silvio Venosa, que na vigência do Código Civil de 1916, a exoneração do fiador era ainda mais restrita, limitando-se a apenas duas modalidades, quais sejam, “pelo distrato, com a aquiescência do afiançado e do credor, se fosse o caso, e por sentença judicial”[69].
Contudo, após a edição da Lei nº 12.112/2009, que deu nova redação art. 40, inc. X, da Lei nº 8.245/90, tem-se que o fiador, embora não possa se valer do art. 835 do Código Civil em vigor, encontra-se amparado pelo referido primeiro dispositivo.
Essa, inclusive, é a orientação de Maria Helena Diniz[70]. Ensina a professora que vencido o prazo da locação, quando então passa a viger por prazo indeterminado, não há a incidência do art. 835 do Código Civil, mas do art. 40, X, da Lei nº 8.245/91, que faculta ao credor/locador, notificado pelo fiador, exigir do devedor/locatário a apresentação de novo fiador, hipótese em que o fiador originário permanecerá obrigado pelos efeitos da fiança durante 120 (cento e vinte) dias após a notificação.
A mesma interpretação extrai-se da doutrina de Flávio Tartuce[71], segundo o qual, ante o novo regramento pela lei de locações, não mais se justifica a aplicação do art. 835 do Código Civil.
Impende destacar, no particular, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que o fiador permanecerá obrigado caso tenha anuído com a prorrogação do contrato de locação que contenha a cláusula de responsabilização até a entrega das chaves. É o que se denota do seguinte julgado:
“AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. LOCAÇÃO. FIANÇA. EXONERAÇÃO. PRORROGAÇÃO CONTRATUAL. ENUNCIADO Nº 214/STJ. INAPLICABILIDADE. REEXAME FÁTICO-PROBATÓRIO. SÚMULA Nº 7/STJ. PREQUESTIONAMENTO. AUSÊNCIA. SÚMULA Nº 211/STJ. DECISÃO MANTIDA POR SEUS PRÓPRIOS FUNDAMENTOS.
1. A jurisprudência do STJ é firme no sentido de que, não sendo hipótese de aditamento, mas de prorrogação de contrato, no qual os fiadores comprometeram-se até a entrega das chaves, tem-se como inaplicável o enunciado de nº 214/STJ.
[...]
5. Agravo regimental não provido”[72].
D’outra banda, inexistindo anuência do fiador no momento da prorrogação do contrato de locação, a previsão de responsabilização até a entrega das chaves estipulada originariamente no contrato não terá o condão de impedir o fiador de exercer o direito de exoneração. É que “ninguém pode renunciar previamente a um direito potestativo”[73].
Vale dizer, se por um lado o direito não tolera que o fiador, durante o prazo determinado do contrato de locação, exonere-se da fiança, por outro, não permite que seja responsabilizado por obrigações posteriores ao término do contrato, em caso de prorrogação com a qual não anuiu. Nesse caso, plenamente aplicável a Súmula nº 214 do Superior Tribunal de Justiça.
Superada a controvérsia, passa-se ao próximo efeito inerente à relação entre afiançado e fiador, que é apontado na obra de Maria Helena Diniz[74]. Também próprio do direito do inquilinato, encontra-se previsto no art. 12, §§ 1º e 2º, da Lei nº 8.245/90, com redação da já citada Lei nº 12.112/2009.
Por esse efeito o fiador tem o direito de ser comunicado por escrito a respeito da sub-rogação da locação, residencial pelo cônjuge ou companheiro que permanecer no imóvel após a separação de fato, divórcio ou dissolução da união estável. A finalidade dessa comunicação é assegurar ao fiador o exercício do direito de exoneração no prazo de 30 (trinta) dias do aviso, hipótese em que ficará responsável pelos efeitos da fiança durante 120 (cento e vinte) dias após a notificação que apresentar ao locador.
Finalmente, como último aspecto a ser realçado, concernente à relação afiançado e fiador, tem-se que “a interrupção da prescrição produzida contra o devedor prejudicará o fiador, na forma do art. 204, § 3º, do CC-02 (art. 176, § 3º, do CC-16)”[75].