Recente noticiário dá conta de encrespamento da indústria de locação de imóvel decorrente de projeto de lei que tornará impenhorável bem de família dado como garantia de locação de imóvel urbano.
A mudança da Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991, que acresceu o inciso VII do art. 3º da Lei nº 8.009, de 29 de março de 1990, assim escrito: "Art. 3º. A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido: [...] VII) por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação", viria por iniciativas legislativas já em andamento.
À guisa de exemplo, são citáveis os Projetos de Lei nº 370, de 24 de maio de 1999, autorado pelo Senador Lauro Campos, e o de nº 145, de 29 de maio de 2000, firmado pelo Senador Carlos Patrocínio, que versam sobre o tema, postulando restruturação na excepcionaldidade susoprescrita.
Dessarte, qualquer manejo excludente do inciso VII do art. 3º incidiria, em tese, na eficácia do art. 1º da referida Lei nº 8.009, hoje vigente com o seguinte texto: "Art. 1º. O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta Lei. [...] Parágrafo único. A impenhorabilidade compreende o imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados."
Convém observarmos dois aspectos inafastáveis do fato em estudo, para divisarmos a inteligência do alcance de possível mudança legista sobre o tema.
Uma perspectiva relaciona-se à juridicidade da vigente norma especial.
A outra, diz com o Direito Intertemporal, aquele que tem como objeto solucionar problemas com sucessão de normas jurídicas.
Quanto ao primeiro aspecto, temos que o coevo inciso VII do art. 3º da Lei nº 8.009 possui juridicidade questionável. A sua validade normativa não esbarra tanto propriamente no sistema da Lei 8.009. Afinal, seriam comuns reservas em leis que tais, que aspiram especialidades. Na realidade, o vetor deôntico do excerto legal em exame colide é com a garantia pétrea constitucional que levanta a asilo inviolável o teto doméstico (CF, art. 5º, XI).
Enquanto propriedade especialíssima, a casa é bem de raiz com função supra-social. O lar se reveste de posição proeminentemente humana. Abstrair esse elemento sociológico da norma malfere-lhe de morte o escorreito exercício hermenêutico. Demais disso, o operador do Direito não pode apartar da aplicação da lei os princípios fundamentais presentes nos arts. 1º a 4º da CF, que abalizam todo ordenamento consectário, inclusive o de etiologia constitucional.
Nesse contexto, leia-se que a regra da função social da propriedade, — que, aliás, não se prende tão somente à propriedade "imóvel" (CF, arts. 5º, XXIII, 170, III, 182, § 2º) —, subjuga-se ao quadro axiológico traçado pelos citados princípios fundamentais. À força do sistema constitucional, a idéia de sobrelevar o crédito contratual à dignidade humana corporifica gritante irrazoabilidade, digna do aforismo summum jus, summa injuria.
O fiador, dono de único imóvel, que garante locatário com dificuldade econômica (a mais comum e humana de todas as incontáveis dificuldades da incerta estrada da vida), não deve ser punido com a perda deste patrimônio escoteiro. Que se lhe sejam excutidos os bens, como os serão os do locatário. E com rigor. Mas, perder o único teto, por conta de contrato gratuito, e de favor, é arrematada perversidade jurídica.
O outro aspecto é de Direito Intertemporal. Caso nova lei altere o vigorante regime, fazendo sair do seu texto a penhorabilidade do bem de família de fiador locatício, é mais do que óbvio que os contratos anteriores à vigência da alteração não sofrerão o peso de sua eficácia, em respeito ao ato jurídico perfeito, ex vi dos arts. 2º e 6º da Lei de Introdução ao Código Civil c/c o art. 5º, XXXVI, da CF. Não há que se discutir, aqui, direito aquirido, que, diante de norma pública, de aplicação nacional e cogente, é tese atacável.
Com ou sem lei nova, aos contratantes de locação sempre estarão abertas as vias negociais para recompor, com eficácia, as garantias bastantes ao fim do instituto (Lei nº 8.245, arts. 37 a 42).