Quando os oprimidos se tornam opressores: o caso João Donatti e a homofobia internalizada

13/09/2014 às 15:33
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Crimes como o caso do rapaz João Antônio Donatti nos leva à compreensão da necessidade - urgente e inafastável - de criminalização da homofobia, além da criação de políticas públicas LGBTI voltadas à educação e à saúde.

Começo esse texto com sentimentos de revolta, angústia e pesar, de compaixão pela massacrante dor que passa a mãe do rapaz João Antônio Donatti, que teve a sua vida ceifada de forma absolutamente brutal há dois dias atrás. A essa senhora, dirijo a minha solidariedade e as minhas orações pela perda inexplicável de um filho lindo, que tinha toda uma vida pela frente, motivada por cólera homofóbica.

Esse e outros episódios são suficientes para responder o questionamento daqueles que colocam em causa a necessidade de criminalização da homofobia. Aos que ainda tem essa dúvida, respondo com outras questões: alguém já viu outra pessoa ser agredida, maltratada, violentada ou morta pelo simples fato de ser heterossexual? Já viram algum lugar ser incendiado tão somente pela circunstância de ali a alguns dias ser local de celebração de um casamento heterossexual? Eu nunca vi. Mas o revés foi observado nesses últimos dias. Portanto, isso nos leva à compreensão de que a criminalização da homofobia não constitui uma busca de “direitos especiais” pela comunidade LGBTI, mas a instituição de um mecanismo legislativo que consiga coibir – efetivamente – essa onda de ódio e violência que está assolando o Brasil. Se a legislação existente fosse suficiente, não estaríamos assistindo a esse show de horror que a população LGBTI vem sendo vítima nos últimos tempos. E isso acontece porque os autores dos crimes homofóbicos se confortam na certeza e na segurança da impunidade ou de sanções brandíssimas, que compensam o crime perpetrado. Necessitamos de uma legislação subitânea, drástica e implacável.

Dois dias após o brutal assassinato de João Antônio Donatti, que foi morto com requintes de crueldade, tendo ambas as pernas e o pescoço quebrado, diversos hematomas nos olhos e nariz (o que indica extrema violência e fúria por parte do assassino) já se ventila que o crime não teria qualquer conotação homofóbica. Note-se, porém, que encontrou-se um bilhete na boca de João Antônio, onde destilava-se em sentido literal o ódio em relação aos homossexuais ao afirmar-se que “vamos acabar com essa praga”. Numa outra versão diz-se que estariam escritos os dizeres “vamos acabar com essa raça maldita de demônios”. De qualquer forma, o ódio direcionado aos homossexuais está patente!

E nem se cogite a possibilidade de não haver cunho homofóbico no crime pelo simples fato de o autor ter mantido relações sexuais com a vítima, como amplamente publicado na mídia nacional. Esse argumento falacioso só serve para quem nunca ouviu falar em homofobia internalizada. E o que seria essa tal “homofobia internalizada”?

Imensa é a dificuldade em considerar a homossexualidade como uma característica da identidade de cada um, ao invés de doença. E muitas vezes, esses juízos de reprovabilidade são oriundos dos próprios homossexuais, o que se pode denominar de homofobia internalizada. Muitas vezes, os homossexuais interiorizam as mensagens reprobatórias transmitidas pela sociedade acerca da sua sexualidade. Tais sentimentos negativos sobre a própria orientação sexual podem levar à dúvida frente ao preconceito, ao ódio pessoal e até mesmo a um comportamento autodestrutivo ou de violência em relação aos outros.

Não é rara a ocorrência de homossexuais que negam publicamente a sua sexualidade, mas a exercitam de forma clandestina. Muitas vezes, o sentimento e o desejo reprimido se aglutinam e são represados até um momento em que o indivíduo não tolera mais e os liberta momentaneamente. Todavia, logo a seguir – em virtude da não aceitação da própria sexualidade – vem sentimentos de culpa e raiva, em relação a si próprio e não raras vezes em relação ao seu objeto de desejo naquele momento. Atração e carinho dão lugar a repulsa e tristeza, que muitas vezes podem culminar em atos de violência contra si ou contra a própria pessoa que o levou a esse “deslize” ou “erro”. E parece ser esse o caso que se apresentou, de forma trágica, a todos nós.

Diante disso, mais uma vez, reafirme-se a necessidade urgente não apenas da criminalização da homofobia, mas da construção de políticas públicas LGBTI, em especial de saúde e educação. Por exemplo, nesse caso específico da homofobia internalizada, é indicado e adequado o aproveitamento da chamada psicoterapia afirmativa, que coloca ao alcance do paciente instrumentos específicos que lhe permitem e orientem para a construção de uma autoestima aceitante e englobadora da sua sexualidade. Os princípios basilares da seara afirmativa da Psicologia encontram-se arraigados em juízos desenvolvidos pela Psicologia Social, especificamente em relação aos estudos sobre o preconceito e no conceito social das diferenças, o que levou ao desenvolvimento de outras noções fundamentais, como as de homofobia e heterossexismo. O tormento e a conjecturável psicopatologia observados pelos profissionais nos homossexuais passaram a ser tidos não como efeito da homossexualidade per se, mas como sintoma de internalização da homofobia social.

A psicoterapia afirmativa ajuda o indivíduo a aprender a identificar o seu sofrimento mental e a reconhecer no sujeito o seu desejo de mudança. Propõe um caminho específico de construção de uma identidade que se alicerça na sua liberdade de expressão sexual integrada numa forma íntegra e válida de sexualidade.

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Veja-se a que ponto chegamos pela falta de políticas públicas LGBTI. A omissão leva não apenas a crimes praticados contra os LGBTI por aqueles que não aceitam a sexualidade alheia. A rejeição social leva a um tormento tamanho que os próprios LGBTI, em desalento, confusão e desespero por não aceitarem a própria condição podem desenvolver patologias como a homofobia internalizada que, em casos mais graves, pode levar a episódios de cólera e violência assassina contra os seus próprios pares. É hora de enxergarmos que o preconceito não é apenas uma violência moral, que fere o brio e a alma daqueles atingidos. O preconceito mata! E de forma cruel ... O preconceito, neste caso, levou não apenas à morte de um rapaz, mas à construção de um assassino cruel. Nesses tempos bárbaros, de disseminação de ódio, de injúrias despropositadas, de violência atroz, só o rigor de uma lei e o norteamento de políticas públicas de tolerância e respeito poderão nos salvar da selvageria que se transformou a nossa impune e desumana sociedade.

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Sobre a autora
Marianna Chaves

Doutoranda em Direito Civil pela Universidade de Coimbra.<br>Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade de Lisboa.<br>Pós Graduada em Filiação, Adoção e Proteção de Menores pela Universidade de Lisboa.<br>Pós Graduada em Direito da Bioética e da Medicina pela Universidade de Lisboa e Associação Portuguesa de Direito Intelectual - APDI.<br>Secretária de Relações Internacionais do IBDFAM.<br>Membro-consultor da Comissão Especial de Diversidade Sexual do Conselho Federal da OAB.<br>Membro da International Society of Family Law.<br>Membro da World Association for Medical Law.<br>Advogada.<br><br>

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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