4 DA LIMITAÇÃO DO PODER NORMATIVO
Não obstante todas as teses doutrinárias que se aventuram em delimitar de onde promana esse famigerado poder normativo das agências reguladoras, o fato é que estas entidades o utilizam diuturnamente. Para se ter exemplo desta “avalanche” normativa, consulta virtual aos sites da ANATEL, ANVISA e ANEEL, dão demonstrativos da multiplicidade de atos que tais entidades emitem. Assim é que, entre os anos de 1998 e 2003 foram editadas mais de 100 resoluções pela ANEEL, boa parte delas com conteúdo eminentemente normativo.
Aqui vale também dizer que a edição de atos normativos por órgãos da administração direta e entidades da administração indireta não é ineditismo das agências, vislumbrava-se, deste modo, no âmbito do Banco Central, da Comissão de Valores Mobiliários, do Conselho Monetário Nacional, do CADE, e claro, nos Ministérios. A questão se voltou tão notadamente para as agências em função de sua ampla autonomia, que deu ensejo a que estas passassem a editar um sem número de normas, principalmente em matéria de serviços públicos, e que o faziam sem grandes preocupações com o respaldo Constitucional.
Acontece é que o déficit remonta ao próprio advento do instituto, importado que foi duma realidade jurídica bem distinta, a americana. Assim, não há que se negar que as agências foram absorvidas em nosso sistema jurídico como uma nova espécie de agente indireto do Estado, pleno de diversas atribuições, detentor de relevante autonomia nunca antes experimentada por uma entidade autárquica, autonomia esta que a dotou, inclusive, de ação normativa, que reclama poder normativo.
O que parece não haver sido cogitado é o fato de que este ente convive com um ordenamento jurídico reverente à norma positivada, submisso aos ditames do direito escrito, bastante obsequioso com as formas tradicionais de produção legislativa, e que por tudo isto prima pelo princípio da legalidade como obstáculo e parâmetro que deve pautar os atos subalternos à lei. Di Pietro (2004, p. 41) presta argumento ao aduzido:
Embora se reconheça a existência de pluralidade de fontes (estatal, infra-estatal e supra estatal), a hierarquia das mesmas deve ser observada em consonância com o ordenamento constitucional de cada país, podendo-se afirmar que, no direito brasileiro, prevalece no topo, o direito estatal sobre o infra e o supra estatal; e, internamente, prevalece a lei sobre os atos normativos da Administração Pública.
Em verdade a produção normativa já não repousa única e exclusivamente naquele que foi concebido como seu detentor, o Poder Legislativo. Com o cuidado de não adentrar as filigranas da questão, não é o desígnio deste trabalho, é de sabença geral que se encontra em todos os Poderes de Estado manifestação de tal atributo. A última passagem da fala de Di Pietro é a que mais se releva. Conformar a função normativa das agências a uma feição do poder regulamentar faz defender-se que os atos por elas emitidos têm de se pautar, por imperativo do nosso sistema constitucional, à lei. E aqui se fala em lei como todos os atos, que no dizer da autora, se avultam ao ato da Administração Pública, ou seja, a Constituição Federal, a própria lei instituidora da autarquia, e o decreto que a deu forma. É o primado do princípio da legalidade.
Referido princípio está epigrafado no ordenamento constitucional brasileiro tanto no artigo 5º, inciso II, princípio de garantia geral aos particulares, como no artigo 37, este a título de limitação governativa. Deste, deflui duas derivações, também princípios, de importante menção: o da preeminência da lei e o da reserva da lei. O primeiro consigna a imposição de que os atos infralegais submetam-se à preferência da lei. Assim, são inválidos quando não se compactuam com alguma norma legal. O segundo, por sua vez, tem por objetivo criar um campo de incidência exclusiva das normas legais, não admitindo as de caráter infralegal.
Dos conceitos trazidos à baila pode parecer que aqui seriam expostos percalços na fundamentação arrazoada. Isto porque, sendo o poder regulamentar exclusivo do Chefe do Poder Executivo, como poderia este se prestar ao uso das agências? Há que ao menos se tentar superar tal discussão. Enceta-se dizendo que, procurar em outras fontes que não a Constituição um enquadramento deste poder regulamentar, é labor que afeta princípios tais quais o da legalidade, do Estado de Direito, e da segurança jurídica. Então o que faz as agências é regulamentar ao arrepio do que prevê a Constituição? Não. O mais salutar é fazer uma interpretação aberta do instituto da regulamentação, e não enfeixá-lo no campo da restrição, e trazer, ainda, algumas características do princípio da legalidade, para não se afastar deste como o limite maior a se impor ao uso do poder normativo das agências.
É por isso que o princípio da legalidade é entendido segundo duas concepções: aquela legalidade normal ou comum, que imprime que seja proveniente de lei a criação de direitos e obrigações, mas que não exclui que a própria lei seja a delegatária de competências discricionárias, tendentes a dar a melhor solução ao caso concreto; e a legalidade estrita, essa sim, aquela em que a Norma Maior exige que determinada disciplina seja exaurida em lei.
Poder regulamentar é atividade normativa secundária afeta ao Executivo. Em sentido estrito é aquele que emana do artigo 84, inciso IV, da Constituição Federal, este sim, de exclusividade do Chefe do Poder Executivo. Não obstante, os regulamentos propriamente ditos são espécie de um gênero maior que são abrangidos pelo conceito lato de regulamento. Isto por que, há uma imensa quantidade de atos normativos que não podem estar encartados no conceito de regulamento estrito de que faz uso a Administração.
É através deste ato, que pode ser considerado inclusive de caráter terciário no caso, que atuam as agências, e, assim entendido, implica em defender, novamente, que está na legalidade os limites impostos às agências reguladoras, uma vez que, tais manifestações, por força de escalonamento hierárquico, são reverentes às normas que os sobrepõem. É o que demonstra Calil (2006, p.159):
Esses atos regulamentares (propriamente ditos e impropriamente ditos), muito embora possam ser considerados atos administrativos normativos, submetem-se à prevalência da norma legal, uma vez que são sempre secundários. Daí a afirmação de que, ainda que se reconheça a existência de uma ‘zona cinzenta’ entre as competências do Legislativo e do Executivo, a melhor doutrina somente admite os regulamentos secundum legem e intra legem, como consequência inafastável do respeito à legalidade.
Ora, não se está desprestigiando aqui o fato de que são atos normativos aqueles provenientes das agências. O que se pretende infirmar é que estes têm posicionamento inferior, e numa relação derivativa, começam na Constituição, adentram no território da lei, e passam, posteriormente por um escalonamento no seio da Administração. É sem nesga de dúvidas o que se nos impõe como Estado que adota a primazia da lei. Por tudo, aqui não se está cogitando do poder regulamentar propriamente dito, porque o fazendo assim, aí também se estaria diante de óbice de cariz constitucional. Antes, como já defendido por Carvalho Filho (2006), trata-se de um manejo deste, uma vez que, é remansoso no âmbito da Administração o uso de atos que têm feição regulamentar.
O deslinde da questão reside em se direcionar a discussão para como relacionar os atos “regulamentares” das agências à lei e aos regulamentos propriamente ditos. Aí sim, está o nó-górdio da celeuma, e também a evidenciação de que se tem de considerar tais atos subalternos, reverentes, inclusive, ao regulamento do executivo (caso assim ele exista), e mais uma vez dando precedência aos atos normativos superiores. A ideia de escalonamento exposta no parágrafo anterior é construção de Cléve (2011, p. 278), que respalda nossas palavras:
[...] os demais órgãos da Administração não estão impedidos de emanar atos administrativos. Basta verificar o Diário Oficial para se constatar a infinidade de medidas normativas (circulares, portarias, instruções) editadas pelos órgãos públicos a cada dia. Tais atos podem, impropriamente, ser considerados regulamentares (já que regulamentam algo); porém, não constituem, sob o prisma constitucional, verdadeiros regulamentos. Se válidos, inscrevem-se numa posição inferior à dos regulamentos editados pelo Presidente da República. A relação de derivação-fundamentação dos atos normativos começa com a Constituição, ingressa no território da lei e, depois, imprime um escalonamento hierárquico no seio da Administração Pública. Quando um Ministro de Estado ‘regulamenta’ uma lei, ele na verdade não está usurpando uma atribuição privativa do Executivo, mas fazendo uso de um poder particular conferido pelo próprio Constituinte (art. 87, II). A instrução ministerial deve guardar uma relação de conformidade não apenas com a lei, mas também com o regulamento. Num caso de colisão entre o regulamento e a instrução ministerial o regulamento prevalece.
Interessante construção traz também Di Pietro (2011, p. 91), por entender que o direito é ciência a qual reclama perene “interpretação conforme”, e que, por isso, não se pode desprestigiar que o mundo do direito (dever-ser) tem de por vezes se amoldar ao mundo dos fatos (ser). Assim se expressa:
Normalmente, fala-se em poder regulamentar; preferimos falar em poder normativo, já que aquele não esgota toda a competência normativa da Administração Pública; é apenas uma de suas formas de expressão, coexistindo com outras [...]
Lapidar o ensinamento da autora, na medida em que se reconhece que a realidade traz situações que nem sempre se conformam com a abstração da lei. Para arrematar, defende-se mais uma vez que, tratar os atos das agências como manipulação da regulamentação, dá balizas para respaldá-los e mais ainda, conformá-los, aos impérios da legalidade, este sim o maior dos desafios posto ao uso de tal atributo. É que não se tem de desgarrar do cerne da questão. Os atos normativos emitidos pelas agências reguladoras, qualquer que seja a fundamentação que lhes dá arrimo, mais do que qualquer outro limite, encontra na legalidade sua fronteira mais significativa.
No magistério de Tácito (p. 246) percebe-se que o autor ao mesmo tempo em que se remete às diferentes formas de normatizar postas ao uso do Estado, consigna a evidente hierarquia existente:
A capacidade ordinatória do Estado se manifesta por meio de círculos concêntricos que vão, sucessivamente, da Constituição à lei material e formal, isto é, àquela elaborada pelos órgãos legislativos; desce aos regulamentos por meio dos quais o Presidente da República complementa e particulariza as leis; e, finalmente, aos atos administrativos gerais, originários das várias escalas de competência administrativa. São constantes as normas de força obrigatória, equivalentes às leis e regulamentos, desde que a elas ajustadas [...]. É, em suma, a substância, e não a forma, que exprime a distinção entre o ato administrativo especial (decisão específica) e o ato administrativo geral (ato normativo). Aquele, tal como as decisões judiciais, aplica o direito ao caso, solvendo uma postulação concreta. Este representa a formação de uma ordem nova, complementar ao direito existente, que esclarece e desenvolve, tendo, obviamente, conteúdo inovador, embora mínimo.
Portanto, quando do seu mister, não estão as agências, ou ao menos não deveriam, estar inovando na ordem jurídica, uma vez que este é papel relegado à lei. Disso poder-se-ia questionar então qual a razão de ser dos atos provenientes daquelas entidades. A resposta, assim como o limite aqui apontado, está também em princípios, em cânones, da atividade administrativa, como, a discricionariedade, a eficiência, o poder-dever de agir. Aqui há que se rememorar um daqueles atributos que são do âmago das agências reguladoras, quer seja, sua destreza técnica, sua especialização.
Neste ponto, poder-se-ia fazer um paralelo com o intento dos regulamentos executivos. Estes se prestam a explicitar aquilo cunhado nos dispositivos legais de caráter superior, a complementá-lo, para, como argumentam pacificamente os administrativas, dar fiel execução à lei. A agência, quando provocada a se posicionar sobre assunto acerca da sua área de especialização, não está muito distante do instituto esboçado - aqui repisando-se que o que se faz é um paralelo, não confundido um instituto com o outro - na medida em que é de sua alçada extrair do decreto regulamentar ou da lei que lhe delimitou competências, circunstancialmente, os momentos em que se oportunizam a edição de atos normativos.
Disto, e pode até parecer se estar laborando à maneira do mito de Sísifo, percebe-se mais uma vez que, por mais que se procure em outros baluartes os limites ao poder normativo das agências reguladoras brasileiras, a exemplo de se cogitar de um déficit democrático, de uma falha de controle quer daquele exercido pelo Legislativo, quer pelo Judiciário, duma fraca conformação do instituto à realidade constitucional/administrativa brasileira, o fato é que, sobranceiro a tudo isto está a constatação de que as agências reguladoras brasileiras têm, por vezes, tergiversado ao nosso modelo de legalidade.
É que o modelo de Estado Regulador fomentou entre estudiosos todas as espécies de teorias para sustentar seu advento. Entre tais teorias encontra-se a que sustenta uma pluralização das fontes normativas, com a consequente desestatização das regras jurídicas, como imperativo à nova feição estatal, que não poderia se coadunar com os anacrônicos modelos de produção normativa. Muito embora a importância de tal argumento, visto que há aqueles que como o teórico neoliberal francês Louis Baudin defendem ser o Direito uma cristalização da economia, este não pode ser sustentado por nossa realidade jurídica, a qual escolheu a norma escrita, a lei, como arauto.
A opinião de Calil (2006, p. 114) é translúcida, enxergando na ponderação, hoje mecanismo tão em voga em todos os ramos da ciência jurídica, uma saída para, em não se distanciando da legalidade, também não ser subjugado nosso enquadramento jurídico pelas novas tendências econômico-sociais. Defende a autora:
[...] o estudo acerca das agências reguladoras e seu poder normativo, têm como norte as conquistas históricas da democracia e do Direito, bem como a necessidade de se adaptar os antigos paradigmas às novas demandas sociais e econômicas. O desafio é justamente este: dosar inovações técnicas (sem deixar que se estabeleça uma tecnocracia descompromissada como os princípios basilares do État) e as ‘velhas’ conquistas do Estado Democrático de Direito.
Irretocáveis as palavras da professora, na medida em que condensa tanto a necessidade da chegada de entes com a atitude das agências, assim como, não olvida o fato de que seja o nascimento, seja a incorporação de uma nova realidade, de um novo instituto jurídico, este deve passar por mecanismos de adaptação a outras realidades que já eram assentadas na ordem jurídica que o recepciona, ainda mais, quando se trata de conceitos como soberania, legalidade, todos condicionantes do Estado de Direito.
Por isso é que, não obstante todas as transformações estruturais sofridas pelo Estado brasileiro, muito embora ainda todas as características peculiares e indissociáveis que dão forma às agências, estas não tiveram o condão de fragmentar mandamentos nucleares que foram incorporados ao nosso direito – sobremaneira o cânone da legalidade- e assim, via de consequência, o resultado indefectível disto é que as agências reguladoras e seu poder normativo não podem prescindir de se inserir nesse contexto.