Introdução:
Antes de iniciarmos nossa análise, é importante que se faça a crucial distinção entre aquilo que habita o mundo dos fatos e aquilo que eventualmente pode ser utilizado como instrumento de indevida oposição ao que está instituído, mormente ao que é estabelecido nas regras do jogo em uma democracia relativamente madura, é dizer, não podemos abandonar a ampla defesa e o devido processo legal para adotarmos uma concepção caótica, quixotesca, medíocre e anti-democrática; Chega-se ao absurdo de proclamar a volta do regime militar como solução para todos os problemas institucionais que estamos enfrentando. Destarte, podemos observar na atual conjuntura os dois desdobramentos supramencionados. No escândalo da Petrobrás, já vulgarmente denominado ‘‘Petrolão’’, é observável uma inevitável apropriação política e um inquestionável aspecto fático já comprovado. O escândalo inegavelmente existiu porque já estão sendo devolvidos gigantescos montantes de dinheiro provenientes do esquema. Ademais, podemos facilmente observar uma conjuntura de crise das instituições, uma vez que o escândalo da Petrobrás poderá atingir os Três poderes constituídos, ou seja, todo o arcabouço paradigmático sobre o qual se assenta a atual forma de organização social brasileira.
1.Da delação premiada e da existência do escândalo da Petrobrás;
A delação premiada é instituto previsto de forma esparsa em diversos dispositivos legais do ordenamento jurídico brasileiro, tais quais: a) Lei dos Crimes Hediondos (Lei n. 8.072/90, art. 8.º, parágrafo único); b) Lei do Crime Organizado (Lei n. 9.034/95, art. 6.º); c) Código Penal (art. 159, 4.º – extorsão mediante seqüestro); d) Lei de Lavagem de Capitais (Lei n. 9.613/98, arts. 1.º e 5.º); e) Lei de Proteção a Vítimas e Testemunhas (Lei n. 9.807/99, arts. 13 e 14; f) Lei Antitóxicos (Lei n. 10.409/2002, art.32.).
A finalidade precípua do instituto em tela é a de dar efetividade às investigações, privilegiando partícipes do crime com regalias processuais e penais, premiando o infrator delator com algumas vantagens quando da aplicação da pena, inclusive podendo resultar na extinção de punibilidade do delator.
O caso analisado se encontra em uma fase inicial de investigação, notadamente capitaneada pela Polícia Federal e com a existência de acordos de delação premiada com alguns participantes do esquema, dentre eles o ex-diretor de abastecimento da Petrobrás Paulo Roberto Costa e o doleiro Alberto Youssef. Atualmente, pelo que é noticiado, o conteúdo da delação aponta para um suposto esquema de superfaturamento de obras de refinarias, a partir do qual seria possível desviar consideráveis montantes para o financimento de partidos da base aliada e das respectivas campanhas eleitorais. Os valores envolvidos no esquema podem chegar ao montante de dez bilhões de reais, e Paulo Roberto Costa já se comprometeu a devolver uma quantia em torno de setenta milhões de reais. Durante a campanha presidencial do presente ano, a Presidente da República Dilma Rousseff confirmou a existência do esquema, postulando pela devida investigação do mesmo.
Portanto, é possível inferir que tal esquema existiu, ele habita o mundo dos fatos, devendo ser devidamente investigado e posteriormente submetido a uma Ação Penal, na qual deverão ser garantidos a Ampla defesa e o Contraditório, fundamentos do Devido Processo Legal e, por consequência, do Estado Democrático de Direito.
2- Conjuntura político-econômica;
A atual conjuntura é flagrantemente tempestuosa. Vivemos um momento de descrédito das instituições democráticas. O cidadão comum se vê distante do modelo de democracia representaiva atualmente posto, e há um estarrecimento em tempo real com os sucessivos escândalos de corrupção envolvendo a coisa pública. Não existe uma ideia única que represente tal insatisfação, e a única certeza é a de que os representantes do povo não representam mais a vontade geral, ou pelo menos a maioria da população não se vê representada no atual locus político institucional. O ápice dessa insatisfação se deu com manifestações populares descomunais em Julho de 2013.
A população brasileira clama por reformas, tanto é que elas se tornaram o cerne do debate presidencial do presente ano. Ainda dentro da conjuntura política, podemos observar uma Presidente recém eleita com uma margem relativamente pequena de legitimidade, uma vez que mais de 51 (cinquenta e um) milhões de pessoas (48% do eleitorado) escolheram o grupo oposicionista, impondo à Presidente uma atitude de diálogo com os setores insatisfeitos.
No âmbito econômico observamos uma insignificante taxa de crescimento econômico (o crescimento de 2014 não passará de 0,3%) aliada a um cenário inflacionário. Para conter a inflação as taxas de juros são elevadas, o que acaba por travar o consumo e a atividade produtiva, culminando em uma perpetuação do cenário de recessão, o que prejudica a arrecadação e por consequência a saúde do Orçamento da União, o mais significativo se comparado com o dos demais entes federativos. Sem saúde nas contas públicas o Executivo fica sem margem para promover investimentos em infra-estrutura, a maior trava ao próprio crescimento econômico.
Estamos, portanto, dentro de um círculo vicioso, com problemas econômicos gigantescos que deverão ser imediatamente resolvidos. Além disso, um ambiente econômico hostil aumenta a insatisfação popular, o que dificulta ainda mais as possibilidades de diálogo. É nesse contexto conturbado que se dará toda a investigação e uma posterior Ação Judicial sobre o caso Petrobrás.
3- Presidencialismo de coalisão. Relembrando o ‘‘mensalão’’ ;
Como se sabe, o atual sistema de governo tem como base o chamado ‘‘presidencialismo de coalisão’’. O Presidente da República utiliza de suas prerrogativas constitucionais, dentre as quais a escolha de ministros e diretores de empresas públicas, para angariar apoio no Congresso Nacional. Sem esse apoio o Presidente não adquire governabilidade, e todas as políticas que deveriam ser protagonizadas pelo Executivo podem ficar comprometidas.
O PMDB, partido da base aliada, é o cerne de toda a governabilidade do atual grupo político dada a sua considerável representatividade no Congresso Nacional. No entanto, existem diversas matizes de posições dentro desse partido, havendo dentro dele até mesmo políticos que fazem oposição ao governo. Durante o primeiro mandato da Presidente Dilma pudemos observar uma grande dificuldade de diálogo com setores insatisfeitos do PMDB, algo que possivelmente se agravará nos próximos anos. Com o agravamento do cenário econômico, o comprometimento crescente do Orçamento e a gigantesca insatisfação popular com o sistema como um todo, se tornará mais fácil para ao PMDB pender para o lado oposicionista, dificultando ainda mais as possibilidades de resolução dos problemas econômicos. O escândalo da Petrobrás, nesse contexto, serve para agravar a catástofre, uma vez que se trata de um esquema que teve como principais envolvidos políticos da base aliada, como um reflexo inevitável dessa trama de interesses que ocorre como perversão da lógica da governabilidade, só que com proporções muito maiores do que as que levaram, por exemplo, à Ação penal 470, o processo do ‘‘mensalão’’.
O mensalão é reflexo da mesma lógica perversa sobre a qual se baseia a governabilidade. O ‘‘Mensalão’’ e o ‘‘Petrolão’’ são símbolos da falência do atual sistema político representativo.
Na primeira fase do mensalão se discutia o papel institucional do Judiciário. Havia o pensamento de que o Judiciário não poderia falhar na sua função institucional e condenar a qualquer custo os acusados para que o sentimento de impunidade não prevalecesse. Esse argumento, ventilado pela mídia e apropriado pela população em um contexto linguístico, propiciou um julgamento nunca antes visto. A ação penal 470 foi acompanhada em tempo real, algo possibilitado pela capilaridade das redes socias. Essa sanha por punição foi criticada em alguns setores da Academia jurídica, com o argumento de que a vontade condenatória generalizada poderia ferir as bases da Ampla defesa, e ainda se discute hoje se essas bases foram prejudicadas.
Uma eventual Ação penal envolvendo o recente escândalo da Petrobrás reviverá os mesmos dilemas, só que em um contexto político-econômico muito mais hostil.
4- A Crise dos Três Poderes;
Como exposto anteriormente, estamos vivendo um momento político institucional conturbado, e todos os fatores que influem para esse cenário podem se agravar nas próximas etapas do caso de corrupção envolvendo a Petrobrás. O Executivo já foi afetado e o descrédito do atual modelo de Presidencialismo de coalisão é patente. Os instrumentos de política macroeconômica são responsabilidade do Ministro da Fazenda, cargo subordinado ao Executivo que preside o Conselho Monetário Nacional, órgão máximo do Sistema Financeiro Nacional. A economia vai mal, a intolerância do mercado com as políticas econômicas é tamanha que o Ministro da Fazenda foi tacitamente demitido ainda na campanha Presidencial. A Presidente poderá encontrar cada vez mais dificuldade em dialogar com o Congresso Nacional já que a insatisfação geral, inclusive a expressiva votação que o grupo oposicionista conquistou, concorrem para estabelecer e perpetuar um ambiente hostil, mormente pela tendência do PMDB de não transigir em aprovar políticas cruciais através de leis. Por último, o escândalo da Petrobrás poderá servir para manchar ainda mais a imagem do grupo governista, o principal beneficiado pelo escândalo envolvendo a estatal.
A crise do Legislativo é igualmente patente. É historicamente sobre o Legislativo que se observa a maior carga de insatisfação popular, já que os representantes do povo facilmente se submetem a interesses que não refletem necessariamente o bem comum. A sensação é de que a vontage geral só é atendida quando os interesses privados e os interesses dos grupos de poder eventualmente concorrem para a construção de algo que tenha alguma utilidade para a sociedade, e tal utilidade geralmente é subordinada a pretensões populistas, que têm em seu bojo unicamente a conquista de votos para a preservação do poder. As demandas sociais, que são historicamente e mundialmente infinitas, não são devidamente atendidas, não há diálogo institucional, tampouco ação comunicativa entre o centro do sistema democrático e o seu ator principal, que é o povo. Ademais, escândalos de corrupção mancham facilmente a imagem do Legislativo. A imagem que o homem médio tem quando imagina um Deputado Federal ou um Senador é eminentemente pejorativa; imagina-se um usupardor do sistema democrático que ali só está para satisfazer seus próprios interesses. O escândalo da Petrobrás, só servirá para ampliar o descrédito do Legislativo, e como ocorreu com o mensalão a tensão inevitavelmente se voltará para o Judiciário.
É inegavelmente no Judiciário onde se observa a maior tensão no atual locus político-institucional. Em uma evolução paradigmática a nível mundial temos que no Estado de Direito, tipicamente liberal, a tensão se voltava para o Legislativo. Era no Parlamento que se consolidavam os ditames de uma socieadade tipicamente burguesa, onde começavam a surgir os primeiros dilemas de um sistema político-econômico marcado pelo individualismo. Posteriormente, com o Estado Social, marcante no pós-guerra, a tensão se voltara ao Executivo. Os chefes desse poder teriam a função de promover políticas que se direcionassem principalmente ao equilíbrio das forças de produção, levando à prática a igualdade material. Por último, com a falência do Executivo e do Legislativo em resolver tais dilemas, a tensão se voltou ao Judiciário. No paradigma do Estado Democrático de Direito o principal debate em torno da tripartição dos poderes se volta para a reflexão sobre a amplitude do papel do poder Judiciário. Destarte, se fala em judicialização das políticas públicas, em invasão do judiciário em temas que deveriam ser abordados precipuamente pelo Legislativo, e é sobretudo do Judiciário que se espera, como sempre se esperou, que seja feita a vingança coletiva. Se espera desse poder que não ocorra a impunidade marcante em todos os setores da vida. É assim quando se julga um acusado de latrocínio e é assim quando se julga um político acusado como participante de um esquema de corrupção. Ocorre que, o Judiciário também tem falhas, assim como tudo na vida.
Ocorre que entre os supostos participantes do esquema da Petrobrás estão Deputados e Senadores e como eles detêm prerrogativa de foro devem ser julgados pelo Supremo Tribunal Federal. Ocorre também que os Ministros do Supremo são indicados pelo Presidente da República, sendo que no próximo mandato da Presidente Dilma ela poderá indicar seis Ministros, o que significaria maioria de quórum em um eventual julgamento do caso Petrobrás. Supondo que a indicação política pode influenciar em julgamentos, podemos esperar um cenário ainda mais preocupante. Uma eventual falha do judiciário poderá significar o descrédito dos Três poderes da República e toda a simbologia de poder sobre a qual se assenta a nossa organização social pode ficar comprometida, mormente porque diferentemente do que ocorreu no mensalão, provavelmente estaremos enfrentando um cenário de instabilidade econômica e política.
Referências:
JESUS, Damásio E. de. Estágio atual da "delação premiada" no Direito Penal brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 854, 4 nov. 2005
http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2014/11/1541977-banco-central-da-a-largada-a-ajuste-que-afetara-crescimento.shtml
http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2014/10/petrobras-aguarda-autorizacao-para-que-ex-diretor-responda-perguntas.html
http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/11/1541750-ministros-articulam-fim-da-aposentadoria-aos-70-no-stf.shtml
http://www.gazetadopovo.com.br/vidapublica/eleicoes/2014/conteudo.phtml?id=1507338