3. AFETIVIDADE COMO VÍNCULO PRIMORDIAL
A afetividade como vínculo primordial é a base principiológica do nossa atual Direito das Famílias. Hoje o afeto é considerado o norteadornos litígios que envolvem o reconhecimento da filiação, e tal reconhecimento, da relação paternal ou maternal sobrevém primeiramente a necessidade de ter para si um filho.
A Constituição Federal de 1988foi, efetivamente, um divisor de águas no que concerne aos valores da família contemporânea brasileira. A iniciar pelo art. 1°, III, que traduz o principio da dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito, somando ao art. 3°, I, do mesmo diploma legal, que consagra o princípio da solidariedade, parte-se rumo ao fenômeno da repersonalização das relações entre pai e filhos, deixando para trás o ranço da patrimonialização que sempre os ligou para dar espaço a uma nova ordem axiológica, a um novo sujeito nas relações familiares e, ate mesmo, a uma nova face da paternidade: o vinculo socioafetivo que une pais e filhos, independente de vínculo biológico.
É fato que o elo biológico entre pais e filhos não é suficiente para construir uma verdadeira relação afetiva paterno-filial. Basta verificar nas demandas de paternidade que, muitas vezes, o filho conhece seu pai por meio do DNA, mas não é reconhecido por ele por meio do afeto. Em outras palavras, a filiação não é um determinismo biológico, ainda que seja da natureza do homem o ato de procriar. Em geral, a filiação, e a paternidade sociais ou afetivas derivam de uma ligação genética, mas esta não é suficiente para a formação e afirmação do vínculo; é preciso muito mais. É necessário construir o elo, cultural e afetivo, de forma permanente, convivendo e tornando-se, cada qual, responsável pelo cultivo dos sentimentos, dia após dia (ALMEIDA, 2002 apud COSTA, 2008, p. 91).
A citação acima da professora Maria Christina Almeida enquadra, contudo não somente a relação paternal da filiação socioafetiva, embora seja a Adoção à Brasileira uma prática reinterada mais por parte dos homens, mas também, podemos mencionar a mulher como detentora da relação maternal, uma mensurável provedora em alguns casos das estatísticas da perfilhação.
3.1. Afeto e DNA: qual é o mais importante
Antes de qualquer apontamento, é necessário esclarecer que a filiação passou por mudanças na sua forma de reconhecimento ao longo dos anos, onde se dividiu primeiramente em filiação presumida, contida no Código Civil de 1916; filiação científica, decorrente da criação do exame de DNA; e filiação socioafetiva ou cultural, com a promulgação da Constituição Federal, falamos em cultural porque se tornou um principio norteador dos conflitos de famílias. A evolução histórica da afetividade surgindo dentro do Direito Brasileiro é um salto para longe do patrimonialismo formado pura e simplesmente para garantir os bens de família concentrados, ou seja, impedido que os mesmo se dividissem, escapando aos olhos patriarcais.
O afeto tem tomado lugar de destaque nas famílias, mas ainda é visível que a filiação biológica tem papel fundamental dentro da sociedade, pois é ela quem determina de pronto a paternidade ou maternidade, podendo gerar assim status no reconhecimento da filiação pleiteada.
O exame de DNA veio para averiguar com mais precisão a verdadeira filiação biológica, e como já mencionado acima a paternidade é o reconhecimento da filiação mais comum a ser discutido, como consta no REsp 435.868, que teve como relatora a Min. Nancy Andrighi, sendo “imprescritível o direito ao reconhecimento do estado filial exercido com fundamento em falsidade do registro”.
“Assim com o avanço da ciência e a propagação do exame de DNA como forma de descobrir a verdadeira origem biológica, surge a possibilidade de fazer valer o vinculo genético entre pai e filho.” (VERDADE..., 2010, não paginado).
Resta cristalino que a importância de tal instrumento decorrente da evolução tecnológica é indispensável para resguardar uma possível violação ao direito de registrar um filho.
O ato de adotar uma criança que saiba não ser seu filho pode gerar grandes frustrações se não tiver a decisão firmada no amor e no carinho. Por isso o afeto hoje é um principio diretamente ligado ao convívio familiar e deve ser respeitado, no que tange a ser um fator decisório em casos de desconstituição da filiação; através do vínculo estabelecido voluntariamente entre pais e filhos, alicerçados no afeto podemos analisar a importância desses, mas não esquecendo que:
[...] é preciso equilibrar a verdade sócio-afetiva com a verdade de sangue, pois o filho é mais que um descendente genético, devendo revelar uma relação construída no afeto cotidiano. Em determinados casos, a verdade biológica deve dar lugar à verdade do coração; na construção de uma nova família, deve-se procurar equilibrar estas duas vertentes: a relação biológica e a relação sócio-afetiva (FACHIN, 2002, p. 63).
A verdade biológica se sobrepõe a verdade afetiva quando é constatada a falta desta, e aquela toma lugar de destaque em detrimento sanguíneo auferido através do ácido desoxirribonucleico (DNA). Por uma serie de fatores deve-se analisar a existência do convívio familiar e mais, com o afeto presente, e a vontade de fazer deste sentimento o aliado na criação dos filhos.
O embasamento para solidificação na prevalência do estalão da filiação socioafetiva, encontra-se na norma infraconstitucional como norma geral do sistema no art. 1.593. do Código Civil, que embasa o parentesco não somente na consaguinidade, como também em “outra origem [...] se refere à adoção, que vincula adotantes e adotados sem restrições ou diferenciações, como se uns descendessem dos outros” (LAMENZA, 2010, p. 1295).
É de suma importância analisar que a legislação infraconstitucional acentua a possibilidade da efetivação do principio da socioafetividade como gerenciador espontâneo das relações familiares, concomitantemente se torna uma forma decisória das ações negatórias de paternidade e/ou das ações que buscam o reconhecimento da paternidade. Entretanto “com o intuito de resolver tais impasses, muitos julgadores preferem por dar mais valor à verdade biológica, admitindo que o filho, a qualquer momento, possa reconhecer sua verdadeira filiação [...]” (VERDADE..., 2010, não paginado).
No entanto devemos considerar que “a busca da verdade real está na consideração da verdadeira relação existente entre os sujeitos, devendo ser abservado os elementos fundantes e formadores dos relacionamento para que possam definir a relação como sendo de filiação ou não” e também definir qual tipo de filiação se sobre sai na relação, se é a afetiva ou biológica. “Todavia tradicionalmente entende-se que embora a ligação afetiva tenha relevante valor social, a lei brasileira de registros públicos não prevê a possibilidade jurídica do registro a este fundamento” (VERDADE..., 2010, não paginado). Mas como a sociedade é mutante e nela os institutos do Direito de Família são sempre variantes, concluímos que:
[...] não resta dúvida que, no caso de haver vinculo afetivo socialmente reconhecido como uma relação entre pai e filho entre os sujeitos, existe a relação de paternidade, independentemente da existência de registro ou ate mesmo de vínculo biológico entre eles, uma vez que as características da filiação sócio-afetiva aproximam-se muito do conceito genérico de paternidade (VERDADE..., 2010, não paginado).
Podemos, assim, situar o marco inicial da afirmação da paternidade socioafetiva no direito civil brasileiro com o artigo de Villela, em 1979, e o seu maior impulso a partir de 1988, com a nova Constituição, bem identificada com o novo estatuto da filiação (SEREJO, 2004). Assim, levanta-se uma questão, que “embora a coabitação sexual, de que possa resultar gravidez, seja fonte de responsabilidade civil, a paternidade, enquanto tal, só nasce de uma decisão espontânea” (VILLELA, 1979, apud ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007, não paginado), portanto nota-se que não bastar ajudar a gerar, pois se não houver o interesse maior que é criar o filho, essa filiação meramente biológica já está falida.
3.2. A importância do cuidado e do afeto nas relações entre os pais e os filhos
Certa feita que ao longo do estudo explorado neste trabalho, vimos como as famílias de outrora se comportavam com relação a seus integrantes, não havia o mínimo de sentimento fraternal entre pai e filho, possivelmente era pura e simplesmente o amor fraterno entre mãe e filho e entre irmãos, pois o pai somente se preocupava nos cuidados ao culto fúnebre e a religião, deixando de lado o que hoje conhecemos como relação afetiva.
Embora as relações não fossem baseadas no amor, o homem da família se preocupava com as demais tarefas que eram de sua alçada, tendo o cuidado de passar ao filho os ensinamentos que somente a ele competia; o homem ensina aos filhos conhecimento sobre a política e demais áreas onde unicamente eles poderiam participar; caso não fossem gerados filhos homens, a família teria a obrigação de adotar, visto que as tarefas eram perpetuadas somente pelos homens ao longo das gerações; possivelmente a partir deste mínimo de cuidado com o filho a sociedade vai gerando o embrião do afeto.
A história foi evoluindo e perpassando mais por um contexto patrimonialista que meramente religioso, sem mais aquela influência do rei que regulamentava as “leis” da época; a filiação era tida como mero instrumento para deter o patrimônio da família em um único grupo igualitário, a ordem era ter filhos por uma questão socialmente imposta, não por opção. Contudo, ao passar da protuberância social que é dada ao instituto da família, essa decisão de ter ou não filhos vais se modificando e ganhando força com a tecnologia, a invenção de contraceptivos é o determinismo de quando tê-los e si tê-los.
É evidente que, quando se pode tomar a decisão de ter ou não filhos, a mulher cria uma expectativa ao gera uma vida, e junto com essa expectativa vem o crescimento gradativo ou não do sentimento, que é nutrido a cada dia desde a programação da gravidez até o nascimento, e que após o nascimento da criança esse amor explode na convivência com o filho. O homem também participa desta emoção, e claro, cria tanta expectativa quanto a mulher. A deliberação de ter filhos, leva ao homem e a mulher do mundo moderno a possibilidade de dar uma criação baseada em todos os princípios constitucionais, que são eles coforme o artigo da Constituição Federal 1988:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (BRASIL, 1988, não paginado, grifo nosso).
É muito mais fácil criar e dar amor quando se pode escolher por fazê-lo do que quando se é uma imposição radical, simplesmente para alimentar e saciar um desejo da sociedade.
Não podemos esquecer também que, “pegar pra criar” ou adotar uma criação é também uma forma de decidir, dar amor, cuidados e uma família para um individuo que é indiferente aos seus costumes.
3.3. Os princípios norteadores na legitimação da afetividade
Os princípios constitucionais são a base para o desembaraço nos litígios no Direito de Família, tais princípios são a forma que o ordenamento jurídico encontrou para si aprofundar na nova tendência de filiação hora estudada.
Os princípios são verdades jurídicas universais, e, assim sendo, são consideradas normas primárias, pois são o fundamento da ordem jurídica, enquanto que as normas que dele derivam possuem caráter secundário. Ainda, os princípios são normas que, por possuírem alto grau de generalidade se diferem das regras, que também são normas mas não tem nível elevado de generalidade (CAUÊ, 2013, não paginado).
A Constituição Federal assevera como princípio essencial a integridade jurídica da justiça no que concerne a legitimação da afetividade como base para legalização da filiação socioafetiva, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, e tão quanto essencial o Princípio da Igualdade, ambos alicerçados no melhor interesse do adotado (BRASIL, 1988).
3.3.1. Princípio da dignidade da pessoa humana
Este princípio é no todo o de maior importância para o estudo levantado neste trabalho. É considerado o princípio mais relevante para o estudo dos direitos do homem por tratar-se do limite fundamental no tratamento da essência humana.
A Dignidade da Pessoa Humana se refere ao valor supremo moral e ético, que leva consigo a síntese de todos os direitos fundamentais inerentes ao homem. É o mínimo inviolável, invulnerável, do individuo, que deve estar presente em todos os estatutos jurídicos. A dignidade da pessoa humana [...] significa [...] o reconhecimento do homo noumenon, ou seja, o individuo como limite e fundamento do domínio político da República (CANOTILHO, 1998, p. 221).
Assim, observamos que, quando não respeitado tal princípio, esta conduta pode ser considerada como uma igualação do homem a um instrumento ou coisa, o que nos leva a diminuição do raciocínio sobre a legitimação do reconhecimento da filiação através da Carta Magna, tornando o homem mero instrumento da preponderância da sociedade que se pauta apenas em normas escritas, deixando de observar fatos e causas concretas do dia-a-dia.
No estudo sobre o reconhecimento da filiação, a dignidade do ser humano está ligada diretamente com a inviolabilidade deste direito fundamental, que se torna ineficaz quando no direito formal há impossibilidades que denotem no reconhecimento do status de filiação.
Todo homem é digno de ter reconhecida em sua certidão de nascimento o pai e a mãe, mesmo que tais filiações resultantes, não sejam biológicas, mas sim, socioafetivas, derivadas da adoção, como dos filhos de criação, ou mesmo de uma adoção à brasileira. O importante para quem busca e deseja ter uma família, é ter sua dignidade repeitada; para alguns o princípio da dignidade da pessoa humana é algo tão subjetivo como a valoração de justiça, mas se buscarmos desde os primórdios, o homem tem no mínimo a maternidade conhecida, e, portanto, a filiação desejada exposta para a sociedade.
É certo que a definição deste princípio depende ainda de proteção jurídico-normativa, para sua consistência no entendimento e percepção de quando a dignidade é desobedecida pelo o todo ou parte da sociedade principalmente quando o direito arguido e tentando se basear neste princípio não está elencado no rol das legislações. A partir desta visão evidencia-se que a dignidade está ligada de uma forma efêmera a essência humana, o que de fato não deveria acontecer segundo a conceituação de Sarlet (2002, p. 62), que aborda sobre a mesma:
Qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.
Notamos que o homem tem direitos e deveres ligados diretamente a condição de dignidade que o autor menciona, e como consequência da imposição normativa das diversas leis que regem o tema deste trabalho, é defeso ao mesmo amparar-se nesse princípio fundamental a todo ser humano, e tirar dele a plenitude dos seus anseios.
3.3.2. Princípio da igualdade
O principio da igualdade está previsto no art. 5° da Constituição Federal, e assim lemos:
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes [...] (BRASIL, 1988, não paginado).
Partindo desta afirmação que todos são iguais perante a lei, na própria Constituição em seu art. 227. §6°, é fincada a igualdade entre todos os filhos, independente da filiação ser legitima ou ilegítima; vejamos a leitura do §6° deste artigo: “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação” (BRASIL, 1988, não paginado). A igualdade constitucional deve ser o bem maior de toda sociedade, não se materializar apenas como uma expressão de direito sem a devida importância, devendo si funda nos princípios asseguradores dos direitos do homem.
Alguns apontamentos devem ser feitos para melhor entendimento da corelação deste princípio com o tema abordado.
Todos os filhos sejam eles, adotivos ou biológicos devem ter o mesmo tratamento, isso quer dizer quê é proibido a distinção de tratamento no que tange a vários aspectos da vida familiar, e são eles, a educação, moradia, lazer, vestuário, dentre outros. Vale ressaltar que o afeto também entra como ponto fundamental na relação entre pais e filhos sendo inadmissível que um ou outro receba mais atenção, amor, bens materiais, etc.
A igualdade entre os filhos não está prevista somente constitucionalmente, a mesma recebe amparo na legislação infraconstitucional, tanto no Código Civil como no Estatuto da Criança e do Adolescente, certificando de forma primaria o melhor para a criança. No Código Civil de 2002 o art. 1.596. é a copia ipsilíteres do aludido na Constituição Federal vigente, e assim aduz: “Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação” (BRASIL, 2002, não paginado).
Vale destacar que a proteção aos filhos – não importando sua origem – é de comprometimento de toda a estrutura jurídica, onde o legislador deixa fulgente a exatidão na assistência do cumprimento dos direitos dos filhos. Insta salientar que alguns autores compreendem este princípio com o mais importante no que concerne a igualdade jurídica dos filhos quanto as suas qualificações, “a igualdade jurídica entre os filhos é mais que uma norma, é um princípio constitucional do direito de família” (AMARAL apud DIAS, 2009, p.60). Assim, segundo Lobo (apudDIAS, 2009)o que se busca é vislumbrarnão só meramente uma recomendação ética da legislação, mas, diretrizes que possibilitem manter relações de harmonias das crianças e adolescentes com suas famílias, perante a sociedade e com o Estado, onde a família seja a base para o cuidado e resguardo na defesa desses direitos.