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A religião entre a pessoa humana e o Estado de Direito

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19/10/2014 às 13:18
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3. As relações entre Estado e religião: o caráter laico do Estado brasileiro.

As relações do Estado com o poder espiritual têm sofridos alterações tão intensas quanto as variantes de espaço e tempo utilizadas para contextualizar a respectiva análise.

De um modo geral, os distintos modelos existentes podem ser enquadrados numa das seguintes categorias: (1) Estado teocrático ou sacral, onde, eliminada qualquer possibilidade de pluralismo religioso, verifica-se a interpenetração entre Estado e poder espiritual na consecução do bem comum (v.g.: o fundamentalismo religioso no Iran e no Vaticano); (2) Estado proselitista, cuja característica essencial é não propriamente a confusão entre as figuras, mas a proteção e o enaltecimento de uma religião específica (v.g.: Estados ortodoxos); (3) Estado cooperativo, onde, apesar de reconhecido o pluralismo, poder espiritual e poder estatal apresentam pontos de contato (v.g.: na Inglaterra, o Chefe de Estado deve jurar fidelidade aos dogmas da igreja oficial, a anglicana, sendo, igualmente, o seu chefe temporal); (4) Estado laico ou secular, que passa ao largo da realidade religiosa subjacente ao meio social e elimina, a priori, qualquer influência do poder espiritual no ambiente político; laicidade guarda similitude com neutralidade, indicando a impossibilidade de a estrutura estatal de poder possuir uma “fé oficial”, privilegiando-a em detrimento das demais; e (5) Estado totalitário ateísta ou simplesmente ateu, que vê no poder espiritual objetivos incompatíveis com os do Estado, terminando por vedar as próprias práticas religiosas (v.g.: a extinta URSS).

A Constituição argentina de 1853, mesmo após as suas sucessivas reformas, dispõe, no início do século XXI, que “el gobierno federal sostiene el culto católico apostólico romano” (art. 2º) – Cf. BIDART CAMPOS, 2006: 541. No Brasil, a Constituição de 1824 assegurava a liberdade de culto, em locais fechados, mas considerava, como religião oficial do Estado, a católica, apostólica, romana. Proclamada a República, a Igreja foi separada do Estado, que passou a ser laico: no entanto, face à controvérsia em relação à representação diplomática brasileira no Vaticano, a Reforma de 1926 acrescentou um parágrafo 7º ao art. 72 da Constituição de 1891, tornando expresso que “a representação diplomática do Brasil junto à Santa Sé não implicava violação desse princípio”. O preceito, nitidamente desnecessário, já que a manutenção de relações diplomáticas, por si só, já indica a separação entre os entes, foi repetido nas Constituições de 1934 (art. 176) e 1946 (art. 196), sendo omitido nas demais.

Consoante o inciso I do art. 19 da Constituição de 1988,[11] é vedado ao Estado (1) promover cultos religiosos; (2) mantiver templos religiosos; (3) estimular a prática de certa religião, com incentivos de qualquer natureza, financeiros ou não; (4) estabelecer relações de dependência ou aliança com organismos religiosos, de modo que diretivas baseadas puramente na fé influam no delineamento de decisões estatais; ou (5) impor restrições ao exercício das demais religiões.[12]   

Os limites da relação do Estado com a religião foram objeto de análise pelo Tribunal Constitucional Federal alemão, o qual, apreciando a amplitude da neutralidade apregoada pelo direito constitucional (GG de 1949, art. 140 c.c. Constituição de Weimar, art. 137, I: “Es besteht keine Staatskirche”), decidiu pela impossibilidade de serem afixados crucifixos nas salas de aula das escolas públicas, prática que denotaria a adesão ao cristianismo em detrimento das demais religiões livremente professadas.[13] Nesse particular, observa-se que algumas religiões, como o budismo, não crêem na existência de um Deus.

No direito italiano, a exposição dos crucifixos nas salas de aula remonta a um período anterior à unificação do País. Nesse sentido, dispunha o Decreto-real nº 4.336/1860, do Reino de Piemonte-Sardenha, que cada escola deveria possuir um crucifixo. Em 1861, com o surgimento do Estado italiano, o Estatuto do Reino de Piemonte-Sardenha, de 1848, se tornou o Estatuto italiano. De acordo com ele, a religião católica apostólica romana era a religião oficial do Estado. Em 1870, Roma é tomada pelo exército e proclamada Capital do novo Reino da Itália. Face à crise com a Igreja Católica, a Lei nº 214/1871 passa a regular, unilateralmente, as relações entre Estado e Igreja. Dede então preservou-se o hábito de expor o crucifixo nas salas de aula, o que foi previsto (1) na circular nº 68/1922, do Ministério da Instrução Pública; (2) no Decreto-real nº 965/1924, que estabeleceu o Regulamento Interior dos Estabelecimentos Escolares Secundários do Reino (art. 118); (3) no Decreto-real nº 1.297/1928, que veiculou o Regulamento Geral dos Serviços de Ensino Primário (art. 119).  No entender do Governo italiano, essas duas últimas disposições, que bem refletiam os valores sedimentados no Ocidente e na sociedade italiana, ainda permaneceriam em vigor, isto apesar de a Constituição de 1947, em seu art. 7º, ter preconizado a separação entre o Estado e a Igreja. Posteriormente, a Lei nº 121/1985 declarou, formalmente, que não mais subsistia o preceituado no Pacto de Latrão, de 1929, que indicava o catolicismo como a religião oficial do Estado.

O Tribunal de Cassação decidiu que a presença do crucifixo nos locais de recolhimento dos votos, durante as eleições, seria contrário ao princípio da laicidade do Estado (Processo nº 4.273/2000). O Tribunal Constitucional, por sua vez, na Decisão nº 508/2000, ratificou a jurisprudência então sedimentada a respeito da liberdade de crença e ao caráter laico do Estado: o Estado deve manter uma postura de equidistância e imparcialidade em relação a todas as religiões, sem atribuir qualquer importância ao número de fiéis (Decisões nº 925/1988, 440/1995 e 329/1997) ou à amplitude das reações sociais quanto à violação dos dogmas de qualquer delas (Decisão nº 329/1997). Instado a se manifestar sobre a questão da exposição do crucifixo nas salas de aula, o Tribunal deixou de examiná-la sob o argumento de que a matéria estaria regulada em disposições infralegais, desprovidas de força de lei (Decisão nº 389/2004, § 12).

A polêmica, no entanto, chegou ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. No Caso Lautsi vs. Itália (Processo nº 30.814/2006, j. em 03/11/2009), esse Tribunal decidiu que a exposição da cruz nas salas de aula das escolas públicas seria incompatível com a liberdade de crença e de religião, bem como com o direito ao recebimento de uma educação compatível com as convicções religiosas e filosóficas das crianças e de seus pais. Como fundamentos da decisão, foram invocados; (1) o dever de ministrar a educação em conformidade com as convicções religiosas e filosóficas dos pais (Protocolo nº 1 à Convenção Européia dos Direitos Humanos, de 1950, art. 2º); (2) a liberdade de religião e a impossibilidade de ser restringida (Convenção..., art. 9º, 1 e 2); (3) a Convenção protege tanto o direito de crer numa religião, como o de não crer em religião alguma (vide Young, James e Webster vs. Reino Unido, j. em 13.08.1981, §§ 52-57, série A nº 44). O Tribunal, assim, realçou o caráter religioso da cruz e entendeu que o fato de sua exibição refletir referenciais morais elevados e ser compatível com os valores prestigiados por parte da coletividade não afastava o atentado à laicidade do Estado, terminando por determinar a sua retirada e a condenar o Estado italiano ao pagamento de uma indenização, por danos morais, na ordem de 5000 Euros.

Não obstante a similitude, nessa temática, das Constituições alemã e italiana, bem como da própria Convenção Européia dos Direitos Humanos, com a atual Constituição brasileira, cremos que a transposição do entendimento restritivo para a nossa realidade exige alguns temperamentos. O primeiro deles consiste no fato de o cristianismo e, mais especificamente, o catolicismo, serem partes integrantes da tradição brasileira, daí decorrendo que a exposição da cruz pode ser vista como mera deferência a esse elemento cultural, em nada refletindo um comprometimento religioso por parte do Estado. O segundo indica que, no Brasil, o pluralismo religioso ainda não resultou numa rejeição socialmente relevante de certos símbolos que fazem parte da nossa tradição. O terceiro demonstra que, contrariamente ao verificado na Itália, não se verifica, no Brasil, uma profusão de normas oficiais defendendo este ou aquele símbolo. O quarto, por sua vez, aconselha que medidas dessa natureza, drásticas e que naturalmente serão interpretadas como uma afronta à respectiva religião, decorram de uma reação social, vale dizer, da disseminação de um sentimento de discriminação, junto às demais religiões, em relação à exibição de um símbolo característico do catolicismo; a questão, assim, não deve ser analisada puramente in abstracto, desconsiderando-se a realidade social. Rendemos homenagem, assim, à sensata advertência de Rui Barbosa (1933: 430): “[n]ão basta compulsar a jurisprudencia peregrina: é mister aprofundal-a, joeirando os exotismos intransladaveis, para não enxertar no direito patrio idéas incompatíveis com as nossas instituições positivas”. Isto, obviamente, não exclui a possibilidade de que, numa situação concreta, à luz dos circunstancialismos que a envolva, o crucifixo seja utilizado como instrumento de afronta ou de inibição às demais religiões.

A laicidade, é importante observar, raramente se apresenta em “estado puro”, vale dizer, com ampla e irrestrita dissociação entre os poderes espiritual e estatal. No Brasil, por exemplo, são múltiplos os feriados embasados na fé católica (v.g.: o dia de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do País), isto sem olvidar a invocação de Deus logo no preâmbulo de nossa Constituição, o que, em “rigor técnico”, configuraria clara afronta àqueles que negam a existência de Deus, como os budistas, ou que apregoam a existência de mais de um Deus, como os hindus. Nos Estados Unidos da América, do mesmo modo, lê-se, em sua moeda oficial, a inscrição “In God we trust”. Nesses casos, o que se verifica não é propriamente a irrestrita adesão ao poder espiritual, mas, sim, uma forma de preservação dos valores sedimentados no ambiente social.

Ressalte-se, no entanto, que laicidade não guarda similitude com isolamento, sendo de todo aconselhável que o Estado estabeleça parcerias, com instituições religiosas, visando à consecução de objetivos comuns de interesse público. Essa possibilidade, no entanto, expressamente contemplada no inciso I do art. 19 da Constituição de 1988, não deve privilegiar religiões específicas por vias transversas. Qualquer aproximação do Estado à religião deve se desenvolver com a observância de referenciais de igualdade, estando teleologicamente comprometida com a satisfação do interesse público.

3.1. Liberdade de crença e laicidade do Estado.

Em períodos mais remotos, a religião era constantemente utilizada como referencial para o reconhecimento de direitos ou para a participação na vida política do Estado. A intensa expansão do Cristianismo transcendeu as questões religiosas, fazendo que a religião católica, apostólica, romana exercesse total domínio no cenário político do Ocidente. Na Idade Média, os papas criavam e destruíam impérios, nomeavam e depunham imperadores. Estado e religião se interpenetravam de tal modo que se tinha por inaceitável uma dissociação entre as leis terrenas e as leis divinas, vale dizer, aquelas postas pela Igreja e pela interpretação que realizava da Bíblia. O fundamento do Estado era teológico, não teleológico: existia pela vontade de Deus e para servir a Deus. Como afirmou Coulanges (2001: 206-213), “entre gregos e romanos, assim como entre os hindus, desde o princípio, a lei surgiu naturalmente como parte da religião”(...)”a lei não se discute, impõe-se; não representa trabalho da autoridade; os homens obedecem-na por ser divina”(...)”era reconhecido como cidadão todo aquele que tomava parte no culto da cidade, e desta participação lhe derivavam todos os seus direitos civis e políticos. Renunciar ao culto seria renunciar aos direitos.”

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A intolerância religiosa exacerbada, que conduziu à perseguição e à execução dos infiéis, e o redimensionamento do papel desempenhado pelo Estado conferiram novas nuances ao pensamento filosófico, que passou a prestigiar a individualidade de cada pessoa, atribuindo-lhe uma esfera de liberdade imune à intervenção estatal. Esse movimento precipitou o reconhecimento da separação entre Estado e Igreja e assegurou a liberdade de culto, cujo caráter normativo foi adotado, pela primeira vez, na Declaração de Direitos da Virgínia, de 12 de junho de 1776 (art. 16). A Primeira Emenda à Constituição norte-americana, de 1791, seguiu o mesmo caminho: “Congress shall make no law respecting an establishment of religion, or prohibiting the free exercise thereof”. Também na França, a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, encampou a liberdade de culto: “nul ne droit être inquiete pour ses opinions même religieuses, pourvu que leur manifestation ne trouble pas l’ordre public établi par la loi”. No Brasil, a Constituição de 1824 assegurava a liberdade de culto, mas considerava, como religião oficial do Estado, a católica, apostólica, romana. Proclamada a República, a Igreja foi separada do Estado, que passou a ser laico.

Na Constituição de 1988, o caráter laico do Estado é especialmente percebido pelo teor de seu art. 19, que veda ao Poder Público manter ou subvencionar cultos religiosos ou igrejas, estando igualmente impedido de embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança.

Enquanto a liberdade de crença assegura a qualquer pessoa o direito de escolher livremente a fé que irá, ou não, professar, escolha esta que pode permanecer adstrita ao forum internum ou ser exteriorizada, alcançando o forum externum, a laicidade do Estado indica a impossibilidade de uma estrutura estatal de poder possuir uma “fé oficial”, privilegiando-a em detrimento das demais. Ter-se-á o tratamento privilegiado de certa “fé” não só quando o Estado estimular a sua prática, com incentivos de qualquer natureza, financeiros ou não, como, também, quando impuser restrições ao exercício das demais.

É importante lembrar que o caráter laico do Estado coexiste com a liberdade de crença. Essa constatação, em seus contornos mais basilares, indica que o Estado, conquanto não deva aderir a uma fé específica, deve permitir e proteger toda e qualquer manifestação de fé, mesmo nos bens de sua propriedade; isto, obviamente, se não for comprometida a ordem pública ou a liberdade de crença dos demais componentes do grupamento, o que inclui a liberdade de não professar fé alguma.

A questão, no entanto, pode assumir contornos mais delicados: digamos que um aluno e um professor de escola pública sejam proibidos de frequentar as aulas usando turbante, que seria um símbolo de sua fé e pureza espiritual. Quanto ao aluno, parece não haver maiores dúvidas de que foi violada a sua liberdade de crença, exteriorizada de modo silencioso e perfeitamente compatível com o ambiente escolar. Já em relação ao professor põe-se um complicador: pode ele, enquanto servidor e representante do Estado, exteriorizar a sua crença na sala de aula? Diversamente ao que se verifica em relação ao aluno, que foi diretamente privado de um direito fundamental, no caso do professor, que está no efetivo exercício de uma função pública, constata-se uma aparente colisão entre a sua liberdade de crença e a neutralidade religiosa do Estado, do qual é legítimo representante em sala de aula. Ainda deve ser devidamente considerada a liberdade dos demais estudantes em não ter crença alguma (negative Glaubensfreiheit), o que reforça a necessidade de o Estado preservar a sua neutralidade. A identificação da efetiva existência da referida colisão, com as consequências dela decorrentes, exige seja previamente definida uma premissa fundamental: do fato de um único professor usar turbante (ou portar um cordão dotado de crucifixo) decorre a conclusão de  que o Estado adota uma postura favorável à respectiva religião? A resposta, à evidência, é negativa. In casu, a crença professada, aos olhos de qualquer expectador externo, é integralmente atribuída ao professor, não ao Estado, o que bem demonstra que ele, a exemplo do estudante, foi igualmente aviltado em sua liberdade de crença – Cf. STARCK e SCHMIDT (2008: 155-156).

3.2. A imunidade tributária dos templos de qualquer culto.

De modo correlato à garantia da liberdade de crença, que assegura a cada indivíduo o pleno juízo valorativo a respeito da fé que pretende, ou não, professar, sem qualquer interferência do Estado ou de outros particulares, a Constituição de 1988, em seu art. 150, VI, b, conferiu imunidade tributária aos templos de qualquer culto, eximindo-os do pagamento de impostos. A ratio da norma constitucional parece clara: afastar embaraços ao exercício de um direito fundamental e, face à importância que ostenta no contexto social, estimular o seu desenvolvimento.

A primeira questão a ser enfrentada diz respeito ao alcance subjetivo da imunidade contemplada no art. 150, VI, b, da Constituição de 1988. Apesar de não haverem maiores dúvidas quanto à amplitude da expressão “templos de qualquer culto”, o mesmo não pode ser dito em relação às atividades que serão enquadradas sob essa epígrafe. Em outras palavras, basta que uma associação se auto-intitule “igreja” e possua espaços físicos denominados de “templos” para que, por via reflexa, suas atividades sejam consideradas cultos, incidindo a regra da imunidade tributária? A resposta, por certo, está ínsita no próprio questionamento: vale dizer, na medida em que a ordem constitucional reconhece, separadamente, a “liberdade de associação” e a “liberdade de crença”, decorrendo, desta última, a possibilidade de serem construídos “templos” a ela destinados, afigura-se evidente que as figuras não se sobrepõem, mas, tão-somente, se tangenciam. Toda instituição religiosa será uma associação, mas nem toda associação terá fins religiosos, daí o necessário cuidado para que a ratio da norma constitucional seja preservada e uma possível fraude tributária evitada.

Os templos de qualquer culto consubstanciam o âmbito de desenvolvimento da liberdade de crença, da fé professada por certas pessoas, sendo dela indissociável. Nesse particular, o Tribunal Administrativo Federal alemão (Bundesverwaltungsgericht) já teve oportunidade de reconhecer que associações cognominadas de “igrejas”, que não professem a fé em Deus ou num ser superior (v.g.: Buda), destinando-se, unicamente, à crítica econômica ou social, não possuem objetivos religiosos, não sendo alcançadas pela liberdade de crença assegurada pelo art. 4º, I, da Grundgesetz de 1949.[14]

A segunda questão a ser enfrentada está relacionada ao alcance da imunidade tributária, exigindo seja definido se ela somente afastará a incidência de alguns impostos específicos ou se recairá sobre todo e qualquer imposto, com abstração do seu fato gerador. Na primeira hipótese, que se ajustaria à literalidade do art. 150, VI, c, da Constituição de 1988, somente seriam afastados os impostos incidentes sobre o prédio em que professado o culto; na segunda hipótese, por sua vez, seria afastada a literalidade do texto, entendendo-se pelo substantivo “templo” a própria instituição religiosa, o que alcançaria todo e qualquer imposto. Entre esses dois extremos tem-se a regra do § 4º do art. 150, que inclui no âmbito da imunidade “somente o patrimônio, a renda e os serviços, relacionados com as finalidades essenciais das entidades” mencionadas na alínea c do inciso VI. Percebe–se, assim, que a imunidade, conquanto ampla, é limitada pela necessária correlação do fato gerador em potencial com as finalidades essenciais da instituição religiosa.[15]

3.3. O ensino religioso nas escolas públicas. 

Ao reconhecer a liberdade de crença e vedar que o Estado mantenha, estimule, subvencione ou restrinja o exercício de qualquer religião, a Constituição de 1988 delineou a sua laicidade. Em outras palavras, o Estado deve ser neutro: não pode existir uma “fé oficial” e não deve ser dispensado tratamento privilegiado a religiões específicas.

Laicidade, no entanto, não guarda similitude com o isolamento ou a desconsideração do relevante papel desempenhado pela religião na sedimentação do alicerce ético e moral de qualquer sociedade, o que torna particularmente clara a ratio do comando constante do § 1º do art. 210 da Constituição brasileira (“O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental”).[16] Ao determinar a inserção do ensino religioso na grade curricular das escolas públicas de ensino fundamental, a ordem constitucional tem, como objetivo, o de orientar o jovem no exercício de sua liberdade de crença, permitindo o conhecimento da essência de cada religião e, consequentemente, a escolha da religião a ser professada. Ínsita na liberdade de crença, está a liberdade de não professar crença alguma, daí decorrendo o caráter facultativo desse tipo de disciplina, cuja relevância deve ser devidamente avaliada pelos pais em relação aos filhos menores (CR/1988, art. 229).

Como soa evidente, o ensino religioso nas escolas públicas deve ser compatibilizado com a neutralidade do Estado, o que impede permaneça ele adstrito a uma ou outra fé específica, desconsiderando os contornos gerais do fenômeno religioso, suas origens e formas de manifestação. Assim, ou a disciplina permanece no plano geral ou é estruturada de modo a permitir a exposição dos traços fundamentais de cada uma das religiões existentes no ambiente sociocultural. Nesse particular, a Grundgesetz alemã de 1949, no inciso 3 do seu art. 7º, teve a preocupação de deixar expresso o que já estava implícito no sistema: sem prejuízo da supervisão do Estado, o ensino deve ser ministrado de acordo com os “princípios das comunidades religiosas” (Grundsätzen der Religionsgemeinschaften). Cada religião deve ter seus dogmas retratados com fidelidade, sem preconceitos ou proselitismos, o que é um claro indicativo da inviabilidade de um único docente, que professe ou simpatize fé específica, ser o responsável pela disciplina. Ainda segundo o paradigma alemão, “nenhum professor pode ser obrigado, contra a sua vontade, a ministrar instrução religiosa” (“Kein Lehrer darf gegen seinen Willen verplichtet werden, Religionsunterricht zu erteilen”), comando que é de todo compatível com a sistemática constitucional brasileira. Afinal, como exigir, por exemplo, que um cristão fervoroso explique aos seus alunos os alicerces do budismo, que apregoa a inexistência de um Deus, e os aspectos que, sob a ótica dessa religião, a diferenciam e a tornam mais densa que as demais? 

A temática, como se percebe, é delicada, e exige muito cuidado na transposição do comando constitucional para a realidade, isto sob pena de o ensino religioso se transmudar em evidente proselitismo ou em instrumento de repulsa a religiões específicas.  A melhor forma de contornar os obstáculos existentes consiste em contextualizar o ensino religioso no plano histórico, retratando a importância das distintas religiões na evolução da humanidade. Com isto, o Poder Público evita admitir docentes a partir de critérios religiosos e, principalmente, afasta o risco de que o ensino religioso se transmude em proselitismo.       

3.4. A assistência religiosa nas entidades de internação coletiva.

A liberdade religiosa pode ser concebida em duas perspectivas, uma intrínseca, a liberdade de crença, inerente à intimidade do ser humano, e outra extrínseca, afeta à liberdade de culto, momento em que ocorre a exteriorização da fé. Enquanto a liberdade de crença pode permanecer confinada aos setores mais recônditos da personalidade humana, de modo que o seu exercício sequer seja conhecido por aqueles que convivem com a pessoa no ambiente social, com a liberdade de culto não ocorre o mesmo. Acresça-se que o culto, conquanto possa ser realizado no plano puramente individual, permitindo que a pessoa humana, isoladamente, exteriorize a sua fé, o mais natural é que manifestações dessa natureza sejam realizadas coletivamente, sendo conduzidas por sacerdotes devidamente qualificados.

Ao assegurar, no inciso VII de seu art. 5º, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva, a Constituição de 1988 buscou criar as condições necessárias à plena operatividade da liberdade religiosa.[17] Afinal, a sua face extrínseca, a liberdade de culto, seria inevitavelmente comprometida com as inevitáveis restrições que caracterizam estabelecimentos dessa natureza. O comando constitucional ainda traz consigo outra funcionalidade, a de estimular a aceitação do apoio religioso, contribuindo para a reconstrução psíquica e espiritual de todos aqueles que se encontrem internados. Confina-se o corpo, liberta-se a mente.

A assistência religiosa, no entanto, deve se compatibilizar com o caráter laico do Estado brasileiro, o que impede que algumas religiões sejam privilegiadas em detrimento das demais. O mais aconselhado, assim, é que seja permitido o acesso, observadas as normas necessárias à garantia da segurança e da disciplina internas, dos representantes das distintas religiões existentes, de modo que os internos que já professam uma fé possam continuar a professá-la, e aqueles que assim o desejem possam iniciar a sua trajetória e exercer livremente a crença que venham a escolher. A forma e os limites dessa assistência serão definidos pela legislação infraconstitucional,[18] que não pode, como soa evidente, destoar dos contornos básicos dessa liberdade constitucional.

No plano infraconstitucional, a Lei nº 9.982/2000 assegura aos religiosos de todas as confissões, respeitadas as normas internas de segurança (art. 2º), o direito de acesso aos estabelecimentos de internação coletiva, estando o apoio espiritual condicionado à aquiescência dos internados ou, no caso de doentes que não estejam no gozo de suas faculdades mentais, à aquiescência dos seus familiares (art. 1º).

Na sistemática anterior, dispunha a Emenda Constitucional nº 1/1969 (art. 153, § 7º) que “[s]em caráter de obrigatoriedade, será prestada por brasileiros, nos termos da lei, assistência religiosa às forças armadas e auxiliares, e, nos estabelecimentos de internação coletiva, aos interessados que a solicitarem, diretamente ou por intermédio de seus representantes legais.” Como se constata, com o advento da Constituição de 1988 não persiste a exigência de que a assistência seja prestada por “brasileiros”, corolário lógico da amplitude dos direitos fundamentais que o art. 5º, caput, reconhece aos estrangeiros. Acresça-se, ainda, que a supressão da autorização para que a assistência religiosa seja prestada “às forças armadas e auxiliares” em nada se confunde com uma espécie de silêncio eloquente, vedando seja tal autorização conferida pela legislação infraconstitucional. Afinal, a funcionalidade dessa assistência é assegurar a materialização da liberdade de crença afeta a todo e qualquer ser humano, inclusive aqueles em serviço junto às Forças Armadas, isto sem olvidar a sua plena compatibilidade com o ambiente militar, fortalecendo espiritualmente pessoas que vivem sob intensa pressão. Tal, no entanto, não significa possa o Estado brasileiro contratar e remunerar religiosos de crenças específicas (v.g.: os Capelães Militares) para prestar esse tipo de atendimento às custas do Erário: além de violar a laicidade do Estado, medidas dessa natureza terminam por privilegiar certas religiões em detrimento de outras e a comprometer o pleno desenvolvimento da liberdade de crença, já que o militar somente terá acesso à religião professada pelo sacerdote contratado pelo Poder Público.

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Sobre o autor
Emerson Garcia

Membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GARCIA, Emerson. A religião entre a pessoa humana e o Estado de Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4127, 19 out. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/32816. Acesso em: 26 abr. 2024.

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