Não resta dúvida, em todos os lugares a violência aumentou substancialmente, principalmente nas áreas urbanas, o que gera uma miscelânea de medo, apreensão e revolta. Recordo-me, há alguns anos atrás, na minha infância, do pacato ambiente da minha pequena cidade - Areia Branca, no interior do Rio Grande do Norte, cuja população ainda é pequena, o último senso do IBGE deu um pouco mais de 25 mil habitantes - onde dormíamos de portas abertas como costumávamos dizer. Essa não é, certamente, a nossa atual realidade, pois mesmo nela, nosso pequeno pedaço do paraíso, o flagelo da violência e criminalidade se mostra latente. Dados oficiais indicam que o número de delitos cresceu. Agora, é mister indagar as razões que explicam esses acontecimentos.
O crime é um fato social, - teoria de Durkheim, embora, segundo Lucien Goldman, sua tendência "a subestimar a importância dos fatores econômicos na compreensão dos fatos humanos" se mostra latente - como tal, suas razões se encontram no seio que o produziu. Não é original ou novo esse pensamento, pelo contrário, é relativamente antigo, mas o senso de individualidade produzido ao longo de centenas de anos numa mentalidade sustentada pela chamada vontade potestativa absoluta e sobressalente em relação às demais e fortes influências das fontes mesológicas, esta sendo o que a vulgata da população acredita. Isso de forma nenhuma me surpreende, pois as visões de mundo e suas ideologias tem uma lógica de cima para baixo - da elite para as massa. É com essa primeira alegação - individualismo do agente que pratica o crime - que inicio a querela para trazer novos prismas às questões sociais deturpadas e sensacionalizadas pelo senso comum e pelos veículos de comunicação, que cada vez mais sedento por sangue, faz o papel oposto ao do informar e conduz a população para uma espécie de vingança privada, cuja consequência tem trazido inúmeros ajustiçamentos, estes mais próximos da barbárie social que da célula da justiça.
Pois bem, esse meu primeiro enfoque é com certeza o mais importante, pois nele reside certas justificativas defendidas pelas massas e que são falsas, como por exemplo a autodeterminação do sujeito que "escolhe" viver no ambiente criminoso ou no mundo do crime. Quem já andou, assistiu um documentário ou é minimamente informado, pode ter um vislumbre do que seja o ambiente periférico, insalubre, desassistido, expurgado, enfim, adjetiva-lo não é uma tarefa das mais difíceis, o que é mais importante e que está nas entrelinhas é a falta de oportunidade ou investimento no humano, - ou seja, educação - jungido, há uma série de fatores, como convivência na geografia do estado paralelo, a carga axiológica trazida por essas relações intersubjetivas, isso tudo vai moldando o ser. Logo surge uma pergunta de caráter retórico: como uma criança que cresceu vendo tráfico de drogas, armas, dinheiro fácil acarretado pelo mundo do crime, falta de uma estrutura familiar, - geralmente tem um pai ou mãe drogado, as vezes e não raro, os dois - falta de assistência, falta de orientação, o convívio com a miserabilidade extremada etc., terá o pudor de não atentar contra outrem quando ele próprio foi deformado durante toda a sua vida?
Dentro dessa indagação cuja resposta não agrada a sociedade, haja vista que ela passa pela responsabilidade direta de todo o corpo social, que surgiram os movimentos ligados à majoração das penas e a diminuição da maioridade penal para 16 anos, como se o aumento da punição pura e simplesmente trouxesse segurança e reflexão para aqueles que tiveram toda a sua vida negada pela falta de dignidade, pelos estigmas do submundo, e neles gerasse um anteparo que interromperia condutas delituosas; não sei se essa visão é apenas apedeuta ou ela esta ligada também à atrocidade para com seus pares, ou não se quer enxergar a verdadeira raiz do problema, ou mesmo, quem sabe, pareça óbvio que o simples aumento seja inibitório - sobre a obviedade, gostaria de citar Darcy Ribeiro, onde, no seu livro Sobre o óbvio, ele diz que o cientista é como alguém que procura tirar o(s) véu(s). Entre essas obviedades, existe uma que é a necessidade que o pobre tem que exista o rico, pois se ele não existisse, eles não teriam direito à esmola ou a emprego, portanto o rico é essencial para a existência do pobre; outra dessas, é a obviedade de que os negros são inferiores aos brancos já que esses despendem grande esforço para ascenderem na vida mas não conseguem, o que é evidente pela inferioridade intelectual, é óbvio.
Assim, qual a legitimidade que o Estado brasileiro tem para aumentar pena(s) e/ou diminuir a maioridade penal se a razão da existência do próprio Estado e do ordenamento jurídico, que é a promoção do princípio da dignidade da pessoa humana, é a principal vítima da inapetência dessa conjuntura de deficiências? Nessa brincadeira de poder, quem padece dos mandos e desmandos, infelizmente, é a população carente, estando ela sujeita às intempéries do destino, onde existem duas condenações preexistentes: o nascimento e a luta pelo direito de continuar vivo - esta última me parece muito mais uma penitência que um gozo. Hoje, as atuais discussões sobre o fim do anódino - programas sociais - ganha monta pelo fato da falta de providência mais percuciente por parte do Executivo, o que gera uma situação muito próxima à da Norte América na década de 80, o relato vem do livro de Loic Wacquant, Punir os Pobres, "No decorrer das três últimas décadas, ou seja, depois dos confrontos raciais que abalaram os grande guetos de suas metrópoles, a América lançou-se numa experiência social e política sem precedentes nem paralelos entre as sociedade ocidentais do pós-guerra: a substituição progressiva de um (semi) Estado-providência por um Estado penal e policial, no seio do qual a criminalização da marginalidade e a 'contenção punitiva' das categorias deserdadas faz as vezes de política social(...)De resto, o Estado penal que substitui peça por peça o embrião do Estado social é, ele mesmo, incompleto, incoerente e muitas vezes incompetente, de maneira que não poderia preencher as expectativas irrealistas que lhe deram origem nem as funções sociais que, tacitamente, ele tem a missão de paliar." Ainda no seu livro, ele traz dados sobre o aumento da criminalidade, o que gerou um aumento de 314% na população carcerária.
O que está por baixo dessa estrutura são os fatores geradores do aumento da criminalidade: educação - ou a falta dela, ausência das condições de igualdade, preconceito, migração, crescimento populacional, desempregos ou subempregos. Antes de falarmos em quem delinque, é necessário apontar as falências das instituições governamentais, dos títeres eleitos por nós, o povo, e que são subservientes a um pequeno grupo detentor da vida, da morte e das consciências, para só então ganhar em legitimidade, onerar os pobres, - pois são os que mais são suscetíveis à prática de delitos, principalmente, os de pequeno valor, como furtos e roubos, os chamados "ladrões de galinha" - enquanto os sanguessugas da nação são mantidos no seio do poder, fazendo jus, fidedignamente, à expressão crime organizado. A mídia tem contribuído substancialmente para essa construção, fazendo apologia à vingança privada, - principalmente esses ditos programas jornalístico de cunho eminentemente policial - a linchamentos, sem falar nas cenas de pessoas dilaceradas, o que deforma o caráter das nossas crianças e até mesmo dos adultos, num movimento que desabona o sagrado valor da vida, banalizando-o.
Agora, adentrando na especificidade do tema, uma das principais bandeiras levantadas por esse pragmatismo penal e que virou merchandising político para cooptar votos, é a diminuição da maioridade penal, ganhando em notoriedade principalmente porque o então vice na chapa do presidenciável Aécio Neves nas eleições de 2014, Aloysio Nunes, do PSDB, é o autor da PEC/33 - 2012, cuja justificativa por ele utilizada segue:
“Não se pode questionar o fato de que sob a proteção deste mesmo estatuto (ECA), menores infratores, muitas das vezes patrocinados por maiores criminosos, praticam reiterada e acintosamente delitos que vão desde pequenos furtos, até crimes como tráfico de drogas e mesmo homicídios, confiantes na impunidade que a Constituição e o ECA lhes conferem. É o caso, por exemplo, de Genilson Torquato, de Jaguaretama, no Ceará, hoje já maior de idade e livre, assassino confesso de 11 pessoas, dos 15 aos 18 anos. Ou do adolescente de Maringá, conhecido como o “Cão de Zorba” que confessou ter matado 3 pessoas e teria encomendada a morte de mais 4. Ou ainda de M.B.F., o “Dimenor”, ligado à facção criminosa paulista P.C.C., que aos 17 anos confessou a morte de 6 pessoas a mando de traficantes, a primeira delas quando tinha apenas 12 anos de idade. Muitos hão de lembrar-se do menino “Champinha”, que comandou o sequestro e morte de um casal de jovens em São Paulo. Ressalte-se que este garoto já houvera sido assistido e recolhido por diversas instituições especializadas na recuperação de menores infratores, antes de praticar tão odioso crime. Mais recentemente, tivemos notícia do menor no Rio Grande do Sul, autor de 112 atos infracionais, no momento de uma audiência tentou matar a promotora de um dos seus casos. Compreendemos perfeitamente os riscos de se legislar em função de casos específicos, dando um caráter geral ao que poderia ser tratado de forma particular, especialmente em se tratando de reforma da nossa ainda jovem Constituição. Também somos contra o que se convencionou chamar de “legislação penal de urgência”, em que o legislativo se move motivado por tragédias ou crimes que chocam a comunidade, com grande repercussão midiática. Mas algo precisa ser feito em relação a determinados e específicos casos, que infelizmente têm se proliferado à sombra da impunidade e longe do alcance de nossas leis.”
Essa justificativa é tão contraditória quanto ridícula, haja vista que nela estão elencados elementos que são paradoxais à própria propositura, como ser contra ao direito penal de emergência, mas em contrário a isso, cria uma "medida de emergência" que na realidade não o é, pois não tem o condão de mitigar o problema, mas acentuá-lo. Usando casos pontuais como argumentos de base e sustentáculo - tudo bem que essa é uma realidade inegável, mas ele próprio aponta que os mandantes desses crimes são os "dimaior". Claro, pois a nossa juventude se encontra à míngua, localizando nessa "família" o preenchimento das lacunas cujo bafio deixa um rastro que se seguido encontra concepção em Brasília. Nós temos um Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que não tem a mínima observância pelos poderes, a corrupção corrói os setores políticos, as nossas universidade estão sucateadas, a educação de base e média não funcionam, e esses escroques vem falar em aumento da violência quando o produto dessa consequência tem sua raiz na sua própria inépcia e irrisão à sociedade? Pura chicana! Eu poderia aqui apontar as impossibilidades jurídicas ligadas aos Direitos e Garantias Fundamentais, mas julguei de melhor valia uma análise mais social do problema, alhures da visão mais tratadista e normativa da cousa.
Não me entendam mal, não sou a favor das barbáries cometidas seja ela por quem for, mas o Direito Penal é a última ratio e ele não tem a função de endireitar os problemas sociais, estas devem advir de políticas públicas de qualidade, pois não é na criminalização desenfreada que encontraremos solução para os problemas estruturais da nossa nação - só para trazer uma nova discussão: antes de criar novos padrões penais, quantos crimes têm seus agentes identificados? Quantos inquéritos policiais têm sujeitos definidos? Qual a taxa de eficiência desses inquéritos? Quantos crimes foram e são arquivados por falta de investigação ou mesmo nunca chegaram a ser abertos? Essas perguntas me parecem mais relevantes, pois como se pode falar em movimento de criminalização se o problema ululante é a impunidade? Temos que refletir o cotidiano, descortinar as certezas, buscar o íntimo da celeuma para não ser leviano e desmistificar as "verdades" vendidas por aqueles que não tem o escrúpulo ou à percuciência necessária para identificar soluções pontuais e eficazes.