4. Unicidade sindical: princípio ou regra no direito brasileiro?
Conforme já explicamos, a contemporaneidade, impelida por mudanças de ordem social e jurídica que impeliram a Constituição e os princípios jurídicos a assumir lugar central no Direito, é marcada justamente por um tenso embate entre a aplicabilidade dos princípios e o uso das regras ao dirimir os conflitos.
Na verdade, busca-se compreender o fenômeno pelo qual tem passado o direito brasileiro como um todo, repensando como um todo justamente por conta das mudanças acima referidas.
Tentamos entender, de maneira angustiante, como um sistema jurídico baseado na legalidade, na segurança jurídica e mesmo na separação dos poderes pode permitir que convivam, com suas “justas” e “seguras” regras, normas que têm assento em determinações abstratas de dever-ser meramente finalísticas e móveis conforme critérios indefinidos do aplicador do direito.
Passamos, em verdade, por uma crise de identidade jurídica: importamos uma Teoria dos Princípios americana[2], temperada com uma teoria do Estado e do Direito alemã[3], e queremos aplicar tais teorias num país com uma tradição legalista profunda e arraigada, felizmente ou infelizmente. Daí por que tantos questionamentos; daí por que o debate ser tão intenso: é uma mudança de paradigmas.
E foi essa angustiante mudança paradigmática que despertou-nos o desejo de pesquisar sobre esse tema. Ora, a unicidade sindical deve ser encarada como princípio ou regra no direito brasileiro?
Em nosso sentir, encarar a unicidade sindical como um princípio constitucional (uma vez que sua determinação é encontrada em já comentado dispositivo da Constituição), é cair numa imprecisão terminológica e científica que em nada contribui para o crescimento do conhecimento jurídico, em especial num momento de flagrante crise e chagas abertas pela qual passa o mundo acadêmico do Direito pelas razões já apontadas.
O raciocínio a que nos leva tal conclusão é simples: pode-se dizer que a unicidade sindical é um comando eminentemente teleológico imposto pela norma constitucional?
Entendemos que não, posto ser uma determinação clara e imediata, na qual o artigo 8º, II, da Carta Constitucional proíbe (veda, em termos da própria Constituição) a criação de mais de um sindicato representativo da mesma classe econômica ou profissional numa mesma base territorial. É uma proibição a que não cabe ponderações de valores ou princípios, nem mesmo condutas necessárias à observância do ideal finalístico imaginado pela norma.
Há como buscar na jurisprudência, em casos passados, ou mesmo em construções doutrinárias se há ou não unicidade sindical? Vencido o questionamento “há mais de um sindicato representando a mesma categoria numa mesma base territorial?”, atende-se ou não os ditames da unicidade sindical. Não há como sopesar a unicidade sindical com o princípio da liberdade sindical (esse sim, autêntico princípio jurídico). Parece-nos que essa ponderação já fora feita pelo legislador constituinte originário ao determinar, claramente, sua opção pela unicidade.
Poder-se-ia vislumbrar uma exceção a tal regra de representação o princípio da especialidade no enquadramento e representação sindical. Segundo Sergio Pinto Martins, (MARTINS, 2011), uma vez comprovada a existência da necessidade de representação mais específica de uma determinada categoria, é possível o desmembramento do sindicato anterior para a criação de um novo sindicato, mais pontual e mais representativo de uma categoria determinada, desde que tal desmembramento não implique a extinção do sindicato mais geral.
Nesse sentido, parece-nos desarrazoado alocar a unicidade sindical como espécie normativa do gênero princípio.
E por que seria essa nossa preocupação?
Justamente pela busca de um melhor entendimento da ciência jurídica e melhor compreensão dos embates teóricos essenciais à atual e futura configuração do Direito. Percebemos que a expressão “princípio da unicidade sindical” é usada indiscriminadamente por uma parte da doutrina e massiva jurisprudência, causando profunda confusão nos estudantes de Direito e redundando em imprecisão no estudo jurídico da Teoria dos Princípios e do próprio Direito do Trabalho.
Somente a nível de ilustração, tivemos acesso a 270 acórdãos de tribunais superiores[4] que alocam a unicidade sindical como “princípio constitucional”, cometendo falta, esperamos que inconsciente, com o compromisso técnico-científico da ciência do Direito e não contribuindo em nada para a já inflamada batalha que se trava entre princípios e regras e sua aplicação.
Desses tantos acórdãos, trazemos apenas alguns, para que ilustrem nossa produção.
Processo MS 4477 / ESMANDADO DE SEGURANÇA1996/0015598-4 Relator(a) Ministro MILTON LUIZ PEREIRA (1097) Órgão Julgador S1 - PRIMEIRA SEÇÃO Data do Julgamento 10/09/1997 Data da Publicação/Fonte DJ 17/11/1997 p. 59397DECTRAB vol. 2 FEVEREIRO/1998 p. 236
EMENTA : MANDADO DE SEGURANÇA. SINDICATO. LIBERDADE SINDICAL. PRINCIPIO DA UNICIDADE. CF/1988, ART. 8., II. CC, 18. LEI 6.015/1973, ART. 119.
1. A LIBERDADE DE ASSOCIAÇÃO PROFISSIONAL E SINDICAL ESTA ERIGIDA COMO SIGNIFICATIVA REALIDADE CONSTITUCIONAL, FAVORECENDO O FORTALECIMENTO DAS CATEGORIAS PROFISSIONAIS (ART. 8., CF/1988).
2. O PRINCIPIO DA UNICIDADE NÃO SIGNIFICA EXIGIR APENAS UM SINDICATO REPRESENTATIVO DE CATEGORIA PROFISSIONAL, COM BASE TERRITORIAL DELIMITADA. TEM A FINALIDADE DE IMPEDIR QUE MAIS DE UM SINDICATO REPRESENTE O MESMO GRUPO PROFISSIONAL. O DESMEMBRAMENTO E DESFILIAÇÃO DE PROFISSIONAIS DE CONGLOMERADOS ASSOCIADOS, MESMO CONFLITANTE COM O DESEJO DE REFORÇAR AS ATIVIDADES, ORGANIZANDO ESPECIFICO SINDICATO COM CATEGORIAS PROFISSIONAIS OU ECONOMICAS BEM DEFINIDAS E CONSEQUENCIA DA LIBERDADE SINDICAL.
3. NO CASO, OS SINDICATOS INTERESSADOS PROPÕEM-SE A REPRESENTAR CATEGORIAS ECONOMICAS DIVERSAS E DE PERFIL PROFISSIONAL DEFINIDO, SENDO DEFESO AO ESTADO INTERVIR SOBRE A CONVENIENCIA OU OPORTUNIDADE DA CRIAÇÃO DE MAIS DE UMA ORGANIZAÇÃO SINDICAL,PORTANTO, NÃO PODENDO FORÇAR A FILIAÇÃO CONGLOMERADA NO MESMO SINDICATO. VEDA-SE-LHE DEFINIR IMPOSITIVAMENTE AS CATEGORIAS PROFISSIONAIS OU ECONOMICAS PARA A INTEGRAÇÃO ASSOCIATIVA.
3. PRECEDENTES DA JURISPRUDENCIA.
4. SEGURANÇA DENEGADA. (grifo nosso)
Agora, outro acórdão, dessa vez do próprio Tribunal Superior do Trabalho:
AGRAVO DE INSTRUMENTO - PRINCÍPIO DA UNICIDADE SINDICAL - DEMEMBRAMENTO VÁLIDO DE SINDICATO O princípio da unicidade sindical não garante ao sindicato a intangibilidade de sua base territorial, permitindo que sindicatos sejam criados a partir do desmembramento da base territorial de outra entidade, desde que o território de ambos não se reduza a área inferior a de um município.Precedentes do STF e do TST.Agravo de Instrumento a que se nega provimento. (TST - AIRR: 1347407520055020053 134740-75.2005.5.02.0053, Relator: Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, Data de Julgamento: 26/03/2008, 8ª Turma,, Data de Publicação: DJ 28/03/2008.)
Foi a percepção de tal fato: a imprecisão científico-terminológica do termo “princípio” e seu uso no Direito brasileiro que nos impelira a pesquisar a esse respeito, tentando elucidar tal embate. E, a nosso ver, a unicidade sindical, no direito brasileiro, se porta não como princípio constitucional, pelas razões acima trazidas, mas sim como verdadeira regra constitucional.
Tal pensamento, também com base em tudo que já fora dito, é encontra repouso no fato de, como dito, as regras representarem mandamentos imperativos de dever-ser com caráter eminentemente descritivos e somente mediatamente finalísticos, no qual sem traça um itinerário de procedimentos a se cumprir para se atingir um determinado fim, fim esse não relevante para regra.
Como se pode perceber, a determinação constitucional é clara: prega a realização de um conjunto determinado de atos – a criação sindical -, a ser feita na forma da lei, mas observando o mandamento da vedação à criação de mais de um sindicato que represente uma mesma categoria profissional ou econômica numa mesma base territorial. É, pois, uma inequívoca regra constitucional, aplicável pelo método da subsunção, sem necessidade de ponderação ou juízo de condutas necessárias a um determinado fim.
O fim, o legislador já estabelecera: uma representação sindical forte, não prejudicada por uma pluralidade de sindicatos representando os mesmos trabalhadores numa mesma região, evitando, assim, a difusão de interesses e dificuldades de processo decisivo no direito coletivo do Trabalho.
Corroborando com nosso posicionamento, temos uma decisão do Supremo Tribunal Federal, a qual trazemos, apesar de extensa:
E M E N T A: Financiamento de campanhas eleitorais: vedação de contribuições de entidades sindicais ou de classe (L. 8.713/93, art. 45, VI): argüição de inconstitucionalidade por violação do princípio da isonomia: medida cautelar indeferida, vencido em parte o relator e os que o acompanharam, que a deferiam para suspender a proibição dirigida às entidades não sindicais de classe. 1. Considerações gerais sobre o problema da regulação e da tentativa de redução à medida do inevitável da influência do poder econômico nas eleições - desafio mais dramático do Direito Eleitoral contemporâneo - e acerca do ensaio de solução da L. 8.713/93, que, reconhecendo a superação do ingênuo modelo proibitivo da legislação anterior, rendeu-se - com a permissão das contribuições eleitorais de pessoas jurídicas e particularmente das empresas privadas -, à realidade incontornável da interferência do poder econômico na disputa do poder político, a fim de buscar discipliná-la. 2. Manutenção, não obstante, da vedação de contribuições de entidades de classe, sindicais ou não: argüição de sua inconstitucionalidade por afronta à isonomia. 3. Oponibilidade ao legislador do princípio constitucional da igualdade, que, somado à consagração explícita do princípio do devido processo legal, se traduz na exigência da razoabilidade das disposições legais e na proscrição da lei arbitrária. 4. Razoabilidade da proibição questionada, com relação às entidades sindicais, dada a limitação do princípio constitucional de sua liberdade e autonomia pela regra, também constitucional, da unicidade, que - além de conferir-lhes poder de representação de toda uma categoria, independentemente da filiação individual dos que a compõem -, propicia a manutenção da contribuição sindical, estabelecida por lei e de inequívoco caráter tributário, cujo âmbito de incidência também se estende a todos os integrantes da categoria respectiva. 5. Divisão do Tribunal quanto à plausibilidade da argüição de ofensa à isonomia, no tocante à proibição imposta às entidades não sindicais de classe: a) votos majoritários que entenderam razoável a discriminação, à vista da distinção constitucional entre entidades de classe e associações civis em geral (v.g., CF, art. 5º, LXX); b) votos vencidos, a partir do relator, no sentido da falta de congruência lógica entre o fator de discrímen - o cuidar-se de entidades de classe - e a discriminação legal questionada, no contexto de uma lei, que facultou amplamente o financiamento de campanhas eleitorais às organizações privadas de todo o tipo, independentemente de sua forma e regime jurídicos e do seu objeto social, pouco importando a falta de conexão deste com a atividade política partidária. (STF - ADI: 1076 DF , Relator: Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Data de Julgamento: 15/06/1994, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJ 07-12-2000 PP-00003 EMENT VOL-02015-01 PP-00115) (grifo nosso)
Assim, o STF se posicionou, em tal decisão, alinhado ao pensamento que transcrevemos acima. Afirmou o Pretório Excelso que o mandamento constitucional da unicidade sindical é uma regra jurídica, e não um princípio. Deve, portanto, ser aplicado sem ponderação ou valoração pelo operador do Direito, posto que, como regra, sua ponderação com outros valores, em especial a liberdade sindical, já fora feita pelo legislador constituinte originário.
5. Conclusões
Dado o posto, percebe-se, inicialmente, que a realidade jurídica brasileira passa por uma delicada situação de reavaliação de seus conceitos, e com o Direito do Trabalho não poderia ser diferente. Devido a crescente constitucionalização de todos os ramos do Direito, não lhe escapou estar intrinsecamente ligando às normas constitucionais, sejam elas princípios ou regras.
Assim, a discussão que tem sede eminentemente no Direito Constitucional passa a influenciar, também, o Direito do Trabalho, pontualmente a respeito da natureza de princípio ou regra de um conhecido instituto do Direito Coletivo Laboral que é a unicidade sindical. Tão relevante para a própria ordem trabalhista, esse instituto, a que caracterizamos de regra jurídica constitucional, comanda a representação de uma determinada classe trabalhista ou financeira por um único sindicato numa mesma base territorial.
Entretanto, como dito, essa natureza de regra constitucional foi, e ainda o é, por muitos campos de atuação do Direito do Trabalho como ciência jurídica – seja a magistratura, os advogados, a doutrina trabalhista - ignorada ou desconhecida, o que diminui a precisão científica dessa disciplina e acentua ainda mais grave tensão entre a aplicabilidade dos princípios jurídicos e a aplicação das regras jurídicas aos casos concretos.
Portanto, pretendeu-se com esse trabalho levantar o questionamento sobre o purismo terminológico necessário à construção da ciência jurídica, bem como alocar, de forma coerente às modernas teorias jurídicas a respeito de suas normas, a unicidade sindical não como princípio, e sim como regra constitucional perfeitamente cogente.
Notas
[1] A respeito das Cláusulas Pétreas, nada melhor que consultar a obra de Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco, “Curso de Direito Constitucional”, Saraiva, 2012, capítulo 2, II, 4.
[2] Referimo-nos a obra de Ronald Dworkin, em especial a Taking Rights Seriously (1977), e A Matter of Principle (1985).
[3] Referimo-nos à obra de Robert Alexy, em especial a “Direito, Razão, Discurso: Estudos para a Filosofia do Direito” (1995) e The Argument from Injustice: A Reply to Legal Positivism. (2002).
[4] Fonte: Rede de Informação Legislativa e Jurídica “LEXML”. http://www.lexml.gov.br/busca/search?keyword=princ%C3%ADpio+unicidade+sindical&f1-tipoDocumento=Jurisprud%C3%AAncia