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Aspectos do direito penal do autor na aplicação da pena

30/08/2014 às 11:11
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Não se pode admitir qualquer majoração da pena por circunstâncias ligadas exclusivamente ao autor dos fatos e que em nada se relacionam ao fato criminoso.

O direito penal de um Estado democrático, baseado na igualdade entre os seus cidadãos e fundado na dignidade da pessoa humana, deve preocupar-se em limitar o poder estatal que vise punir alguém “pelo que é” e não “pelo que fez”.

Daí a diferença que se faz, em sede doutrinária, entre o direito penal de fato (ou de ato) e o direito penal de autor. Para este, não interessa tanto a conduta exteriorizada pelo autor do delito, mas principalmente a sua pessoa, seu modo de ser e sua conduta de vida, chegando a formular conceitos de delinquentes natos, personalidade inimiga ou desleal e tipo normativo de autor.[1] Muito marcante esse modelo de direito penal na Alemanha nazista, onde, através de fórmulas genéricas e extremamente abstratas, a punição se dava em prejuízo de quem atentasse contra a sã consciência do povo alemão, ainda que não houvesse previsão legal.[2]

Trata-se de um direito penal ligado aos ideais de um Estado totalitário, em que a mera suspeita já acarreta a perda ou suspensão de direitos.

A punição, nesses casos, é feita sem que tenha havido qualquer lesão a bem jurídico, nem mesmo perigo de lesão, o que evidencia a pretensão de castigar alguém simplesmente por suas condições pessoais, não interessando a conduta praticada nem mesmo a existência de um bem jurídico a ser tutelado. Pune-se, assim, a personalidade do agente, os seus antecedentes, seu caráter e sua conduta social. Enfim, são consideradas para a punição circunstâncias que em nada se relacionam com o fato criminoso.

O direito penal de autor teve aplicação, no Brasil, no período colonial, momento histórico em que foram editadas as Ordenações Filipinas, cuja vigência perdurou por mais de dois séculos no que se refere à parte criminal. O famoso Livro V dessas Ordenações, cuja edição teve por escopo disseminar terror e sofrimento à população da época, trazia as proibições criminais com evidente confusão entre Direito e Moral, chegando, inclusive, a criminalizar condutas inofensivas. Previa-se pena para os hereges, os apóstatas, os ciganos, os feiticeiros, os mouros, os judeus, entre outros.

É possível encontrar modelos de tipos penais de autor na atual legislação brasileira, a exemplo da contravenção penal da vadiagem, que permite a punição[3] de quem se entregar habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência.[4]

O direito penal de autor, modernamente, tem assumido formas mais elaboradas e não tão evidentes como os exemplos acima referidos. Lecionam Zaffaroni, Batista, Alagia e Slokar que:

“além dessas formas tradicionais e puras, porém integrando-as e complementando-as com um conjunto de presunções, encontra-se o novo direito penal de autor que, sob forma de direito penal do risco, antecipa a tipicidade na direção de atos de tentativa e mesmo preparatórios, o que aumenta a relevância dos elementos subjetivos e normativos dos tipos penais, pretendendo assim controlar não apenas a conduta mas também a lealdade do sujeito ao ordenamento. Em algum sentido, tal direito tende a incorporar uma matriz de intervenção moral, análoga à legislação penal das origens da pena pública, com o acrescido inconveniente de presumir dados subjetivos, a partir da afirmação de que a responsabilidade provém de processos de imputação objetiva baseados em expectativas normativas, e não em reais disposições intelectivas internas do sujeito que atua. Esta orientação culmina com o retorno à presunção do dolo, através da chamada normatização, que prescinde da vontade real”.[5]

Convém mencionar, conforme assinala Enrico Pessina, que “o homem delinque não pelo que é, senão pelo que faz”.[6]

O fazer e não o ser, o fato e não a pessoa, a conduta e não as características pessoais do autor é que devem constituir o objeto do direito penal, sobre os quais incidirão os juízos de reprovação, pois o que se afasta disso invade a autonomia privada do indivíduo.

Com maestria, José Antonio Paganella Boschi apresenta seu posicionamento sobre o tema:

“Sem nenhuma pretensão de, com as respostas, darmos o problema por resolvido, queremos registrar nossa adesão à corrente que propõe a punibilidade pelo que o agente fez, e não pelo que ele é ou pensa, para não termos que regenerar a evolução do direito penal e retornarmos ao tempo em que os indivíduos eram executados porque divergiam, e não pelo que faziam”.

“De outro lado, admitir que a pena ou sua maior intensificação tem por finalidade alcançar a compulsória modificação do condenado, mesmo daquele que apresenta déficit de personalidade, significa reconhecer, em última análise, que o Estado é titular do poder totalitário de mudar os outros, anulando o direito de todos à diferença”[7].

Não só na configuração do delito, mas igualmente na aplicação da pena, não se pode permitir qualquer aspecto do direito penal do autor.

Dentre os critérios infraconstitucionais para fixação da pena-base, previstos no artigo 59 do Código Penal, há aqueles que se distanciam do fato criminoso praticado, relacionando-se exclusivamente com a pessoa do acusado, em total afronta à garantia da proibição do direito penal de autor. Mostra-se inaceitável, conforme já mencionado, a valoração de qualidades e condições pessoais com a finalidade de incrementar o poder punitivo estatal.

Nota-se, de plano, que a personalidade, a conduta social e os antecedentes não têm qualquer ligação com o fato delituoso apurado, mas apenas com a pessoa do réu, e valorá-las na aplicação da pena é punir o agente pelo que ele é e não pelo fato praticado; pune-se o ser e não o fazer, na mais abominável concepção de direito penal autoritário, cuja característica principal consiste na perseguição e punição daqueles que ‘ameaçam’ o grupo que detém o poder político.

A atual sistemática punitiva, no tocante às circunstâncias judiciais, tem demonstrado ser uma afronta mais elaborada ao direito penal do fato, pois, ao contrário do primitivo direito penal de autor, em que se castigava a pessoa independentemente de ter praticado qualquer conduta delituosa, agora, pune-se por um fato criminoso, porém aumentando-se a pena pelas qualidades pessoais do agente e por acontecimentos pretéritos que em nada se relacionam com a infração penal.

O maior exemplo disso talvez seja a questão da personalidade do réu, que, nas palavras de Salo de Carvalho, constitui “um dos principais legados da tradição autoritária dos modelos de direito penal do autor”.[8]

Em primeiro lugar, cabe frisar que a análise da personalidade do agente tem se mostrado ser tarefa das mais impraticáveis conferidas pela lei aos magistrados. Primeiro, porque lhes falta conhecimento técnico-científico para tal avaliação. Depois, porque o próprio conceito de personalidade tem sido objeto de enormes discussões científicas sem nenhum consenso a respeito, havendo, inclusive, diversos livros sobre o assunto, cada um com métodos distintos e definições diferentes sobre o termo em questão.[9]

A respeito da personalidade, nos ensina Ney Moura Telles que “considerá-la no momento da fixação da pena é considerar o homem, enquanto ser, e não o fato por ele praticado”.[10]

Complementa o mencionado autor que “facultar ao juiz a consideração acerca da personalidade do condenado importa em conceder ao julgador um poder quase divino, de invadir toda a alma do indivíduo, para julgá-la e aplicar-lhe pena pelo o que ele é, não pelo que ele, homem, fez”.[11]

Há, infelizmente, poucas decisões nesse sentido, a exemplo do voto do Desembargador Amilton Bueno de Carvalho, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

“a alegação de ‘personalidade distorcida, com perfil psicológico apropriado aos delitos praticados’ é retórica, juízes não tem habilitação técnica para proferir juízos de natureza antropológica, psicológica ou psiquiátrica, não dispondo o processo judicial de elementos hábeis (condições mínimas) para o julgador proferir ‘diagnósticos’ desta natureza”.[12]

E não é só em relação à personalidade que há afronta às bases do direito penal garantista. A conduta social e os antecedentes do agente, se considerados na fixação da pena-base para elevar a quantidade de pena de prisão, afrontam da mesma forma os mandamentos constitucionais, por reforçar a culpabilidade de autor.

Muito elucidativo o seguinte julgado, cuja ementa vem transcrita nestes termos:

“As circunstâncias judiciais da conduta social e personalidade, previstas no art. 59 do CP, só devem ser consideradas para beneficiar o acusado e não para lhe agravar mais a pena. A punição deve levar em conta somente as circunstâncias e consequências do crime. E excepcionalmente minorando-a face a boa conduta e/ou a boa personalidade do agente. Tal posição decorre da garantia constitucional da liberdade, prevista no artigo 5° da Constituição Federal. Se é assegurado ao cidadão apresentar qualquer comportamento (liberdade individual), só responderá por ele, se a sua conduta (lato senso) for lícita. Ou seja, ainda que sua personalidade ou conduta social não se enquadre no pensamento médio da sociedade em que vive (mas seus atos são legais), elas não podem ser utilizadas para o efeito de aumentar sua pena, prejudicando-o”.[13]

Os antecedentes e a conduta social são os fatos ocorridos na vida de alguém anteriores ao crime praticado, não se confundindo com as consequências e circunstâncias do crime, isto é, com os efeitos e os elementos acidentais da conduta delituosa.

Dessa forma, os antecedentes não se ligam diretamente ao crime nem dele decorrem, sendo certo que qualquer valoração desses eventos da vida do agente em seu desfavor implica violação do princípio da culpabilidade do fato.

Interessante a colocação do penalista Ney Moura Teles, segundo a qual “fixar pena com base no passado do agente é o mesmo que fixá-la com fundamento em sua raça, na religião que professa, na cor de seus olhos ou de sua pele, ou na textura de seus cabelos. É fixá-la com base em elemento completamente dissociado do fato criminoso por ele praticado”.[14]

Há que se atentar, ademais, para o fato de que os antecedentes, vistos em sua acepção negativa – maus antecedentes –, têm-se mostrado mais danosos aos direitos fundamentais que a própria reincidência no que se refere à aplicação da pena. Isto porque, parcela da doutrina e da jurisprudência, na ânsia de elevar a pena do condenado a qualquer custo, insiste em considerar como maus antecedentes qualquer procedimento a que o réu esteja respondendo ou a que tenha sido submetido – inclusive os procedimentos da infância e da juventude ou até mesmo os inquéritos policiais arquivados – em total descompasso com o princípio do estado de inocência, consubstanciado no art. 5º, inciso LVII, da Constituição da República. Demais disso, mesmo aqueles que pretendem apresentar uma interpretação que se mostre de acordo com o princípio acima mencionado, considerando maus antecedentes apenas as condenações transitadas em julgado há mais de cinco anos e que, por isso, não mais podem ser aproveitadas para efeito de reincidência, acabam conferindo à expressão ‘maus antecedentes’ um caráter perpétuo, que acompanharão o condenado por todo o sempre, estigmatizando-o por toda a sua vida, em grave violação ao valor fundamental da dignidade humana.

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Diante disso, mostra-se inaceitável qualquer medida repressiva que apresente traços ligados ao direito penal de autor, sendo certo que o direito penal condizente com um Estado Democrático de Direito não pode interferir no ser, mas tão-somente no fazer, devendo regulamentar apenas as condutas humanas, e sempre com a mínima intervenção necessária, isto é, somente quando, ocorrendo grave violação a um bem jurídico de extrema importância, não seja possível a resolução do conflito por meio das demais formas de controle social ou das demais disciplinas do Direito.

Há que se frisar, ademais, que, por se tratar de uma garantia, a proibição do direito penal de autor só deve incidir para reduzir o poder punitivo, sendo inaplicável quando se pretende dar interpretação mais benéfica ao acusado, assegurando-lhe o seu status libertatis. É possível, portanto, falar-se em direito penal de autor in bonam partem.

A propósito, diz Zaffaroni que:

“efetivamente, a garantia do direito penal de ato se estabelece, da mesma forma que todas as garantias, como um limite do poder punitivo (não se deve recorrer ao direito penal de autor para agravar consequências penais para além da culpabilidade pelo ato), porém nada impede que se faça direito penal de autor para exercer menor poder punitivo que o assinalado pela culpabilidade de ato (direito penal de autor in bonam partem).[15]

Sendo assim, pode-se admitir que, embora vedada a majoração da pena em razão da qualidade ou condições pessoais de alguém, é certo que tais circunstâncias podem servir de fundamento para a redução da pena quando favoráveis ao acusado.

Em suma, não se pode admitir qualquer majoração da pena por circunstâncias ligadas exclusivamente ao autor dos fatos e que em nada se relacionam ao fato criminoso.


Bibliografia

BOSCHI, José Antonio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. 4ª ed., Livraria do Advogado Editora, 2006.

CARVALHO, Amílton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo. 3ª ed. amp. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.

CARVALHO, Salo. Crítica à execução penal. 2ª ed. rev. amp. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2ª ed. rev. amp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

O'DWYER, Edson. Se eu fosse juiz criminal. Boletim IBCCRIM. São Paulo, v.7, n.86, jan. 2000.

PIERANGELI, José Henrique. Códigos penais do Brasil: evolução histórica. 2ª ed. 2ª tiragem. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.

QUEIROZ, Paulo. Direito penal: parte geral. 3ª ed. rev. aum. São Paulo: Saraiva, 2006.

TELES, Ney Moura. Direito penal: parte geral. vol. II. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1998.

ZAFFARONI, Eugênio Raúl; Batista, Nilo; ALAGIA, Alejandro; Slokar, Alejandro. Direito penal brasileiro I. 2ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

ZAFFARONI, Eugênio Raúl. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007.


Notas

[1] Nesse sentido Luigi FERRAJOLI, Direito e razão: teoria do garantismo penal, RT, p. 455.

[2] O artigo 2º do Código Penal Alemão da época dispunha: “É punido quem pratica uma ação que a lei declara punível ou que merece punição segundo o conceito básico de uma lei penal e uma sã consciência do povo. Se nenhuma lei determinada pode se aplicar diretamente ao fato, este será castigado conforme a lei cujo conceito básico melhor corresponder”.

[3] Não se pode aceitar que a infração penal da vadiagem tenha sido recepcionada pela Constituição de 1988.

[4] Art. 59 da Lei das Contravenções Penais (Decreto-lei n° 3688, de 3 de outubro de 1941).

[5] Direito penal brasileiro I, Revan, p. 133.

[6] Apud. Luigi FERRAJOLI, op.cit., p. 433.

[7] Das penas e seus critérios de aplicação, Livraria do Advogado Editora, p. 211.

[8] Aplicação da pena e garantismo, Lumen Juris, p. 60.

[9] Nesse sentido, Salo de Carvalho, Aplicação da pena e garantismo, Lumen Juris, pp. 54/55.

[10] Direito Penal: parte geral, vol. II, Atlas, p.67.

[11] Direito Penal: parte geral, vol. II, Atlas, p.67.

[12] TJRS, Apelação 70005127295, Quinta Câmara Criminal, Rel. Amilton Bueno de Carvalho, j. 06/11/2002.

[13] TJRS, Apelação 70000907659, Sexta Câmara Criminal, Rel. Sylvio Baptista Neto, j. 15/06/2000.

[14] Direito penal: parte geral, vol. II, Atlas, p.104.

[15] Eugênio Raúl ZAFFARONI, O inimigo no direito penal, Revan, p. 99.

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Sobre o autor
Thiago Soares Piccolotto

Defensor Público do Estado de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PICCOLOTTO, Thiago Soares. Aspectos do direito penal do autor na aplicação da pena. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4077, 30 ago. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31435. Acesso em: 2 nov. 2024.

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