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Fiança

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07/08/2014 às 13:40
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6. TRANSMISSIBILIDADE DA OBRIGAÇÃO DO FIADOR

Embora a fiança constitua obrigação de natureza intuitu personae, vale dizer, personalíssima, seus efeitos não se extinguem com o falecimento do fiador, pois são transmissíveis aos seus herdeiros, conforme prevê o art. 836 do Código Civil. No entanto, a responsabilidade dos herdeiros pela fiança sofre duas limitações: só garante a obrigação existente até a data do óbito do fiador e não ultrapassa as forças da herança. Nas sempre prestigiadas palavras do saudoso Orlando Gomes, “os efeitos da fiança produzidos até a morte do fiador vinculam os herdeiros intra vires hereditates”[76].

Essa segunda limitação, relativa à extensão da responsabilidade do herdeiro, aliás, decorre do princípio fundamental do direito das obrigações[77], estatuído no art. 1792 da lei, segundo o qual o “o herdeiro não responde por encargos superiores à força da herança”.

É de se frisar que, falecendo o fiador, tem-se por extinto o contrato de fiança, ocorrendo a cessação contratual[78]. O que se atribui aos herdeiros é a responsabilidade pelas obrigações vencidas enquanto vivo o fiador[79], e não a fiança propriamente dita.

Sobre a transmissibilidade da obrigação do fiador, arrematam Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona:

“Em conclusão, podemos afirmar que o credor na fiança poderá habilitar-se no inventário do fiador para haver o montante da dívida não adimplida pelo devedor principal, respeitando-se sempre os limites das forças da herança. Em sendo pago, poderá, consequentemente, o inventariante, na qualidade de representante do espólio, e em prol do interesse dos demais herdeiros, ingressar com ação regressiva contra o devedor principal[80]”.

Observa Arnaldo Rizzardo que para a constatação dessa transmissibilidade é irrelevante “que a garantia tenha prazo para o seu vencimento, e seu término se verifique após a morte”[81].


7. A FIANÇA E OUTROS INSTITUTOS DE GARANTIA

Convém, neste tópico, traçar as distinções existentes entre a fiança e outros institutos afins, tendo em vista a confusão por vezes feita com os respectivos conceitos.

Primeiramente, conforme já exposto no início deste trabalho, é de se frisar que fiança não é sinônimo de caução, mas espécie desta, cujo sentido, portanto, é mais amplo e “abrange tanto a chamada caução real (penhor, hipoteca, alienação fiduciária) como a chamada caução fidejussória”[82].

A fiança classifica-se como modalidade de caução fidejussória, ao lado do aval. Aqui, vale destacar as distinções sempre indicadas pela doutrina entre essas duas espécies de caução fidejussória.

No particular, importante a lição de Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona:

“A fiança é, como visto, uma garantia pessoal contratual de natureza causal.

É, portanto, de um pacto acessório, com finalidade de garantia de cumprimento da prestação do contrato principal, cuja sorte lhe segue.

Assim, nulo o contrato principal, nula será a fiança.

Além disso, a responsabilidade na fiança é, originalmente, subsidiária, somente se tornando solidária quando há a hipótese de inaplicabilidade do benefício de ordem.

Já o aval é uma garantia aposta em título de crédito, de natureza abstrata.

Tem, portanto, existência autônoma, independentemente da sorte do título de crédito avalizado.

Assim, nulo o título de crédito, persiste o aval outorgado”.[83]

A fiança também não se confunde com a denominada cláusula del credere a que se refere o art. 698 do Código Civi, típica dos contratos de comissão, e que estabelece responsabilidade solidária entre o comissário e as pessoas com quem houver tratado em nome do comitente, quanto à pontualidade e à solvabilidade destas últimas[84].

Por sua vez, Arnold Wald difere a fiança da carta de conforto (comfort letter). Doutrina o professor que esse instituto pode traduzir verdadeira obrigação de resultado ou limitar-se a uma obrigação de meio, em virtude da qual aquele que assina a carta “se obriga a fazer o melhor esforço (best effort) para que o devedor faça o pagamento ou a tomar providências que venham ou possam facilitar o cumprimento da obrigação principal”[85].

Wald distingue a fiança também da obrigação à primeira demanda, “que é uma garantia exigível pelo beneficiário nos termos do instrumento assinado e independentemente dos eventuais litígios que possam existir entre devedor e credor da obrigação”[86].

Por fim, sustenta o autor que o seguro de fiança bancária, destinado aos contratos de locação (arts. 37 e 41 da Lei nº 8245/90), é, na verdade, um seguro especializado, e não uma modalidade de fiança.


8. A IMPENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA DO FIADOR DE OBRIGAÇÃO DECORRENTE DE CONTRATO DE LOCAÇÃO

Sem dúvidas, o presente tópico, atualmente, consiste no aspecto de maior relevo no estudo da fiança, ante o intenso debate corrente em torno das divergências doutrinárias e jurisprudenciais. Para compreensão da questão, convém delinear o histórico do dilema.

Como se sabe, a impenhorabilidade legal do bem de família repousa na Lei nº 8.009/90, cujo art. 1º, caput, dispõe:

“Art. 1º O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei”.

E as hipóteses que excepcionam a regra da impenhorabilidade são arroladas no art. 3º da referida lei, sendo que a grande discussão reside em um desses casos, o qual não constava da redação original do diploma. Trata-se do inciso VII, inserido pela Lei do Inquilinato (Lei nº 8.245/91) e que prescreve não ser oponível a impenhorabilidade no caso de “obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação”.

É que uma minoritária, porém, crescente e relevante doutrina sustenta a inconstitucionalidade desse dispositivo, principalmente, em razão da Emenda Constitucional 26/2000, que alterou a redação do art. 6º da Carta Magna, erigindo ao nível de direito fundamental o direito à habitação.

Sustenta-se, ademais, que a penhorabilidade do bem de família do fiador fere de morte o princípio da dignidade da pessoa humana, insculpido do art. 1º, inc. III, da Constituição República, na medida em que esse princípio matriz tem como uma de suas exteriorizações, exatamente, a proteção ao direito à moradia[87].

Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona, à luz do Direito Civil Constitucional, vislumbram ainda a violação do princípio da isonomia, estatuído no art. 5º, caput, da Constituição Federal, uma vez que a admissibilidade dessa penhora “trata de forma desigual locatário e fiador, embora as obrigações de ambos tenham a mesma causa jurídica: o contrato de locação”[88].

Ademais, deve-se ressaltar que o contrato de fiança tem natureza acessória em relação ao contrato de locação. Daí, tem-se por infringido também o princípio da proporcionalidade ao se atribuir ao fiador, através da penhora do bem de família, obrigação mais grave à que está sujeito o devedor[89].

Para embasar inconstitucionalidade do art. 3º, inc. VII, da Lei nº 8.245/91, a doutrina invoca, ainda, os princípios da solidariedade social (art. 3º, I, da CF/88) e da função social dos contratos, que encontra fundamento na função social da propriedade (art. 5º, XXII e XXIII, e 170, III, da CF/88).

Fato é que ante a nova concepção do Direito Civil, pautada nos valores sociais e constitucionais – nos quais os argumentos acima se enquadram perfeitamente –, em que se verifica uma flexibilização do direito patrimonial em benefício dos direitos existenciais, não há como admitir a penhorabilidade do bem de família do fiador.

Entre outros autores, filiam-se à tese da inconstitucionalidade do art. 3º, VII, da Lei nº 8.245/91, Maria Helena Diniz[90], Flávio Tartuce, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald[91] e José Fernando Simão[92].

A tese chegou a ser acolhida pelo Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário nº 352940/SP, cujo relator, então Ministro Carlos Veloso, em decisão monocrática, assentou não haver “dúvida que a ressalva trazida pela Lei 8.245, de 1991, inciso VII, do art. 3º, feriu de morte o princípio isonômico, tratando desigualmente situações iguais...”[93].

Porém, em 8 de fevereiro de 2006, a Corte, por maioria de votos, firmou entendimento no sentido da constitucionalidade do dispositivo.

Foi no julgamento do paradigmático Recurso Extraordinário nº 407.688, relatado pelo ex-ministro Cezar Peluzo. O jurista, entre outros argumentos, consignou em seu voto que a pessoa tem a faculdade de prestar ou não a fiança, sendo que quando resolve prestá-la o faz sabendo da possibilidade de perder o bem de família. Afirmou, ainda, que o direito à moradia não é exercido somente em imóvel próprio, mas também em imóvel alugado, sendo que o contrato de locação teria suas garantias enfraquecias, caso prevalecesse a tese da inconstitucionalidade do dispositivo. Vê-se, portanto, que a decisão foi motivada também pela proteção de mercado.

Convém conferir a ementa do julgado:

“FIADOR. Locação. Ação de despejo. Sentença de procedência. Execução. Responsabilidade solidária pelos débitos do afiançado. Penhora de seu imóvel residencial. Bem de família. Admissibilidade. Inexistência de afronta ao direito de moradia, previsto no art. 6º da CF. Constitucionalidade do art.3º, inc. VII, da Lei nº 8.009/90, com a redação da Lei nº 8.245/91. Recurso extraordinário desprovido. Votos vencidos. A penhorabilidade do bem de família do fiador do contrato de locação, objeto do art. 3º, inc. VII, da Lei nº 8.009, de 23 de março de 1990, com a redação da Lei nº 8.245, de 15 de outubro de 1991, não ofende o art. 6º da Constituição da República”[94].

Seguindo essa mesma esteira, tem-se a atual jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, consoante se denota desse recente aresto:

“AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PENHORABILIDADE DE BEM DE FAMÍLIA DO FIADOR. AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO AGRAVADA. RECURSO A QUE SE NEGA PROVIMENTO, COM APLICAÇÃO DE MULTA.

[...]

2. Conforme entendimento pacificado nesta Corte e no Supremo Tribunal Federal, é válida a penhora sobre bem de família do fiador de contrato de locação. Aplicação do art. 3º, VII da lei 8.009/90.

2. Agravo regimental a que se nega provimento, com aplicação de multa”[95].

Desse entendimento não destoa a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Território, que assim decidiu recentemente:

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“AGRAVO DE INSTRUMENTO - IMPUGNAÇÃO AO CUMPRIMENTO DE SENTENÇA - PENHORA DE IMÓVEL DE FIADOR - ALEGAÇÃO DE IMPENHORABILIDADE - HIPÓTESE QUE SE ENQUADRA NA EXCEÇÃO À REGRA - DECISÃO MANTIDA.01.A penhora de bem de família de fiador em contrato de locação é legítima, consoante o entendimento esposado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE 407.688/SP.

02.Recurso desprovido. Unânime”[96].

Cabe ressalta, por fim, a preocupação razoável exposta por Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona, no sentido de essa corrente firmada pela jurisprudência pode abrir espaço para uma interpretação extensiva dessa penhorabilidade, passando-se a admitir a constrição judicial do bem de família do próprio devedor, quando acionado pelo fiador na qualidade de sub-rogado nos direitos do locador, já que a este último é assegurada a possibilidade de penhora[97].


9. EXTINÇÃO DA FIANÇA

Conforme a didática lição de Orlando Gomes, a fiança pode se extinguir por via de consequência ou diretamente[98].

Por via de consequência, a fiança será extinta sempre que a obrigação principal se extinguir. Trata-se de decorrência da natureza acessória do contrato de fiança.

Assim, será extinta a fiança, por exemplo, nos seguintes casos: confusão; compensação; novação com o devedor, sem a anuência do fiador; morte do afiançado; cumprimento da obrigação principal; nulidade da obrigação principal, cabendo, neste último caso, atentar-se para a possibilidade de se reconhecer válida a fiança quando a nulidade da obrigação referir-se à incapacidade do devedor, salvo se menor de idade, conforme já analisado alhures.

Por sua vez, a fiança se extingue pela via direta quando a causa extintiva atingir a obrigação fidejussória, sem refletir na obrigação principal.

São exemplos de causas extintivas da fiança, entre outros: a expiração do prazo da fiança, ou, inexistindo prazo, a exoneração do fiador que notifica o credor; as exceções pessoais que o fiador tenha contra o credor, em relação às quais se remete à leitura do tópico referente aos efeitos decorrentes da relação entre credor e fiador; a morte do fiador, hipótese já abordada algures.

Demais disso, tem-se as situações peculiares previstas no art. 838 do Código Civil, verbis:

“Art. 838 O fiador, ainda que solidário, ficará desobrigado:

I – se, sem consentimento seu, o credor conceder moratória ao devedor;

II – se, por fato do credor, for impossível a sub-rogação nos seus direitos e preferências;

III – se o credor, em pagamento da dívida, aceitar amigavelmente do devedor objeto diverso do que este era obrigado a lhe dar, ainda que depois venha a perdê-lo por evicção”.

Verifica-se a primeira causa quando o credor concede ao devedor novo prazo para o cumprimento da obrigação principal, sem que o fiador participe dessa avença. No ponto, vale conferir a súmula 214 do Superior Tribunal de Justiça.

Como exemplo da segunda causa, Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona citam a hipótese do “credor que deu causa à destruição de um objeto valioso do devedor, que lhe fora dado em penhor”[99]. Nesse caso, resta inviável o exercício dos direitos e preferências de uma eventual sub-rogação do fiador, ante o perecimento do objeto dado em penhor. Criticam os autores a expressão “fato do credor”, já que, tecnicamente, trata-se de “ato do credor”.

Por sua vez, a terceira causa refere-se ao instituto da dação em pagamento, em que o devedor dá ao credor objeto diverso do que inicialmente pactuado, circunstância em que o fiador não responderá pela eventual evicção sofrida pelo credor.

Na lição de Maria Helena Diniz, a evicção, embora faça ressurgir a obrigação principal, não importa no reaparecimento da fiança, enquanto obrigação acessória. Explica a autora que “tal ocorre por que o credor, apesar de ter o direito de exigir do fiador o pagamento do débito garantido, não poderá agravar a sua situação”[100].

E se a coisa evicta for exatamente o objeto originariamente previsto da obrigação principal afiançada, ressurgirá a responsabilidade do fiador? Essa interessante indagação é formulada por Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona.

Trata-se de hipótese não prevista no Código Civil, pelo que, a priori, a resposta seria negativa, com fundamento no art. 819 do diploma, segundo o qual a fiança “não admite interpretação extensiva”.

Contudo, os referidos autores respondem positivamente à pergunta, ou seja, a fiança, nesse caso, será restabelecida. Fundamentam o entendimento no fato de que “o pagamento da dívida operou a transferência de algo que não poderia ser alienado, neutralizando completamente os efeitos do suposto adimplemento”[101].

Finalmente, dispõe o art. 839 do Código Civil que ficará exonerado o fiador, se invocar o benefício de ordem e se o devedor, retardando-se a execução, vier a cair em insolvência. Exige-se, contudo, que o fiador prove que os bens por ele indicados quando manejo do benefício de ordem eram, ao tempo da penhora, suficientes para a solução da dívida afiançada.

Preconiza Flávio Tartuce que “a norma tende a punir a inoperância do credor, a negligência do mesmo em receber sua dívida”[102].

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Sobre o autor
Adalto Quintino da Silva

Analista Judiciário da Justiça Federal. Especialista em Direito e Jurisdição (Escola da Magistratura do Distrito Federal).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Adalto Quintino. Fiança. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4054, 7 ago. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30699. Acesso em: 26 abr. 2024.

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