UM DISCURSO SOBRE A TOLERÂNCIA

31/08/2014 às 19:02
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O artigo debate a importância da valorização da tolerância como valor essencial da Democracia. A necessidade de separação entre política e religião como estratégias de poder, e relevância dos partidos políticos para expressar as diferenças de pensamento.

Tolerância é uma palavra de origem latina, é uma variação de “tolerare”, e tem por significado a aceitação, a indulgência perante algo e, também, flexibilidade, transigência e permissão. É uma palavra que representa um valor supremo, base das principais religiões e um dos elementos essenciais da Democracia.

Para Gandhi “a lei de ouro do comportamento é a tolerância mútua”. Para o mestre indiano jamais pensaremos da mesma maneira, razão pela qual nunca veremos senão uma parte da verdade, e nesse momento é necessária a tolerância. Ainda segundo ele, “a raiva e a intolerância são inimigas gêmeas da compreensão correta".

Assim como não existe Democracia sem liberdade, sem a igualdade plena de acesso aos seus benefícios pelos cidadãos e cidadãs, sua existência também não é possível com a ausência de tolerância, de respeito à diferença, ao debate e à inclusão.

A tolerância é defendida em Declaração de Princípios pela UNESCO, produzida na 28ª reunião em Paris, em 16 de novembro de 1995, de onde extraímos: “Nós os povos das Nações Unidas decididos a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra,... a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana,... e com tais finalidades a praticar a tolerância e a conviver em paz como bons vizinhos".

Aqueles que discursam contra pobres, contra estrangeiros, contra membros de religiões diferentes, contra o direito de não ter religião, contra diferentes opções sexuais, são intolerantes e, portanto, atuam contra a Democracia.

O radicalismo injustificável, o sectarismo, o fundamentalismo religioso, dentre outras condutas fortemente dogmáticas são símbolos de intolerância. Também são exemplos de intolerância o racismo, o sexismo, e ações de violência extremadas.

Portanto, quando vemos profissionais, como jogadores de futebol, recebendo xingamentos racistas em um estádio de futebol, apenas pela cor da sua pela, ou ainda quando torcedores entram entre confronto direto contra aqueles que defendem outros matizes clubísticos, também estamos diante de absoluta intolerância.

A intolerância chega todos os dias em nossas casas por meio de e-mails apócrifos, que pregam discursos contra moradores de outras regiões do país, contra os migrantes, moradores de ruas, pobres, beneficiários do Bolsa-família, contra os membros de outras religiões e contra a sexualidade de figuras públicas. A maioria destas pregações, além de ofensivas à dignidade das vítimas e de quem recebe o e-mail, também caracterizam crimes tipificados no Código Penal brasileiro.

Somos diariamente bombardeados pela mídia que defende a intolerância contra os movimentos sociais. Muitos, ao exercer a sua livre expressão de pensamento em 2013, também exerceram intolerância ao ofender velhos militantes que carregavam bandeiras partidárias, e ao gritarem de forma violenta “sem partido, sem partido...”.

Mais grave ainda foi a postura de alguns representantes dos mesmos meios de comunicação que no passado refutavam e criminalizavam os protestos do MST na luta pela terra, do MPL objetivando a melhoria do transporte público, ou o Movimento de Luta Pela Moradia, e passaram a glorificar os protestos “dos sem partidos”.

Não existe Democracia sem partidos, não existe liberdade de expressão sem partidos, não existem diferenças sem partidos, não existe tolerância sem partidos. Nem mesmo a utopia anarquista era contra organizações como as partidárias, mas sim contra o domínio do estado. Todas as vezes que convivemos com governos que suprimiram a diferença dos partidos, acabamos nos defrontamos com verdadeiras tragédias humanas, como nos exemplos do nazismo, do fascismo e das ditaduras militares implantadas em diversos países da América Latina entre as décadas de 60 e 80 do século passado.

O movimento nazista talvez seja a forma mais absoluta de intolerância. Mas além do Nazismo antissemita, e também contra ciganos, homossexuais, deficientes físicos, comunistas, e todos aqueles que representavam etnias e formas diferentes de pensamento, a humanidade enfrentou a intolerância e outras graves tragédias.

Cito como outro exemplo indiscutível de intolerância a “Santa Inquisição”, de base religiosa, onde pessoas eram queimadas na fogueira por praticar outras crenças ou defender conhecimentos diferentes, inclusive científicos, como é o caso de Giordano Bruno.

Outra recente prova de intolerância foi o bombardeio de Gaza, num uso indiscriminado e desproporcional da força por aqueles que já sofreram com o holocausto nazista no passado. Novamente, não estamos apenas diante de diferenças políticas, posto que o centro da discussão também é religioso.

Religião e política são coisas distintas, e quando se misturam resultam em intolerância. É por esta razão que neste assunto acompanho Victor Hugo: “a tolerância é a melhor das religiões”.

Jesus Cristo afirmou, segundo o livro de Mateus (22:21), “Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”. Nesta frase fez uma clara divisão entre o mundo de Deus e o mundo dos homens. O mundo de Deus era o da virtude, o da oração, o dos bons pensamentos. Aos homens cabia a economia, a política e todas as ações da vida material.

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Cristo jamais quis comandar uma revolta política contra os romanos, seu objetivo era essencialmente transformar o espírito da humanidade. Talvez por isso seus ensinamentos sejam aceitos por três dos maires grupos religiosos do planeta: o judaísmo, o muçulmanismo, e a cristianismo.

Em parte tem razão Schopenhauer quando afirma que “a intolerância é intrínseca apenas ao monoteísmo: um deus único é, por natureza, um deus ciumento, que não tolera nenhum outro além dele mesmo”. Eu iria mais adiante, não é o Deus intolerante, mas seus pregadores mais radicais.

Mas a tolerância, como ensina, novamente, Gandhi, “não significa aceitar o que se tolera”. Se todos aceitassem as mesmas ideias, não haveria razão para tolerância. Provavelmente não haveria evolução do pensamento ou da ciência, e ainda estaríamos vivendo da Idade da Pedra.

A diferença é uma parte essencial apenas da religião, mas da política. É expressa por meio da criação de partidos, sindicatos, ONGs e de outras formas de organização política. O mito do individualismo absoluto só existe no campo das ideias.

O exercício da política admite até mesmo a predominância de ideais sem a tomada do poder formal do Estado. A este fenômeno, damos o nome de hegemonia. Por outro lado, é perfeitamente possível governar com a diferença na própria administração, como observamos em Governos de Coalisão.

Portanto, propor a construção de um governo de forma apartidária é um incentivo à deseducação política.  É uma pregação da intolerância, e uma ofensa ao desenvolvimento da Democracia.

Não há governo dos melhores sem partidos. A aristocracia (o governo dos melhores) é uma idealização filosófica de Aristóteles, facilmente convertida, no mundo real, em oligarquia. Eu diria mais, é uma pregação demagógica de quem pretende chegar ao poder sem expor ideias consistentes.

No mesmo sentido, não vejo justificativa para o retrocesso programático dos aspirantes ao poder para agregar votos do radicalismo religioso, daqueles que misturam política com religião, e promovem verdadeiras cruzadas contra direitos fundamentais e contra a dignidade da pessoa humana.

É evidente que devemos muito a movimentos libertários construídos por grupos religiosos como os das pastorais operárias, da terra e de ações de inclusão social promovidas por igrejas evangélicas. Também foi importante a “teologia da libertação” ao admitir para milhões de católicos o direito de buscar uma vida melhor na terra. Mas como disse, são ações e teorias libertárias, e não projetos políticos de poder e de exclusão do pensamento diferente.

A história já comprovou que as demagogias resultaram em intolerância e opressão, razão pela qual é importante uma Reforma na Política, mas garantindo o pleno direito do exercício ativo da Democracia através da organização em Partidos.

Todas as experiências de processos participativos que conhecemos demonstraram perfeita convivência com a existência dos Partidos. Na verdade contribuíram para oxigenar a representação partidária, e para aperfeiçoar a Democracia, pois também não existe participação consciente sem organização.

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Sobre o autor
Sandro Ari Andrade de Miranda

Advogado no Rio Grande do Sul, Doutorando em Sociologia.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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