Introdução
Com a promulgação da Constituição Federal, no ano de 1988, inaugurou-se um novo capítulo na história do ordenamento jurídico brasileiro. A partir de então, os direitos e garantias fundamentais, que estavam amordaçados pelo período ditatorial, ganharam relevo e alçaram à condição de protagonistas.
Além dos direitos civis e políticos e dos direitos sociais, econômicos e culturais, direitos de primeira e de segunda gerações[1], respectivamente, a Carta Magna consagrou os chamados direitos difusos, cujo exemplo mais significativo é o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado.
É com o espírito de prevalência aos direitos e garantias fundamentais, em suas três gerações, que o presente ensaio buscará responder ao problema de pesquisa consubstanciado na seguinte indagação: há, na prática, observância ao primado da ampla defesa, no decorrer do procedimento administrativo de apuração de responsabilidade por danos ao meio ambiente?
O panorama jurídico da proteção ambiental e a sua faceta administrativa será o ponto de partida desta pesquisa e servirá de referencial teórico para a análise da prática jurisdicional.
Apesar de se estar diante de um ensaio, cuja pesquisa ainda será mais aprofundada, serão trazidas, ao final, algumas considerações ou mesmo recomendações com vistas à concretude das garantias previstas na Constituição no âmbito administrativo e judicial.
1. A consagração do meio ambiente como um direito fundamental e as esferas de proteção
A Constituição descreveu a proteção do meio ambiente em seu artigo 225, determinando ao poder público e à coletividade o dever de preserva-lo para as presentes e futuras gerações. Além disso, consignou que as condutas e atividades consideradas lesivas sujeitam os infratores a responderem nas esferas penal, administrativa e civil.
Em que pese haver previsão constitucional de responsabilização nas três esferas, não havia, ainda, à época, regulamentação quanto aos crimes e infrações administrativas. A Lei 6.938/81, que instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente, não supria essa lacuna apesar de seu importante papel de aplicação no âmbito da responsabilidade reparatória (civil).
Foi apenas em 1998, com a publicação da Lei 9.605, que passou a vigorar no país uma norma específica sobre os crimes e infrações administrativas ao meio ambiente. Esta lei foi regulamentada pelo Decreto 6.514/08, o qual inseriu, definitivamente, um procedimento próprio para apuração das infrações ao meio ambiente.
2. O procedimento administrativo de apuração de infrações ambientais e o princípio do contraditório e da ampla defesa
Com a publicação do Decreto 6.514/08 o processo administrativo federal para apuração das infrações ao meio ambiente ganhou contornos próprios. A partir de então, a autoridade administrativa, para aplicar a julgar as sanções descritas no artigo 3º, deverá levar em consideração diversas previsões normativas específicas.
Primeiramente, após constatar uma infração ao meio ambiente, a autoridade deve lavrar o chamado auto de infração, que dentre outras especificidades descritas no artigo 4º, deve aplicar a sanção levando em considerações as atenuantes e agravantes da pena. Cientificado da autuação, o administrado tem prazo de 20 dias para oferecer defesa.
O Decreto garante ao autuado a produção de todas as provas que tenha alegado em sua defesa (art. 118). Por outro lado, permite que a autoridade julgadora requisite a produção de provas necessárias à sua convicção (art. 119). O administrado, antes do julgamento de sua defesa, tem ainda prazo máximo de 10 dias para apresentar alegações finais (art. 122).
Da decisão, que deve ser motivada, rebatendo os argumentos aduzidos na defesa e indicando todos fatos e fundamentos jurídicos em que se baseia, o autuado pode ainda apresentar recurso administrativo em 20 dias (art. 127). São duas as esferas recursais: para a autoridade superior e para o CONAMA (art. 130).
As notificações que sejam endereçadas ao autuado deverão cumprir os passos descritos no artigo 96, por meio do qual, o administrado será intimado, primeiramente, de forma pessoal ou por intermédio de seu advogado. Em não sendo cumprida, expede-se carta registrada com aviso de recebimento e, em terceiro lugar, estando o infrator em lugar incerto, não sabido ou se não for localizado no endereço, é notificado por edital.
Todas essas previsões foram indicadas expressamente no texto legal em respeito ao primado do contraditório e da ampla defesa, que apesar de ser indicado no artigo 95, sua aplicação já era implícita, já que a própria Constituição Federal determinou, em seu art. 5º, LV, que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.
Conforme ensina Freitas (2010, p. 219), no processo administrativo regulado pelo decreto em apreço, “não poderá a administração restringir-lhe o direito de defesa sob pena de infringir a norma constitucional do devido processo legal e, com isso, acarretar a nulidade do procedimento administrativo”. Esta brevíssima análise da inserção do meio ambiente na Constituição Federal, garante referencial teórico para ingressar na análise dos precedentes firmados sobre o assunto.
3. A jurisprudência dos tribunais e o cerceamento de defesa no processo administrativo para apuração de infrações ao meio ambiente
Conforme preceitua o artigo 95 do Decreto 6.514/08, o processo administrativo para apuração de infrações ao meio ambiente é norteado por diversos princípios, dentre os quais se destaca o contraditório e a ampla defesa. Em que pese sua indicação expressa, o que se percebe, na prática, é que diversos procedimentos desconsideram a sua aplicação, resultando em verdadeiro cerceamento de defesa ao autuado.
Neste exato sentido, é possível destacar que a Segunda Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul se deparou com um auto de infração lavrado sem a indicação do prazo para o administrado apresentar defesa. Para o Tribunal, o auto de infração apresentado é nulo e ineficaz, por violação ao contraditório e à ampla defesa[2].
O Tribunal Regional Federal da 3ª Região – TRF3, por sua vez, julgou demanda em que o agente do IBAMA, ao descrever a violação cometida, enunciou nos autos de infração, como causa que o conduziu à aplicação das medidas punitivas, o desmatamento de "floresta nativa de domínio de mata atlântica". Ocorre, contudo, que após análise das provas periciais, restou demonstrado que a área estava inserida no bioma cerrado[3].
Aplicando a teoria dos motivos determinantes[4], a Desembargadora Federal Mairan Maia entendeu pela nulidade dos autos de infração aplicados, já que, em suas palavras: “são inválidos os atos administrativos lavrados por vício quanto à motivação”.
Apesar de não se tratar de um caso de índole ambiental, o Superior Tribunal de Justiça também já se manifestou sobre a nulidade dos processos administrativos, quando houver violação ao contraditório e a ampla defesa. Decisão, esta, que pode ser utilizada como paradigma em todos os demais procedimentos administrativos.
De acordo com a Primeira Turma, ao analisar demanda em que a parte não foi regularmente notificada, entendeu pela nulidade do processo administrativo, já que “a notificação administrativa deve observar as exigências legais, de molde a afastar qualquer dúvida razoável de que o objetivo do ato foi alcançado”[5]. É exatamente esta a determinação contida no artigo 96 do Decreto 6.514/08.
Apesar dos precedentes favoráveis, a comprovação de que o processo administrativo é nulo não se traduz em uma tarefa fácil. Pelo contrário! Isso porque, os atos administrativos gozam de presunção de legitimidade e de veracidade e, para os tribunais, a legitimidade será desconstituída apenas se a parte fizer prova inequívoca de três aspectos: (a) inexistência dos fatos descritos no auto de infração; (b) atipicidade da conduta ou (c) vício em um de seus elementos componentes (sujeito, objeto, forma, motivo e finalidade)[6].
Conclusão
A despeito de todo e qualquer procedimento administrativo ter que respeitar os ditames constitucionais, o que se percebe na prática é que as sanções vêm sendo aplicadas sem levar em considerações garantias básicas do administrado, como, por exemplo, o contraditório e a ampla defesa.
Em razão do patente cerceamento de defesa, os Tribunais nacionais foram convocados a se manifestarem sobre a matéria. Deparando-se, por vezes, com um aparente conflito entre a proteção do meio ambiente e a garantia do contraditório, as decisões oscilam. Por vezes, tem-se o reconhecimento da nulidade, por vezes, tem-se a primazia da presunção de legitimidade em favor dos autos de infração.
Conforme indicado na inicial, o presente se trata de um simples ensaio sobre uma pesquisa que ainda está em andamento. Todavia, desde já é possível perceber a importância da participação dos aplicares do Direito, com vistas a afastar supostos abusos das autoridades administrativas e garantir a todos os cidadãos o devido processo legal.
Referências bibliográficas
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 14ªed. São Paulo: Malheiros, 2004.
FREITAS, Vladimir Passos de. Direito Administrativo e Meio Ambiente. 4ªed. Curitiba: Juruá, 2010.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 14ªed. São Paulo: Malheiros, 2012.
MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente: A Gestão Ambiental em Foco.7ªed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
Notas
[1] Denominação utilizada por Paulo Bonavides, por meio do qual a primeira geração compreende os direitos inerentes à liberdade (direitos civis e políticos), já a segunda compreende os direitos inerentes à igualdade (direitos sociais) e a terceira geração compreende os diretos relativos à fraternidade (direitos difusos). In: Curso de Direito Constitucional. 14ªed. São Paulo: Malheiros, 2004.
[2] TJRS – Apelação Cível 70019020387 – 2ª Câmara Cível – Relator Desembargador Roque Volkweiss. Julgado em 09/04/2008.
[3] TRF3 – Apelação Cível 1404325 – 6ª Turma – Relatora Mairan Maia. Julgado em 27/01/2011.
[4] Conforme Celso Antônio Bandeira de Mello, o motivo é "o pressuposto de fato que autoriza ou exige a prática do ato. É, pois, a situação do mundo empírico que deve ser tomada em conta para a prática do ato" (2002, pp. 350/351).
[5] STJ - RESP/RS 379.332 – 1ª Turma - Relator Ministro José Delegado - julgado em 19/02/02.
[6] TRF3 – Apelação Cível 304987 – 6ª Turma – Relatora Mairan Maia. Julgado em 31/05/2012.