Resumo: O presente artigo tem o objetivo de analisar, de maneira breve, a evolução histórica das resoluções de conflito desde os povos primitivos, passando pelo período Romano, até o século XXI, no Brasil. Para tanto, analisa as Teorias Processuais que precederam a Teoria Instrumentalista do Processo, bem como a Jurisdição no Estado Moderno. Por fim, comenta como os escopos metajurídicos têm fundamentado o protagonismo judicial no direito processual brasileiro.
Palavras-chaves: Direito Processual. Jurisdição. Instrumentalidade.
1. INTRODUÇÃO
A autonomia do Processo face ao conteúdo material nem sempre foi tida como algo natural aos olhos do jurista moderno. Até meados do século XIX, vigorou o período Sincretista, em que o processo era considerado simples meio de exercício de direitos, ou seja, havia confusão entre plano substancial e plano processual.
O responsável por sistematizar a concepção de autonomia do direito processual face ao direito material, inaugurando a chamada Teoria do Processo como Relação Jurídica, foi o alemão Oskar Von Bülow, no século XIX.
No Brasil, a Teoria do Processo como Relação Processual também exerceu grande repercussão, graças à denominada Escola Instrumentalista do Processo, criada a partir das reuniões de grupos de estudos sobre Direito Processual coordenados pelo processualista italiano Enrico Tullio Liebman.
Já no século XXI, a influência da Instrumentalidade do Processo na doutrina processual e jurisprudência brasileira persiste, especialmente pela vasta repercussão e aceitação dos estudos realizados por Cândido Dinamarco, doutrinador de grande expressão da Escola Instrumentalista e tradutor de Liebman, que lançou a obra Instrumentalidade do Processo, publicada em 1987, e que atribui escopos metajurídicos à Jurisdição.
2. RESOLUÇÕES DE CONFLITO NOS POVOS ANTIGOS ATÉ A ATUALIDADE NO BRASIL
2.1 Autotutela e Autocomposição
Nos povos primitivos não havia poder constituído, ou seja, inexistia um Estado organizado, com soberania e autoridade para impor suas vontades face aos particulares, bem como também não havia sequer leis para regular as condutas sociais (PELEGRINE, 2008). Nesse contexto, cabia a própria parte envolvida, por si mesma, solucionar todo e qualquer conflito por meio da Autotutela.
A autotutela caracteriza-se pela inexistência de um terceiro alheio ao conflito para proferir a decisão, em que a solução para um conflito ou ato criminoso (vingança privada) é obtida por ação (força) de um dos participantes.
Outra forma primitiva para composição dos conflitos que coexistiu com a autotutela é a Autocomposição, que consiste na solução dos conflitos por meio de acordo entre as partes envolvidas. Nesse diapasão, e tendo em vista a ausência do Estado, as partes envolvidas conciliavam-se por meio da renúncia, submissão, desistência ou transação (LEAL, 2001). Verifica-se que na autocomposição, igualmente na autotutela, não há a intervenção de um terceiro para a solução da contenda.
2.2 Período Pré-Romano a Decadência do Império Romano
No Período Sacerdotal, ou pré-romano, surge uma nova técnica para a solução dos conflitos: a Arbitragem. Diferentemente da autotutela e da autocomposição, na Arbitragem observa-se a intervenção de um terceiro alheio (sacerdotes, nobres, anciões, pajés, sábios etc), eleito intermediário pelas partes envolvidas para decidirem os litígios.
Todavia, na medida em que o Estado consolidava-se, observa-se a intervenção do mesmo na liberdade dos particulares de modo que, gradativamente, passou a absorver o poder de ditar as soluções para os conflitos (PELEGRINE, 2008).
No Direito Romano, inicialmente, tem-se o processo privado, caracterizado pela ausência do Estado na composição da lide. O primeiro sistema processual romano é o denominado legis actiones (séc. VIII ao séc. V a.C). Ressalta-se que este era judicial, uma vez que “se iniciava perante o magistrado (in jure), e em seguida, perante o árbitro particular” (LEAL, 2001, p. 39); legal, pois advinha das regras estipuladas pelo magistrado; formal, os rituais deveriam seguidos com estrito rigor; presencial, já que as partes interessadas deveriam comparecer a todos os atos; e oral.
Com o advento da República, a partir do século V a.C. tem-se o chamado período romano arcaico ou formular. Neste contexto, o sistema da legis actiones foi abandonado e a função antes exercida pelos árbitros passou para as mãos do jurisconsulto e do pretor, nomeado pelo governo (magistrado). Este, por sua vez, possuía éditos (ou editos) que descreviam seus modelos para a solução dos conflitos. Ao jurisconsulto, cabia o cumprimento das fórmulas que o pretor havia descrito.
Conforme ensina Marky (1995):
A determinação da regra jurídica a ser aplicada pelo juiz na decisão de uma questão controvertida cabia ao magistrado, especialmente ao pretor. Essa função se chamava jurisdição (jus dicere) e, no desempenho dela, os pretores tiveram prerrogativas bastante amplas, baseada no poder do mando, denominado imperium. Podiam eles, quando julgavam necessário ou oportuno, denegar a tutela jurídica, mesmo contra as regras do direito quiritário, ou inversamente, conceder meios processuais pretensões que não tinha o amparo legal no mesmo direito. Assim, dependiam do seu poder discricionário a aplicação ou não daquelas regras do direito quiritário. Tinham eles outros meios processuais também para introduzir inovações, a fim de ajudar, suprir e até corrigir as regras do direito quiritário. (MARKY, 1995, p. 19).
Ensina Leal (2001), que do século V ao século II a. C., fase denominada Período Clássico do direito romano, a arbitragem, integralmente privada dos peritos leigos, foi sendo, aos poucos, substituída pela arbitragem oficial, que era composta por duas etapas: uma perante o magistrado (servidor público) e a outra pelo juiz (arbitro particular). Com isso, inexoravelmente, houve a publicização da arbitragem que foi, paulatinamente, assumindo contornos de instituto jurídico público, em que havia a escolha do arbitro imposta pelo pretor. Em outras palavras, o processo romano, eminentemente privatista, passou a ganhar caráter público.
Com a decadência do Império Romano e “a necessidade de o Estado se impor aos particulares e recuperar a unidade nacional” (LEAL, 2001, p. 40) o poder dos pretores foi maximizado e a utilização da arbitragem vedada. Tal mudança, que representou a evolução do Processo Público para o Processo Privado, só foi possível tendo em vista que o Estado encontrava-se suficientemente forte para impor suas vontades sobre os particulares por meio de atividades que tem por finalidade examinar as pretensões e solucionar os conflitos (jurisdição).
Nota-se que, com a abolição da arbitragem facultativa, o monopólio da atividade de dizer o direito passou a ser do Estado. A esta arbitragem obrigatória, realizada, exclusivamente, pelo órgão jurisdicional do Estado (pretor) denominou-se JURISDIÇÃO (LEAL, 2001).
2.3 A jurisdição e o estado moderno – Teoria do Processo Como Contrato e Como Quase-Contrato
Com a formação do Estado Moderno, ocorrida entre os séculos XV e XVI, observa-se a concentração do poder nas mãos do Rei. Isso seria possível devido à grande influência da Igreja neste período, que legitimava o poder do soberano sob a justificativa de que o mesmo era a personificação da vontade de Deus.
Nesse diapasão, a jurisdição, como forma de poder, também estava concentrada nas mãos do Estado (Rei).
Influenciada pela visão privativa romana, as Teorias de Direito Privado, em voga nos séculos XVIII e XIX, consideravam o processo como um mero apêndice do direito privado (JUNIOR, 2010, p. 38). Tais teorias concebiam o ordenamento jurídico como uma estrutura plana, em que a ação era definida como direito subjetivo lesado, a jurisdição como sistema de tutela aos direitos e processo como uma sucessão de atos. Essas teorias são denominadas: Teoria do Processo como contrato e Teoria do Processo como quase-contrato.
A Teoria do Processo como Contrato, influenciada pelos ideais iluministas do século XVIII e pela visão privatista do Direito Romano, partia da premissa que as partes, voluntariamente, submetiam-se ao processo e aos seus resultados para a solução de conflitos, em um verdadeiro negócio jurídico de direito privado (litiscontestacio). Trilhando o mesmo caminho privatista, a Teoria do Processo como Quase-Contrato estabelecia que o processo não seria exatamente um contrato. Para tal teoria “a parte que ingressava em juízo já consentia que a decisão lhe fosse favorável ou desfavorável, ocorrendo um nexo entre o autor e o juiz.” (LEAL, 2001, p.88).
2.4 A afirmação da autonomia processual: Oscar Von Bülow
A autonomia do Processo face ao conteúdo material nem sempre foi tida como algo natural aos olhos do jurista moderno (DINAMARCO, 2002). Até meados do século XIX, vigorou o Período Sincretista, em que o processo era considerado simples meio de exercício de direitos, ou seja, havia confusão entre plano substancial e plano processual. Nesse contexto, o direito processual não era concebido como ramo autônomo do direito (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2008) e sim como mero apenso do direito material.
A fim de superar o sincretismo jurídico, diversos autores alemães (Windscheid, Muther e Wach) começaram a realizar questionamentos acerca da natureza jurídica da ação e do processo. Esse período, conhecido como Autonomista, foi marcado pelas grandes contribuições para o direito processual e pela preocupação, por parte dos autores, da afirmação de uma “ciência processual autônoma”.
Todavia, foi no século XIX, com a denominada Teoria do Processo como Relação Jurídica, que houve o rompimento definitivo entre direito material e direito processual. Tal Teoria afirmava que, enquanto o Direito Material seria “o corpo de normas que disciplinam as relações jurídicas referentes a bens e utilidades da vida (direito civil, penal, administrativo, comercial, tributário, trabalhista etc.)” (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2008, p. 46), o Direito Processual seria o instrumento a serviço desse direito material. Tal teoria inaugurou a denominada teoria publicista do processo e rompeu, em definitivo, com as teorias privatistas do processo. O maior expoente desta teoria foi seu precursor: Oscar Von Bülow.
Para Leal, em 1868, Bülow, ao publicar a obra intitulada A Teoria das Exceções Processuais e os Pressupostos Processuais, expôs o entendimento de que o processo deveria ser abordado “como relação jurídica de direito público vinculativa das partes aos tribunais, cuja formação e existência deveria ser controlada pelos juízes” (LEAL, 2008, p.60).
A ideia de relação jurídica processual já havia sido anteriormente aludida por Búlgaro, jurista italiano do século XII, que afirmava: judicium est actus trium personarum, judicis, actoris, rei (três pessoas são por Direito necessárias em qualquer juízo, Juiz que julgue, autor que demande e réu que se defenda). Entretanto, foi Bülow quem racionalizou e desenvolveu sistematicamente tal teoria.
A grande novidade proposta pela obra de Bülow, como o próprio nome sugere, versa sobre a Teoria das Exceções Processuais e dos Pressupostos Processuais. Para o autor, o termo Exceções Processuais estava sendo utilizado, à época, erroneamente pela doutrina e jurisprudência alemãs.
Segundo Büllow, o equívoco estaria ocorrendo devido ao fato de que a palavra exceção teria origem na palavra exceptio dos romanos, que dizia respeito à articulação fático-juridica que o réu, no Processo Romano, poderia utilizar para realizar sua defesa. Contudo, segundo o autor, quando se tratava da relação jurídica processual - e não da relação jurídica debatida entre as partes perante o juiz - a análise de possíveis impedimentos para a constituição da relação processual não estaria nas mãos das partes, mas sim dos magistrados (LEAL, 2008).
Por esta razão, Bülow propôs a substituição do termo Exceções Processuais por Pressupostos Processuais. Conforme conclui Leal:
No fim das contas, Bülow buscava frisar o fato de que era atividade (tão pretensamente zelosa e atenta quanto solipsista) inarredável dos juízes e tribunais a verificação de admissibilidade da relação processual. (...) Partindo dessas observações é que Bülow cunha, para substituir a expressão exceções processuais, a locução ‘pressupostos’. A troca de ‘exceções’ por ‘pressupostos’ tornaria patente, a partir de então, que o controle da relação processual, porque atribuição do julgador, não poderia continuar a ser entendido como uma espécie de autorização do réu, ou algo que se originava exclusivamente de sua provocação. (LEAL, 2008, p. 41 e 43).
Verifica-se que Bülow, ao desenvolver sua Teoria, quis ressaltar a importância da atuação dos juízes na relação processual, uma vez que eram esses que deveriam controlar os pressupostos de validade e existência do processo. Destarte, mais que uma simples questão de nomenclatura, a alteração proposta por Bülow tinha por objetivo precípuo fundamentar, de maneira teórica, o aumento de poder do Estado (LEAL, 2008).
2.5 A instrumentalidade do Processo – A influência de Cândido Dinamarco no Direito Processual Brasileiro atual
No Brasil, uma forte influência da Teoria do Processo como Relação Processual na denominada Escola Instrumentalista do Processo. Tal Escola surgiu das reuniões de grupos de estudos sobre Direito Processual coordenados pelo processualista italiano Enrico Tullio Liebman que, fugindo da Segunda Guerra Mundial, estabeleceu-se no Brasil, lecionando na Faculdade do Largo do São Francisco, em São Paulo.
Ainda no século XXI, a influência da instrumentalidade do processo na doutrina processual e jurisprudência brasileiras persiste. Tal influência ocorre, especialmente, pela vasta repercussão e aceitação dos estudos realizados por Cândido Dinamarco, doutrinador de grande expressão da Escola Instrumentalista e tradutor de Liebman, responsável por atribuir escopos metajurídicos à jurisdição.
Em obra clássica intitulada A Instrumentalidade do Processo, publicada em 1987, Dinamarco propôs uma nova mentalidade entre os processualistas modernos acerca da instrumentalidade do processo: A instrumentalidade não poderia ser um fim em si mesma e sim um meio para alcançar objetivos metajurídicos.
Observa-se que todo instrumento seria um meio que só se legitima em função dos fins a que se destina. Desse modo, a jurisdição, como forma de poder, deveria ser canalizada para a realização de escopos do próprio Estado. Esses objetivos almejados pelo Estado, para Dinamarco, estariam ligados às necessidades do povo e seriam de três ordens: social (pacificação com justiça), política (liberdade, participação, afirmação da autoridade do Estado e do seu ordenamento) e jurídica (atuação da vontade concreta do direito).
Nesta ótica instrumentalista, o juiz por ser a personificação do Estado no processo, seria o responsável em captar todos os anseios sociais a fim de promover, por meio da jurisdição, a paz e a Justiça Social. Assim, percebe-se que Dinamarco (2002), ao atribuir à Jurisdição escopos metajurídicos, pretendeu justificar os poderes conferidos ao juiz pelo Estado.
A busca pela pacificação social fez com que a tese de Dinamarco fosse de grande aceitação pelos processualistas brasileiros. Os meios acadêmicos e jurídicos, a partir de então, influenciados pela corrente instrumentalista, passaram a compartilhar do entendimento de que o processo superaria uma simples correlação com o direito material para buscar objetivos maiores, tais quais: a pacificação social e a Justiça Social (objetivos metajurídicos).
Portanto, segundo o entendimento advindo da Teoria Instrumentalista do Processo, a função do juiz é “manejar o Processo a serviço do interesse público, do bem-estar do povo e da paz social em critérios metajurídicos.” (LEAL, 2001, p. 44).
3. CONCLUSÃO
Até meados do século XIX, vigorou o Período Sincretista, em que o processo era considerado simples meio de exercício de direitos, com confusão entre plano substancial e plano processual. Com o objetivo de pôr termo ao sincretismo jurídico, diversos autores começaram a realizar questionamentos acerca da natureza jurídica da ação e do processo. Esse período, conhecido como Autonomista, foi marcado pelas grandes contribuições para o direito processual e pela preocupação, por parte dos autores, da afirmação de uma “ciência processual autônoma”.
Todavia, foi com a denominada Teoria do Processo como Relação Jurídica que houve a superação definitiva das teorias privatistas do processo. O maior expoente dessa teoria é Oscar Von Bülow.
A teoria de Bülow tem como objetivo fundamentar o aumento de poder do Estado e, com isso, ressaltar a importância da atuação dos juízes. Nesse sentido, a Teoria da Relação Jurídica concebia o processo como instrumento da Jurisdição, sendo esta, por sua vez, a atividade reveladora das próprias vontades do juiz.
No Brasil, os Estudos da Escola Instrumentalista do Processo, que entendem o processo como Relação Processual, exerce até os dias de hoje, grande influência no estudo processual pátrio.
Responsável por atribuir escopos metrajurídicos à jurisdição, Cândido Dinamarco, doutrinador de grande expressão da Escola Instrumentalista, propôs que a instrumentalidade do processo não pode ser um fim em sim mesma, mas um meio para atender às necessidades do povo (jurídica, social e política). Com isso, os critérios teleológicos do processo têm fundamentado o protagonismo judicial.
Assim, percebe-se que, ao atribuir à Jurisdição escopos metajurídicos, o instrumentalismo fundamenta os poderes conferidos ao juiz, no processo, pelo Estado, buscando, com isso, dar respostas aos anseios sociais.
REFERÊNCIAS
CINTRA; Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER; Ada Pellegrini; DINAMARCO; Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 24. ed.São Paulo: Malheiros, 2002.
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 10 ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 1992.
LEAL, André Cordeiro. A Instrumentalidade do Processo em Crise. Belo Horizonte: Mandamentos, Faculdade de Ciências Humanas/Fumec, 2008.
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria Geral do Processo: Primeiros Estudos. 4 ed.Porto Alegre: Síntese, 2001.
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional - Vol. 1 - 5ª Ed. Revisada e Atualizada - 2ª Tiragem. 5 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
MARKY, Thomas. Curso Elementar de Direito Romano. São Paulo: Saraiva, 1995.