Artigo Destaque dos editores

O surreal debate sobre o aborto no Brasil:

um ensaio sobre o ventriloquismo constitucional

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Os "ventríloquos constitucionais" tentam criar a ilusão de que não estão expressando suas próprias visões de mundo, mas apenas interpretando a Constituição.

Prezado leitor, você é contra ou a favor do aborto? Se for contra, não se esqueça de fundamentar sua opinião, nas rodas sociais, com o direito à vida, garantido constitucionalmente a todos, inclusive ao embrião que evidentemente é um ser humano e, portanto, uma pessoa. Aliás, não se refira a embrião ou feto, mas a nascituro ou, melhor ainda, a “criança ainda não nascida”. Se você for contra, também há um repertório constitucional à sua disposição. Que tal falar então em direito à privacidade, em igualdade entre homens e mulheres, direito ao próprio corpo até em direito à saúde? Aliás, não fica bem referir-se a aborto; bem melhor é falar de “interrupção (de preferência terapêutica) da gravidez”? Em qualquer uma das situações, para mostrar que você é verdadeiramente moderno, sugiro fortemente que use, em rodas mais intelectualizadas, o recurso à ponderação de princípios. Funciona mais ou menos assim: “sei bem que a Constituição Federal contém os princípios X e Y, mas temos que ponderá-los também com os princípios W e Z, e qualquer pessoa razoável há de concordar que estes últimos prevalecem sobre os primeiros”. Atenção para este ponto: nunca deixe de apelar para a “palavra mágica”: razoabilidade. Dizer que sua ponderação foi razoável significa colocar todas as opiniões contrárias na vala comum do inaceitável, porque foi produto do pensamento de pessoas más, alienadas mentalmente ou simplesmente ignorantes.

Caros intelectuais do Direito, isso não é simplesmente maravilhoso? Quando sentirmos aquela nietzschiana vontade de poder (afinal de contas, estudamos tanto, por isso merecemos uma parcela do poder, não é mesmo?) basta olhar para a Constituição Federal como uma série de espaços semânticos em branco nos quais consta apenas formalmente o texto. Realizando o ideal de Jacques Derrida, basta desconstruir o texto e fazer com que seu sentido corresponda à vontade do intelectual de plantão. Não nos esqueçamos porém da necessidade de teatralizar o procedimento: no momento em que reescrevemos o texto constitucional, temos que acreditar piamente que apenas estamos fazendo a mais técnica das interpretações constitucionais. Inspiração para isso não falta: basta lembrar dos ministros do Supremo Tribunal Federal utilizando expressamente a doutrina da mutação constitucional ao mesmo tempo em que declaram placidamente apenas estar interpretando a Constituição. A propósito, não é fantástico esse instrumental doutrinário que possibilita às nossas opiniões sempre estarem de acordo com a CF? Não se trata, enfim, de um poder quase divino essa prerrogativa de utilizar a “malha infinitamente elástica” da CF para cobrir com vestes reais as nossas opiniões pessoais?

Esse é o fenômeno do “ventriloquismo constitucional”. Enquanto os ventríloquos de programas infantis criam a ilusão de que o boneco sentado no colo deles está falando, os ventríloquos constitucionais tentam criar a ilusão de que não estão expressando suas próprias visões de mundo, mas apenas interpretando a Constituição. A diferença fundamental entre as duas situações é que, na primeira, tanto o público quanto o ventríloquo sabem que tudo não passa de uma encenação, enquanto que, na segunda, todos acreditam piamente que o boneco fala por si mesmo. Mais do que uma forma de teatro (e, por que não, de retórica?), a chamada “interpretação constitucional” brasileira se sustenta, com raras exceções, no mais completo autoengano. Nesse sentido, o constitucionalismo moderno deixa de ser a submissão do ordenamento jurídico à constituição e passa a ser a submissão da própria constituição ao “sentimento constitucional” da classe intelectual, formado por seus valores e projetos políticos.

Talvez a discussão jurídica a respeito do aborto seja o exemplo mais ilustrativo dessa situação. As possíveis respostas à questão do status jurídico do aborto (entre o completamente legal e o completamente ilegal, passando por quase infinitas gradações) tem fundamento em valores profundamente arraigados em cada pessoa ou grupo de pessoas. A experiência internacional, especialmente a norte-americana, tem demonstrado a inviabilidade prática de qualquer espécie de debate sobre o tema, uma vez que ambos os lados partem de premissas inconciliáveis entre si: geralmente, os favoráveis ao aborto fundam seus argumentos na autonomia da mulher sobre seu próprio corpo (baseado na ética feminista radical) enquanto que os contrários ao aborto fundam seus argumentos na caracterização do feto como pessoa e, portanto, portador do direito à vida (geralmente baseados em concepções de direito natural). Ora, é impossível haver qualquer debate real quando os opositores fundam seus argumentos em premissas totalmente díspares, uma vez que não há ponto em comum para o qual possam eventualmente convergir. Em situações como essa, não há debate público, mas pura e simples luta política, seja pela tomada de posições estratégicas (como as de intérpretes autorizados da CF) seja pela mera vitória numérica.

É nesse cenário em que se encontram os pretensos intérpretes da CF na questão do aborto: comportam-se como juristas orgânicos, para os quais o Direito é apenas mais um meio (relativamente sofisticado) para ganhar posições na luta política. Assim, o ordenamento jurídico deve vergar o quanto for necessário para sustentar as opiniões pessoais para aqueles que têm pretensão de ser guias da humanidade (nunca se pode desprezar o apetite dos intelectuais pelo poder...).

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Para todas essas pessoas, na imensa maioria, muitíssimo bem intencionadas, sinto ser o portador de más notícias: a constituição não é um texto totalizante, que abranja e responda a todas as questões possíveis e imagináveis da convivência social. Pelo contrário: a constituição, como qualquer documento jurídico, é fruto do imperfeito trabalho de seres humanos, por natureza limitados. Sua função não é trazer o mundo perfeito, o paraíso na terra, mas apenas de prover maior segurança jurídica para a solução de determinadas questões. Aquele que pretenda ver na constituição os atributos da onisciência, da onipotência e da onipresença, em outros termos, a solução de todos os nossos problemas, está realizando uma bizarra idolatria constitucional, uma crença de fundo religioso (uma religião civil, sem dúvida) segundo a qual a constituição tem poderes típicos de divindades. Nada há de estranho em um cristão ou um muçulmano considerarem que, respectivamente, a Bíblia e o Alcorão tem as respostas a todas as questões humanos, pois essa crença é da própria essência do fenômeno religioso. Porém, um ordenamento jurídico que se pretenda laico não pode admitir a sua submissão a uma específica concepção de Deus e nem a um objeto ao qual se atribuam poderes divinos. Do contrário, depois de termos ultrapassado, ao menos no Ocidente, a submissão do Direito à religião, passaríamos à absurda situação de tratar o Direito como uma religião (a propósito, a nossa fixação em resolver os problemas sociais por meios jurídicos não seria um produto mais da fé do que da razão?).

Tendo em vista essa noção, realista e prudente, da função da constituição na vida social, a questão é: qual o status constitucional do aborto? Seria permitido ou proibido? Ao que parece, porém, para a decepção dos militantes de ambas as causas, o aborto não tem status constitucional. Por um lado, o direito à vida é garantido a todos os brasileiros (art. 5º, caput), mas, para qualificar alguém como brasileiro nato, a CF requer sempre o nascimento, em regra no território da República Federativa do Brasil (art. 12, inc. I). Portanto, a CF é completamente silente quanto ao direito à vida do nascituro. Por outro lado, não há nenhuma referência constitucional a um “direito ao aborto”. Da mesma forma, nenhum dos conceitos jurídicos correntes à época dos constituintes originários (sim, meus caros, a CF tem autores, e não somos nós!) era interpretado no sentido de incluir, ao menos implicitamente, o direito ao aborto. Considerá-lo como decorrência dos direitos à privacidade, à igualdade entre homens e mulheres ou à saúde era impensável à época, constituindo hoje um exercício de fértil imaginação jurídica.

A despeito disso, sabemos que não é realista pedir que alguém voluntariamente limite seu poder: quanto menor o controle externo sobre o exercício de um poder, maior é a possibilidade de exercê-lo sobre todas as áreas que aprouverem a seus titulares. Esse raciocínio é elevado ao grau máximo no caso do Supremo Tribunal Federal, que detém o poder de decidir definitivamente todas as questões jurídicas no País. Por isso, quando houver a necessária conjunção das vontades de poder nesse tribunal, a questão do aborto será decidida (muito provavelmente, pela sua legalização). O palco dessa peça de simulação de interpretação constitucional pode ser facilmente imaginado: julgando uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (a famosa ADPF de mil-e-uma-utilidades), os ministros do STF citarão belos e famosos princípios constitucionais, fazendo os mais habilidosos exercícios de ponderação. Ao final, a soma das posições individuais dos ministros da corte estará revestida com a mais bela roupagem da retórica constitucional e a vontade de poder estará concretizada em uma ordem vinculante para toda a nação. Aqueles que concordarem com a decisão, certamente a comemorarão com entusiasmo. Haverá, porém, motivo para um luto jurídico, pois mais uma vez a decisão judicial terá sido substituída pelas escolhas pessoas dos juízes, marcando um especial capítulo da lenta e contínua degradação do Estado de Direito no Brasil.

Para os ansiosos em resolver juridicamente todas as questões sociais, ainda é necessário responder à pergunta: não sendo o aborto matéria constitucional, o caminho estaria livre para a sua legalização? A solução para este problema encontra-se em terreno ainda muito pouco explorado pela doutrina penal brasileira: os tratados internacionais de direitos humanos (sim, meus caros, existe mais matéria penal nesses tratados que a mera proibição da prisão do depositário infiel...). Esses tratados, contudo, serão objeto de outro artigo.

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Sobre o autor
Alexandre Magno Fernandes Moreira

Procurador do Banco Central.<br>Mestre em Direito pela Vanderbilt University.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOREIRA, Alexandre Magno Fernandes. O surreal debate sobre o aborto no Brasil:: um ensaio sobre o ventriloquismo constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4188, 19 dez. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31524. Acesso em: 28 dez. 2024.

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