SISTEMA DE INEFICÁCIA DOS ATOS NO REGiME FALIMENTAR
1. INTRODUÇÃO
Empreender, montar um negócio e tornar-se empresário ou sócio de sociedade empresaria não é uma tarefa fácil, ao contrário além do trabalho burocrático, da pressão fiscal e do alto impacto dos encargos trabalhista ainda há o risco natural do mercado, a possibilidade do empreendimento dar errado e o empreendedor perder o que investiu é real e até mesmo comum no mundo dos negócios.
A alteridade – risco do empreendimento que recai no empresário – da atividade empresaria é um grande problema para quem quer começar o próprio negócio. O risco todo recai sobre o empresário, se der certo ele será reconhecido com uma pessoa de sucesso, alguém sagaz, competente e admirado pela sociedade. Se der errado, terá a pecha de incompetente, de desorganizado, e ainda terá em suas costas diversos ônus e obrigações legais a cumprir além dos credores à sua porta. O professor MAMEDE ilustra bem essa situação, como vemos:
“A insolvência, a incapacidade de adimplir as obrigações, é normalmente objeto de ampla repreensão social. Palavras como insolvente, falido, quebrado estão marcadas por um valor negativo, vexatório, intimamente ligado à ideia de caloteiro, criminoso, fraudador, desonesto, trapincola, entre outros.” (MAMEDE, v.4, 2012, p.25).
As pessoas em geral tendem a pensar que o falido chegou à situação de quebra por sua própria vontade, que deu o golpe na praça e passou os credores para trás. O que é um pensamento equivocado. Apesar de que é plenamente possível o fato de um empresário deliberadamente chegar a essa situação de forma dolosa, querendo realmente prejudicar terceiros, não se pode partir desta premissa como regra, mas como exceção. Nosso ordenamento jurídico presume a boa-fé e não o contrário. O mais comum é que se chegue a uma situação de insolvência por situações do próprio mercado, por imprudência, por negligência, entre outras diversas causas.
Contudo, é possível que após falir – não importa o motivo –, o empresário ou sócio de sociedades empresárias se sintam tentados a proteger seu patrimônio pessoal ou até mesmo os patrimônios cometidos à empresa, tentando burlar a lei de falência e prejudicando os sues credores. De tal forma, nosso ordenamento jurídico, assim como diversos outros pelo mundo, busca proteger os credores do falido, através de regras de ineficácia de negócios jurídicos praticados com a intensão de fraudar o regime de falências.
2. TEORIA DA NULIDADE DOS ATOS JURÍDICOS
Antes de explicar o que é um ato ineficaz é preciso esclarecer que este pode se tratar de um gênero dos quais são espécies o ato nulo, ato anulável, e o ato ineficaz estrito sensu. Apesar de ser um tema um tanto quanto tormentoso no Direito Civil partiremos desta doutrina clássica de inspiração romanista das nulidades sustentadas no Brasil por nomes como Caio Mario Pereira, Serpa Lopes y Orlando Gomes[1].
Um ato nulo é um ato que padece de vício grave e insanável que surge desde a origem (ab origene). Isto quer dizer que ele jamais estará apto a produzir os efeitos pretendidos pelas partes. Não podendo nem ser convalidado pela vontade das partes ou decurso do tempo. Trata-se, portanto do vício mais grave que pode nasce com o ato impingir ao ato jurídico. Nas palavras de Juyente Bas e Franciso Sandoval temos: “(...) Implica na afetação dos pressupostos estruturais ou formais próprios do negócio jurídico que lhe retirar eficácia desde seu nascimento” (BAS e SANDOVAL, 2009, p. 105, tradução nossa).
Na mesma esteira o jurista italiano Emílio Betti, afirma: “é nulo o negócio que, por falta de algum elemento essencial é incapaz para dar vida aquele nova situação jurídica que o direito daria ao tipo legal (...)” (BETTI, 1959, p. 348-349, tradução nossa).
Já os atos jurídicos anuláveis, apesar de também possuírem um vício de origem, este vício não é tão grave a ponto de comprometer de morte o ato. Normalmente este tipo de vício contraria algum tipo de norma de caráter privado, disponíveis pelas partes. Assim que pode ser convalidado pelo decurso do tempo ou vontade das partes, surtindo os efeitos que dele se esperava.
Um dos maiores problemas é a classificação dos atos inexistentes. Porque classificar o que não existe? Tal classificação encontra diversas divergências na doutrina, não sendo expressamente adotada em nosso Código Civil atual, porém a doutrina o menciona. Para PEREIRA o ato inexistente não possui um elemento material de existência, lhe falta o sujeito, objeto ou forma necessária. O vício nesse caso é tão grave que sequer o ato existe, tendo apenas existência aparente (PEREIRA, 1996, p.412).
Por fim o ato ineficaz estrito sensu, ou ainda denominado relativamente ineficaz ou inoponível. Os atos ineficazes são normalmente produzidos, com aparente legalidade e regularidade, mas a fatores externos a confecção do e à vontade as partes ato lhe impedem de emanar à terceiros seus normais efeitos, contudo estando perfeito entre as partes que o fizeram. É o caso dos atos praticados em fraude à credores, como vemos na lição de Cesar Fiuza :
“Outro exemplo de ato jurídico ineficaz é o ato fraudulento. A fraude contra credores, na opinião de balizada doutrina, tornaria o ato ineficaz perante terceiros, especificamente os credores. Seria, contudo, eficaz perante as partes.” (FIUZA, 2012, P.276)
A doutrina comercialista estrangeira prefere tratar o ato pelo nomen juris de imponíveis, contudo nada muda na natureza jurídica do referido ato[2].
3. SISTEMA DE INEFICÁCIA DO REGIME CONCURSAL
O sistema de ineficácia do regime falimentar busca tornar relativamente ineficaz ou inoponível os atos jurídicos que busquem esvaziar o patrimônio do falido prejudicando credores e a par condicio creditorum[3]. Isto é, a igualdade condições entre os credores que não possuem uma garantia real contra o falido. Ou seja, é o mecanismo necessário de combate à fraude contra credores durante o processo de falência.
A ação que impugna o ato com finalidade de torna-lo ineficaz perante a massa falida é a ação revocatória. Conforme norma do art. 132 da Lei nº 11.101/05 (Lei de Falências).
É necessário explicar que os atos inoponíveis podem ter como base três elementos. São eles: o elemento objetivo, o elemento subjetivo ou elemento temporal.
O elemento objetivo fornece critérios exaustivos descritos pela norma, independentemente do elemento subjetivo existir ou não. Neste caso, basta que ocorra o fato descrito pela norma para que o ato possa ser declarado inoponível, inclusive ser declarado de ofício pelo juiz, por meio de incidente processual ou ainda por meio de ação revocatória. Encontramos este elemento objetivo na norma do caput do Art.129 da– Lei de Falências-. Como se vê:
“Art. 129. São ineficazes em relação à massa falida, tenha ou não o contratante conhecimento do estado de crise econômico-financeira do devedor, seja ou não intenção deste fraudar credores:
I – o pagamento de dívidas não vencidas realizado pelo devedor dentro do termo legal, por qualquer meio extintivo do direito de crédito, ainda que pelo desconto do próprio título;
II – o pagamento de dívidas vencidas e exigíveis realizado dentro do termo legal, por qualquer forma que não seja a prevista pelo contrato;
III – a constituição de direito real de garantia, inclusive a retenção, dentro do termo legal, tratando-se de dívida contraída anteriormente; se os bens dados em hipoteca forem objeto de outras posteriores, a massa falida receberá a parte que devia caber ao credor da hipoteca revogada;
IV – a prática de atos a título gratuito, desde 2 (dois) anos antes da decretação da falência;
V – a renúncia à herança ou a legado, até 2 (dois) anos antes da decretação da falência;
VI – a venda ou transferência de estabelecimento feita sem o consentimento expresso ou o pagamento de todos os credores, a esse tempo existentes, não tendo restado ao devedor bens suficientes para solver o seu passivo, salvo se, no prazo de 30 (trinta) dias, não houver oposição dos credores, após serem devidamente notificados, judicialmente ou pelo oficial do registro de títulos e documentos;
VII – os registros de direitos reais e de transferência de propriedade entre vivos, por título oneroso ou gratuito, ou a averbação relativa a imóveis realizados após a decretação da falência, salvo se tiver havido prenotação anterior.
Parágrafo único. A ineficácia poderá ser declarada de ofício pelo juiz, alegada em defesa ou pleiteada mediante ação própria ou incidentalmente no curso do processo.” (grifos nosso)
O elemento subjetivo, por sua vez, exige uma análise mais complexa do ato. É necessário perquirir a intenção do agente que pratica o ato em fraudar os credores (consiliun fraudis), ou o conhecimento de que aquele ato está prejudicando os credores (scientia fraudis).
Neste caso seria necessário o uso da ação revocatória para impugnar o ato. É por exemplo o que se vê na norma do art. 130 da Lei nº 11.101/05 (Lei de Falências), como vemos: “art. 130. São revogáveis os atos praticados com a intenção de prejudicar credores, provando-se o conluio fraudulento entre o devedor e o terceiro que com ele contratar e o efetivo prejuízo sofrido pela massa falida.” (grifo nosso).
A questão do efetivo prejuízo não é elemento em si do ato mas tão somente requisito lógico, pois se prejuízo não houve não há sentido em se impugnar o ato, já que não haveria quebra da par condicio creditorum.
O elemento temporal estabelece um período que a ineficácia poderá alcançar após ser declarada. Isto é, até que data a declaração de ineficácia pode retroagir e alcançar atos praticados no passado. A lei brasileira de falências, todavia não estabelece um elemento temporal de ineficácia, podendo os atos no passado serem alcançados não importa o período desde que se enquadrem nos casos de ineficácia embasados por elementos objetivos ou subjetivos vistos anteriormente.
Por fim não se pode dizer que a ausência de elemento temporal com inexistência de prazo para se impugnar o ato, pois o direito de impugnar o ato via ação revocatória prescreve em três anos contados da data de decretação da falência (conforme art.132 da Lei de Falências), mas o ato atacado pode ter sido praticado muito antes de ter sido a falência declarada.
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
Para a elaboração das presentes orientações, foram consultados os seguintes materiais:
BAS, Francisco Junyent y SANDOVAL, Carlos A Molina. Ley de concursos y quiebras comentada.TOMO II. Buenos Aires. Lexis Nexis Depalma. 2009.
BETTI, Emílio. Teoria general del negocio jurídico. 2. ed. Madri:Revista de derecho privado, 1959.
FIUZA, César. Direito civil. Curso completo. 15. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2012.
HEREDIA, Pablo Damián. Tratado exegético de derecho concursal - Ley 24.522 y Modificatorias, Comentada, Anotada y Concordada. Tomo 4. Artículos de 115 a 142. Buenos Aires. Editora Ábaco de Rodolfo Depalma. 2002.
MAMEDE, Gladston. Direito Empresarial Brasileiro – Títulos de Crédito. 4ª Ed. São Paulo. Atlas. 2008.
PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de direito civil.18ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996.
RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito empresarial esquematizado. 4. Ed. Rio de Janeiro: Método, 2012.
[1] FIUZA, Cesar. DIREITO CIVIL – CURSO COMPLETO. Belo Horizonte. Del Rey. 2012. p.269
[2] HEREDIA, Pablo Damián. Tratado exegético de derecho concursal-Ley 24.522 y Modificatorias, Comentada, Anotada y Concordada. Tomo 4. Buenos Aires. Editora Ábaco de Rodolfo Depalma. 2002. p.121.
[3] RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito empresarial esquematizado. 4. Ed. Rio de Janeiro: Método, 2012.p. 611. “Para os devedores insolventes, portanto, estabelece o arcabouço normativo uma execução especial, na qual todos os credores deverão ser reunidos em um único processo, para a execução conjunta do devedor”. “Em vez de se submeter a uma execução individual, pois, o devedor insolvente deverá se submeter a uma execução concursal, em obediência ao princípio da par condicio creditorum, segundo o qual deve ser dado aos credores tratamento isonômico.”