3 PODER NORMATIVO DAS AGÊNCIAS REGULADORAS BRASILEIRAS
Entender de onde descende o poder normativo posto ao uso das agências reguladoras é exercício que não pode passar ao largo de se explicitar que o vocábulo que adjetiva tais entidades refere-se não tão-somente a esta função por elas exercida. Muito embora resida nesta característica o motivo de maior debruce por parte da doutrina, na verdade, as agências praticam uma plêiade de atividades que são intrínsecas à função regulatória, e que entre elas encontra-se, também, a função normativa. Como visto no capítulo anterior, no tocante às suas características, estas entidades são multifacetárias, e em razão disso, desenvolvem atividades das mais diversas na ultimação de seu mister.
Traz-se tal ressalva em razão de que, ao lado da atividade regulatória normativa, assomam-se a função coercitiva, adjudicatória, fiscalizadora, de coordenação e organização, entre outras, numa gama de atribuições que se conjugam para dar ensejo à forte autonomia de que estes entes são protagonistas. Ademais, como bem assevera e adverte Marques Neto (2009), realçar o caráter meramente normativo das agências levaria a um baralhamento que tende a reduzir o alcance da atividade reguladora, e a confundir os conceitos de atividade regulatória e atividade regulamentar. Portanto, a função normativa instrumentalizada pelas agências não é a única das atribuições que a singulariza, mas é, talvez, a de maior relevância.
Assim, cientes do cipoal de atividades acometidas às agências, que enseja inúmeros debates e é labor dos mais custosos, aqui se pretende circunscrever àquele atributo que mais vem sendo posto à prova, e notadamente tem causado dissonâncias doutrinárias, a saber, seu poder normativo, para entendendo em que consiste e de onde emana tal atributo, delimitar seu espectro de atuação, e arvorar-se, mais à frente, em traçar limites ao seu uso.
Posta a ressalva quanto à variedade de funções delegadas às agências, remete-se, novamente, às características que Moreira Neto (2002) apresenta como ínsitas àquelas entidades para afirmar que possivelmente a mais altaneira delas, como já dito, é a que diz respeito à possibilidade de tais entidades emitirem ato com força de norma.
As agências no seu propósito, escoradas no poder normativo do qual são possuidoras, podem emitir atos de caráter geral, abstrato e impessoal, a fim de dar cumprimento à sua atividade de ente regulador. Dita competência deriva da lei que criou a entidade, diferençando-se, é bem verdade, no que toca à extensão das matérias sujeitas à disciplina do ente e a forma como se dá a atribuição de tal competência, de agência para agência, mas comum, guardando-se as singularidades apontadas, a todas elas. As leis instituidoras de tais entes na órbita federal ilustram em diversos dispositivos seus o modo como conferem tal poder às agências reguladoras[6].
Não poderia ser diferente. Subtrair às agências tal possibilidade engessaria sua atuação e não a distanciaria em nada de tantos outros entes da Administração Pública. Para bem exercer seu papel de ente regulador foi que a própria Constituição Federal em seu artigo 174 acometeu ao Estado tal prerrogativa, e este o concretiza, também, por meio das agências. Nessa esteira, é assente na doutrina que tais entidades possuem tal atributo. Carvalho Filho (2006, p. 51) dá exemplo do argumentado:
A natureza e os fins que inspiraram a criação das agências reguladoras não poderiam subtrair-lhes o poder jurídico de produzir algumas normas jurídicas de caráter geral, abstrato e impessoal, com carga de densidade apropriada ao cumprimento dos objetivos específicos das entidades. Afinal, não é difícil entender que, para regular certos setores da vida social, quer relativos à prestação de serviços públicos, quer ligados a atividades privadas de relevância pública, é absolutamente insuperável a necessidade de serem editados atos que, sem a menor dúvida, terão incidência genérica sobre quantos estejam, de alguma forma, situados no âmbito do setor suscetível de regulação.
E arremata o autor:
Poder normativo, em sentido geral, é a capacidade atribuída a determinado órgão ou pessoa da Administração no sentido de expedir normas com carga de incidência geral, abstrata e impessoal. A ordem jurídica confere essa capacidade a inúmeros órgãos e pessoas, e estes podem exercê-la por meio de diversas espécies de atos.
Portanto, do até aqui exposto, não se caminha mal infirmando, abalizado no pensamento de Bandeira de Mello (2011), que se trata de forma qualificada do exercício do dever-poder administrativo do Estado. Explica-se. A lei imputa certos deveres às agências reguladoras, ao passo que, ela também, a lei, outorga-lhes os poderes correlatos para que aqueles deveres sejam adimplidos. Os atos normativos de que fazem uso as agências são, ao lado de todas aquelas outras competências anteriormente citadas, instrumentos de consecução de seus fins institucionais. Em consequência disso, não se pode cogitar da supressão de tal capacidade, sob pena de se desvirtuar irremediavelmente os desígnios para os quais o ente foi instituído.
Se ao passo de que não há maiores celeumas a respeito de que as agências fazem uso desse poder normativo, e que este faz parte do plexo de atributos destas, tal uniformidade não é encontrada quando se busca definir a natureza jurídica de tal poder, qual a conformação jurídico-legal dos atos normativos editados por tais entes, fazendo exsurgir na doutrina pátria as mais variadas linhas de argumentação a fim de dar legitimidade à atribuição de tal prerrogativa.
É possível esquematizar as correntes que se lançaram no intento de definir a natureza jurídica dos atos normativos emitidos pelas agências em uma infinidade de pensamentos que, por vezes, não guardam a menor correlação uns com os outros. Fazendo-se o corte epistemológico necessário, apresentam-se dois grandes pólos, de extrema significância na doutrina, muito embora se saiba haver outras tantas correntes isoladas como a que defende Di Pietro (2004), atribuindo um caráter de ato normativo-administrativo às normas editadas pelas agências. Aqui, imprescinde cuidar das duas correntes que se filiam a maior parte dos doutrinadores, aqueles que enxergam o fundamento dos atos das agências à luz da tese da regulação e, doutra banda, aqueles filiados à tese da regulamentação.
A tese sustentada por aqueles que defendem encontrar-se o substrato do poder normativo posto às agências no sistema de regulação, vai buscar nos novos contornos os quais o Estado passou a ostentar como agente no cenário econômico, as bases para pugnar que foi a afirmação desse modelo regulador que exigiu uma quebra com as burocráticas formas de se instituir padrões normativos. Diante de todas as funções acometidas às agências, e por força da própria natureza da atividade regulatória em si, e, ainda, por ser cada vez mais exigida uma prestação mais célere do ente estatal para confrontar as meteóricas guinadas que o cenário econômico sofre, é que se demanda uma prestação, inclusive normativa, mais pragmática.
Isto porque, aqueles que defendem tal doutrina, salientam sempre que função normativa é apenas uma das muitas atribuições delegadas às agências. Seu espectro de atuação, em consequência da autonomia de que são possuidoras, é dos mais vastos. Portanto, não só a função normativa, mas todas aquelas afetas à consecução dos desígnios institucionais das agências – regulação executiva, regulação judicante, regulação de monopólios, regulação para competição - encontram respaldo no modelo que foi adotado.
Para Souto (2011, p. 96), é a Carta Maior quem consubstancia primordialmente essa tese:
A regulação é prevista no art. 174 da Constituição Federal como instrumento da intervenção do Estado na economia, mencionada ao lado da função normativa com o mesmo objetivo. Isso autoriza fixar uma premissa de que essa função normativa se desenvolve na forma de normas gerais previstas no art. 24, I, CF, nos termos da qual seria executada a atividade administrativa de regulação.
Portanto, para tal doutrina, não há que se cogitar de uma usurpação de função legislativa, por ter sido a própria Carta Magna quem consagrou tal poder. Utiliza-se ainda da máxima de Rui Barbosa de que “quem dá os fins não pode subtrair os meios”, de modo que seria ilógico dentro do panorama vislumbrado, que o ordenamento condicionasse a atuação normativa das agências a um processo de delegação de poderes, por ser tal raciocínio incompatível com a própria natureza da atividade regulatória.
Marques Neto (2009, p. 38), defensor da tese de que o poder normativo das agências descende de tais funções de agente regulador, rechaça o argumento de que este se conforma dentro da atividade regulamentar, justamente por entender que foi por opção constitucional que se diferençou tais institutos, e, ademais, por infirmar, como o fazem aqueles que pugnam a tese aqui esboçada, que função normativa é apenas uma das vertentes a que faz uso o modelo de regulação, não podendo ser a esta restringindo. Aduz o autor:
Porém, não fosse essa plêiade de atividades intrínsecas à função de regulação, a sua distinção da atividade meramente normativa e regulamentar, entre nós, já estaria patente do próprio texto constitucional. Com efeito, o artigo 174 da CF imputa ao Estado o papel de ‘agente normativo e regulador da atividade econômica’ (a qual, nos parece, é aqui utilizada no sentido amplo, compreendendo tantos as atividades econômicas em sentido estrito como aquelas consideradas serviços públicos). Ora, se o constituinte se arvorou no dever de distinguir os dois papéis do Estado em face da ordem econômica, separando a atividade regulamentar (normativa) da atividade regulatória (esta última compreendendo o detalhamento dos aspectos de fiscalização, incentivo e planejamento), é certo que, para a ordem constitucional brasileira, regular não é sinônimo de regulamentar.
Diante disto, parece que para esta doutrina é a própria adoção do modelo de Estado regulatório que dá vazão ao poder normativo ostentado pelas agências, perfazendo-se o entendimento de que dito atributo é uma externalização daquelas faculdades que a própria Constituição deixou a entender do seu texto para a concreção do modelo regulador. Oliveira (2006) chega inclusive a defender que em razão do evidente distanciamento que o legislador procurou imprimir entre a regulação e a regulamentação, no que tisna à primeira, este pretendeu “afastá-la da produção de meras normas de caráter complementar, atribuídas, como se sabe, às normas de Direito Administrativo Brasileiro”. De oposto, a mens legislatoris passou assim a apontar para a possibilidade de que normas administrativas inovassem na ordem jurídica, desde que restritas ao marco regulatório do setor.
Não obstante tais posicionamentos, sua compatibilização com o regime constitucional/administrativo brasileiro nos moldes acima pensados se perfaz de forma canhestra. Não se discute aqui as peculiaridades das funções acometidas às agências, mas sim, de forma mais pontual, qual o fundamento jurídico-legal que conforma a possibilidade de que elas emitam atos normativos. Por isso, emitir atos com força de norma dentro do arcabouço jurídico pátrio não pode ser creditado pura e simplesmente à escolha de um modelo de Estado regulatório. Fazer isso é retirar a discussão do cenário jurídico e repousá-la num cenário tipicamente fático-econômico.
De conseguinte, chega-se a outro entendimento esposado na doutrina, quer seja, aquele que atribui à atividade regulamentar o poder normativo conferido às agências. No entender desta doutrina, os atos normativos de que fazem uso os entes reguladores esbarram, em consequência do regime legal, em parâmetros cunhados pelo sistema de normas que se adotou no Brasil. Daí que a melhor solução no sentido de identificar tais atos ao direito positivo é dar-lhes caráter de normas regulamentares, semelhantes, saliente-se bem, àquelas emitidas pelo chefe do Poder Executivo.
Via de consequência, tais atos devem se revestir de caráter infralegal e subordinar-se sempre aos ditames da lei ordinária e também do decreto que regulamentou a instituição da agência. Não podem em decorrência disto, inovar na ordem jurídica pátria, conquanto o direito brasileiro repudie os chamados regulamentos autônomos. O mecanismo utilizado pelas agências tem de ser reverente à lei que estabelece a disciplina básica sobre os setores sob regulação, e, pautada por essa norma, é que cabe às agências manifestarem seu poder normativo na forma de executar suas diretrizes.
Caminha nesse sentindo Justen Filho (2002), para quem a agência reguladora não pode na produção do fenômeno normativo agir além ou diversamente do que seria reconhecido ao Poder Executivo fazer. Entender de outra maneira levaria a legitimar uma competência especial sem respaldo algum na ordem jurídica posta e que acarretaria numa delegação incompatível com o sistema que o ordenamento brasileiro abarcou. É o que defende, também, Freitas (2004, p. 48):
[...] os atos regulatórios devem ser infralegais, restando vedado ao administrador inovar como legislador. Assim, por exemplo, a resolução de uma agência reguladora pode inovar apenas como ato administrativo, porém nos exatos limites da lei. A infralegalidade reivindica uma sadia autocontenção.
Concorda-se com o autor, sobretudo no que concerne ao fato de que, como ato administrativo tendente a minudenciar aquilo que veio a ser disposto de forma genérica na lei, aí sim reside o escopo dos atos normativos das agências, como órgão técnico e especializado imbuído deste labor de dar efetividade à abstração legal e instrumentalizar suas funções de ente regulador. Acertado, também, creditar a este status de ato subordinado à lei uma ferramenta importantíssima de limitação a este poder normativo.
Não afastando aqui em absoluto a certeza de que as agências reguladoras desempenham um papel impregnado de acentuada autonomia e, definitivamente não o poderia ser de outra maneira, reforçando-se, uma vez mais, as muitas atribuições das quais são possuidoras, o que se pretende argumentar é, no que toca a esta peculiar função de agente dotado de poder normativo, tal autonomia não pode ser invocada para simplesmente subverter a hierarquia a qual nosso ordenamento consagrou, a diferençar atos legislativos de atos normativos.
Adotando a tese que abraça a regulação como argumento suficiente à legitimação do poder normativo das agências, estar-se-ia se distanciando de um enfoque jurídico do tema - mais uma vez infirmando - para tratá-lo sob a ótica de uma visão fático-econômica. Como antes salientado, o Estado brasileiro adotou sim um modelo regulador encartado em seu texto constitucional, no entanto, isto não imprime que se possa cogitar de uma delegação de competências normativas especiais às agências sem o mínimo de respaldo legal e sem parâmetro em nossa escala hierárquica de normas. Na afirmação de todas outras competências poder-se-ia socorrer-se de tal paradigma, mas, quando o cerne é discutir a proveniência do poder normativo que lhes é entregue, em absoluto este não pode se afastar de uma análise legal. Afinal, e aqui esboçando tema tratado mais adiante, em última análise, todo e qualquer ato derivado de órgãos ou entidades da Administração Pública, deve reverenciar o princípio da legalidade, insculpido no art. 37, caput, da CF.
A Suprema Corte referendou tal tese no bojo da ADI nº 1668/DF. Na presente ação suscitava-se dúvida se a ANATEL poderia editar resoluções que viessem a derrogar a Lei de Licitações. O STF adotando interpretação conforme a Constituição posicionou-se no sentido de que a competência normativa da ANATEL é de natureza regulamentar, devendo se pautar, portanto, pelos limites legais. (BRASIL. STF, 1998).
Percebe-se do excerto que se transcreve do acórdão:
[...] 3) deferir, em parte, o pedido de medida cautelar para: a) quanto aos incisos IV e X, do art. 19, sem redução de texto, dar-lhes interpretação conforme à Constituição Federal, com o objetivo de fixar exegese segundo a qual a competência da Agência Nacional de Telecomunicações para expedir normas subordina-se aos preceitos legais e regulamentares que regem outorga, prestação e fruição dos serviços de telecomunicações no regime público e no regime privado [....].
No mesmo sentido acima esboçado se posicionou também o Superior Tribunal de Justiça, do que se depreende do julgamento do Recurso Especial de nº 434.303/PR, Relatora Ministra Eliana Calmon.
Tema que pode ser também discutido no âmbito da tese da regulamentação é aquele que perfilha a bastante recente construção doutrinária referente à deslegalização ou delegificação.
A deslegalização ou deslegificação é enunciado que ganhou bastante notoriedade na França sob a epígrafe de domaine de l’ordonnance. Tal fenômeno pode ser entendido como o mecanismo através do qual determinada lei expressamente transfere a normatização de determinado campo aos regulamentos independentes. Enterría e Fernández (2001, p. 273) dão significativa definição do instituto:
Chamamos deslegalização à operação que efetua uma lei que, sem entrar na regulação material de um tema, até então regulado por lei anterior, disponibiliza aludido tema ao poder regulamentar da Administração.
Os adeptos desta doutrina buscam na famigerada especialidade de que são dotadas as agências um dos argumentos a dar substrato a dita tese, justificando que, na impossibilidade de por mais que o legislador tentasse tratar de todas as minudências afetas às competências normativas destes entes, tal desígnio nunca restaria por esgotado, o que compele aquele a delegar esta função complementar à Administração Pública. Em outras palavras, a própria lei, por reconhecer sua falibilidade, deixaria de normatizar para apenas se referir, ou em melhores termos, indicar aquele órgão que o fará. É a retirada pelo próprio legislador de algumas matérias do domínio da lei (domaine de la loi) para o domínio do regulamento (domaine de l’ordonnance).
Aragão (2005, p. 422) perfilha tal senda de raciocínio, o que se depreende do abaixo transcrito:
Por este entendimento, com o qual concordamos, não há qualquer inconstitucionalidade na deslegalização, que não consistiria propriamente em uma transferência de poderes legislativos, mas apenas na adoção, pelo próprio legislador, de uma política legislativa pela qual transfere a uma outra sede normativa a regulação de determinada matéria. E, com efeito, se este tem poder para revogar uma lei anterior por que não o teria para, simplesmente, rebaixar o seu grau hierárquico? Por que teria que, direta e imediatamente revogá-la, deixando um vazio normativo até que fosse expedido o regulamento, ao invés de, ao degradar a sua hierarquia, deixar a revogação para um momento posterior, ao critério da Administração Pública, que tem maiores condições de acompanhar e avaliar a cambiante e complexa realidade econômica e social?
Advoga-se ainda, dentro da deslegalização, a tese de que o chamado processo de novo posicionamento estatal trazido com o Estado regulador implicou uma nova exegese dos dispositivos constitucionais, com certa mitigação, notadamente, ao princípio da legalidade, importando uma releitura de tal cânone, contraposto com a dinâmica da evolução social que solicita do Estado uma resposta mais “de pronto”, distanciando-se dos rigorismos e anacronismos da administração de antanho. Portanto, como bem pondera Sundfeld (2005), o legislativo não deixou de criar as leis, o que se deu foi um maior aprofundamento na atuação normativa do Estado, e tal aprofundamento, é consequência indissociável das novas funções reguladoras, e esta se materializa por meio dos atos normativos expedidos pelas agências, que o fazem arrimados sob o fundamento da tese da deslegalização.
O papel delegado às agências, para Carvalho Filho (2006, p.56), é de destrinchar a norma da lei, como já se afirmou, e esta sempre o faz, seguindo a tese encampada pelo autor –deslegalização - pautada por parâmetros (delegation with standards) que ele assim define:
[...] Conquanto seja bastante abrangente o campo a ser regulamentado, nunca poderá o ato de regulação extrapolar os limites preestabelecidos na norma legal. A deslegalização não retrata delegação legislativa ilimitada, de modo que o ato de regulação deve pautar-se pelos parâmetros básicos insculpidos na lei. Cuida-se de verdadeira “delegação com parâmetros” (delegation with standards), pela qual ao Legislativo é que cabe fixar os limites dentro dos quais poderá ser produzido legitimamente o ato de regulação.
Tal raciocínio, no magistério do autor, bem como no de tantos outros que defendem tal tese, como Barroso (2009, p. 173), é suficiente para espancar as críticas daqueles que consideram a deslegalização uma “fraude ao processo legislativo contemplado na Constituição” e que acoimam tal mecanismo de uma espécie de delegação legislativa inominada, espécie não amparada no ordenamento brasileiro.
No que pese a importância deste posicionamento, há de se perceber que o arcabouço legal pátrio não o dá escoras. O fenômeno da deslegalização daria um status às normas editadas pela agência superior à própria lei que a instituiu, numa construção que não encontra conformação com a ordem constitucional. Concorda-se com a afirmação de que as agências trouxeram um novo manejo no modo da atuação regulamentar, mas isso não leva ao extremo de recepcionar a ideia de que estas podem se distanciar dos impérios da lei, uma vez que não nos foi recepcionado o instituto da delegação legislativa inominada.
Não é de se estranhar os posicionamentos divergentes que se encontra para respaldar o poder normativo posto às agências reguladoras. Estas entidades, construção recente que são em nosso Direito Administrativo e que parecem ainda estar se adaptando a este regime jurídico, por evidente, suscitariam tais dissonâncias. No entanto, adotar posicionamento que divirja daquele que credita tal poder, como salientado nos parágrafos anteriores, a um manejo do poder regulamentar, reclamaria uma mudança de ordem constitucional. O argumento de que o Estado adotou como novo baluarte um modelo regulador não implica dizer que houve uma reorganização sistêmica da Constituição, no sentido de legitimar a autonomia das agências sob a tese de que tal competência seria um derivativo do próprio modelo regulatório. Aduz-se tal raciocínio por vislumbrar esta como a única forma em que se legitimaria esta substancial mudança, uma reforma de ordem constitucional, isto porque, em última instância, estaria cuidando-se, neste ponto, da consagrada partilha constitucional de competências, que pensada àqueles moldes restaria vulnerada.
Não se pretende se esquivar aqui, em absoluto, de reconhecer que também a tese da regulamentação é dotada de falibilidade, e que também esbarra em argumentos que a enfraquecem. Contudo, palmilhar por tal senda de raciocínio há de parecer, ainda, a forma mais cautelosa para enfrentar uma discussão muito maior e mais significativa que a aqui esboçada, que vem a ser os limites que devem permear a atividade normativa das agências. Chega-se inclusive a argumentar que restringir-se o debate acerca das agências a apenas de onde descende o seu poder normativo desvia o foco da discussão de outro tema ainda mais melindroso, que é o limite ao uso deste poder.
Tal debruce importa na medida em que ajude a encontrar barreiras à ação normativa, visto que, seja sustentada no poder regulatório, seja no poder regulamentar, ou em qualquer outra construção teórica que dê supedâneo àquela ação normativa, as agências parecem vir exorbitando em tal atribuição, reclamando, via de consequência, fronteiras.
Expostas tais teses, cabe neste momento, salientadas as posições acima esboçadas, buscar amparo à limitação de tal poder. Conforme restará demonstrado, as agências reguladoras independentemente de fundamentar seus atos normativos num poder regulatório geral ou no clássico poder regulamentar vem expedindo atos que têm reclamado a premente necessidade de se estabelecer balizas ao uso de tal poder normativo.