10. BREVE COMPARAÇÃO ENTRE A LEI 9868/99 E A LEI 9882/99
Devido à existência de algumas semelhanças entre as Leis 9.868/99, que regula o processo das ações diretas de constitucionalidade e de inconstitucionalidade, e a Lei da argüição, resolvemos traçar alguns paralelos, apenas a título ilustrativo, para uma melhor visualização desses dispositivos legais e, em especial, do que ora nos dedicamos.
Estas duas leis trouxeram modificações efetivas para a jurisdição constitucional pátria, dentre as quais, pontuamos algumas semelhanças, quais sejam:
a)O art. 11 da Lei n.º 9882/99 e o art. 27 da Lei n.º 9.868/99 trazem a possibilidade de declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade com um quorum qualificado de dois terços dos votos dos Ministros do Supremo Tribunal Federal;
b)Ambas constituem uma forma de controle concentrado da constitucionalidade;
c)A concessão de medida cautelar, além de possível, produzirá, salvo manifestação em sentido contrário, suspensão ultrativa da norma impugnada, sempre com efeitos erga omnes e vinculantes aos demais órgãos dos Poderes Executivo e Judiciário;
d)Caberá agravo, do indeferimento da petição inicial, tanto na ação direta de inconstitucionalidade (art. 3°, § único da Lei 9.868/99), como na declaratória de constitucionalidade (art. 15, § único da Lei n° 9.868/99) e na argüição de descumprimento de preceito fundamental (art. 4°, § 2° da Lei 9.882/99);
e) A decisão que julgar procedente ou improcedente o pedido, seja de argüição de
descumprimento de preceito fundamental, de ação direta de inconstitucionalidade ou de ação declaratória de constitucionalidade, é irrecorrível, não podendo ser objeto de ação rescisória;
f)O STF promoverá a oitiva do Procurador-Geral da República em qualquer das formas de exercício de jurisdição constitucional regulamentadas pelas Leis 9.868/99 e 9.882/99;
g)Caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal quando do descumprimento do inteiro teor de sua decisão;
h)Em todos os casos, é possível haver reclamação contra o descumprimento da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, na forma do seu Regimento Interno.
11. CONCLUSÃO
Diante do exposto, nos resta concluir, inquestionavelmente, que a Lei n.º 9.882/99, regulamentadora da argüição de descumprimento de preceito fundamental, prevista art. 102, § 1º da Constituição Federal de 1988, está eivada de certos vícios de interpretação, ou seja, dispõe de um texto que certamente mereceria uma maior cuidado por parte daqueles que o elaboraram, tendo em vista o montante de divergências e discussões acerca de sua aplicação e efetivação no mundo jurídico.
Qualquer pessoa que tiver o cuidado de pesquisar acerca desse instituto, logo de início, certamente encontrará dificuldades em sua compreensão, haja vista o posicionamento, às vezes, absolutamente divergente de conhecidos e renomados constitucionalistas que se dedicaram a tentativa de desvendar as lacunas desta lei.
Em nosso sentir, contudo, este fato não implica em negarmos as vantagens que podem ser absorvidas com a correta aplicação desta lei que não é, para nós, no todo inconstitucional, como querem alguns e também não é a panacéia de longos males que vem afetando o controle de constitucionalidade brasileiro, como defendem outros, mas apenas uma lei que, de fato, trouxe consideráveis modificações para o ordenamento jurídico brasileiro, das quais algumas são absolutamente aproveitáveis e outras, infelizmente, padecem do vício da inconstitucionalidade.
Vejamos, com maiores detalhes, os aspectos que consideramos positivos nesta lei e aqueles que repugnamos, pela total inaplicabilidade no sistema jurídico vigente e por provocarem irremediáveis afrontas a Constituição Federal.
Apesar de apresentar semelhanças, não chamaríamos de avocatória o disposto no art.5, § 3º, aquele que estabelece, por vias oblíquas, a possibilidade de suspensão de qualquer feito, por parte do STF e em virtude da argüição, sob alegação de decidir matéria constitucional e nem diríamos ser inconstitucional, por desrespeito ao Principio do Juiz natural, até porque a dita argüição incidental ou incidente de inconstitucionalidade, como defende Gilmar Ferreira Mendes, não realiza propriamente um supressão das demais instâncias senão quanto à questão constitucional fundamental, fazendo-a da mesma forma que seria realizada acaso fosse interposta uma argüição autônoma, e mais, a solução da lide seguirá o seu percurso normal, sem qualquer alteração, apenas e tão somente a questão constitucional, secundária nestes processos, será argüida em caráter principal perante o STF, nossa Corte constitucional e, portanto, que detém,digamos, a "última ou principal" competência para analisar questões que envolvem a Constituição.
No que diz respeito à utilização subsidiária deste instituto nos filiamos aos ensinamentos de Gilmar Ferreira Mendes, já anteriormente exaustivamente expostos, no sentido de termos muita cautela ao considerar esta aplicação, tendo em vista que a cega interpretação do art. 4º, § 1º da Lei que trata dessa subsidiariedade, dizendo que ADPF só deverá ser manejada quando não houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade, tornaria a argüição absolutamente inútil, pois, tendo em vista o nosso controle de constitucionalidade misto e os diversos remédios constitucionais de que dispomos para salvaguardar a constituição, sempre encontraríamos outros meios de defesa dos preceitos constitucionais e, assim como o mandado de injunção, a argüição de descumprimento não teria qualquer utilidade prática, de modo que, ao considerarmos o "meio eficaz" temos que ter em mente a existência de meios verdadeiramente hábeis para sanar a lesividade, hábeis no sentido de serem verdadeiramente efetivos e imediatos.
Quanto aos efeitos vinculantes, previstos no art. 10º, § 3º e a possibilidade que o Supremo tem, por maioria de dois terços de seus membros, de restringir os efeitos da declaração ou decidir o momento em que ela terá eficácia, em ambos os casos somos da vertente que defende a absoluta inconstitucionalidade dos dispositivos, por sua total afronta ao Estado democrático de direito.
Apesar do STF, no julgamento de questão de ordem suscitada na ADC n.º 01-1/DF (Rel. Min. MOREIRA ALVES, RTJ 157/371), já ter decidido pela validade da ação declaratória de constitucionalidade criada pela EC n.º 03/93, inclusive quanto aos efeitos vinculantes de suas decisões finais, somos do entendimento de que, sem embargo de respeitáveis opiniões em contrário, há irremissível inconstitucionalidade nestes dispositivos, por violação ao princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, do juiz natural, das normas que prevêem a possibilidade de controle de constitucionalidade de leis e atos normativos incidentalmente e do princípio da separação de poderes.
Maria Helena Diniz esclarece, no Brasil, "o juiz não tem o poder de legislar", de modo que o Supremo Tribunal Federal, ao proferir decisões vinculantes está invadindo funções do Poder Legislativo e retirando dos juízes a liberdade de apreciação do caso sub judice e o uso do livre-convencimento.
Ora, admitir esses efeitos é tirar a independência dos magistrados para decidir, é impedir a beleza da constante criação do direito (Kelsen sempre defendeu que as decisões judiciais eram fontes do direito, enquanto métodos de sua criação), forma de garantia dos direitos dos jurisdicionados, como dizia Rui Barbosa, pois passaremos a cumprir normas previamente ditadas pelos Tribunais Superiores,
Admitir o efeito vinculante significa comprometer os princípios da independência dos três poderes, do duplo grau de jurisdição, da ampla defesa, do devido processo legal, da inafastabilidade do controle jurisdicional, de forma ampla, é desrespeitar o Estado Democrático de direito.
Mas, perguntar-se-ia, por que há violação ao princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional e da independência dos magistrados se o particular continua podendo dirigir suas pretensões ao judiciário e o juiz continua decidindo? Decidindo ?! Não, o Judiciário só estará aplicando o que já restou decidido pelo STF, sendo absolutamente inócua a tese apresentada, porque o juiz já saberá de sua decisão. Os advogados até se sentiriam desestimulados em apresentar suas bem elaboradas petições, seriam inúteis porque o juiz não terá mais o livre convencimento!
E o princípio do juiz natural? Ora, pela subtração da competência dos juízes e Tribunais para o exercício do controle difuso de constitucionalidade das leis e atos normativos, cuja compatibilidade já foi apreciada pelo Pretório Excelso em sede de controle concentrado de constitucionalidade, mesmo a Constituição prevendo a competência dos julgadores de exercerem o controle difuso de constitucionalidade? Pois é, daí o flagrante desrespeito a este princípio.
Somente o Poder Constituinte Originário poderia prever o efeito vinculante no controle concentrado porque a separação de poderes, como é cediço, constitui cláusula pétrea, fazendo parte do núcleo imodificável e intangível da Constituição Federal.
Não podemos admitir que as decisões do Supremo Tribunal Federal, proferidas em ação direta, ação declaratória e na argüição de descumprimento de preceito fundamental, vinculem todos os poderes e orgãos públicos, nos termos da legislação vigente, ainda mais se sabemos que tais decisões são irrecorríveis e não são passíveis, sequer, de ação rescisória. Sem falarmos nos efeitos repristinatórios na declaração de inconstitucionalidade, ou seja, torna-se aplicável a legislação anterior, que havia sido revogada pela norma impugnada.
Quanto à manipulação dos efeitos da decisão proferida na argüição, para termos idéia de sua gravidade, Alexandre de Moraes ressalta que, antes mesmo da edição das leis 9.882 e 9.868/99, Paulo Bonavides já defendia a necessidade de abrandamento dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade no controle direto, nos termos da jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão.
O artigo 11, da Lei 9.882/99 viola o princípio constitucional da nulidade da lei inconstitucional, o princípio da supremacia da Constituição, os artigos 97 e 102, inciso III, alíneas a, b e c, da Constituição Federal, o princípio da segurança jurídica e a separação dos poderes.
Portanto, a incompatibilidade vertical deste artigo com o princípio constitucional da nulidade é manifesta, pelo simples fato de que não podemos admitir que a lei restrinja o princípio constitucional da nulidade, viabilizando, desta forma, a possibilidade de que um ato inconstitucional continue a produzir efeitos.
A Supremacia da Constituição foi violada porque, uma exceção ao princípio constitucional da nulidade não poderia ter sido prevista em lei, afrontando a Carta Magna, mas deveria com ela guardar relação de compatibilidade, ora, leis não podem alterar princípios constitucionais, muito menos se pode admitir que um ato inconstitucional produza efeitos!
Há, outrossim, incompatibilidade das normas em estudo com os artigos 97 e 102, inciso III, alíneas a, b e c, da Carta Maior, que estabelecem o poder de qualquer juiz ou tribunal deixar de aplicar a lei inconstitucional.
Acreditamos que a separação dos poderes também restou violada, pois se permite que o Supremo Tribunal Federal, com uma margem de discricionariedade muita ampla, legisle, ao determinar que os efeitos da nulidade da lei inconstitucional somente ocorram no futuro, caracterizando-se como verdadeira revogação futura da validade das normas vigentes.
Passando a análise do que consideramos aspectos verdadeiramente positivos da Lei, nos filiamos ao entendimento de Thomas da Rosa Bustamante, ou seja, a possibilidade de controle de constitucionalidade das normas municipais, em virtude do grande número de leis e atos normativos municipais de constitucionalidade junto ao STF, através de recursos extraordinários e das normas pré-constitucionais.
Gilmar Ferreira Mendes afirma que "ao permitir que não apenas o direito federal, mas também o direito estadual e municipal possam ser objeto de pedido de declaração de constitucionalidade", a argüição de descumprimento de preceito fundamental veio mesmo a completar o quadro das "ações declaratórias"." [46]
E, veja-se, não só a legislação municipal, mas também as normas do Distrito Federal, encontram-se albergadas nesse controle, em toda sua integralidade.
Contudo, outros constitucionalistas, como Alexandre de Moraes, defendem a inconstitucionalidade desses dispositivos pela violação que haveria do desígnio do constituinte originário no sentido de restringir o controle abstrato às normas federais e estaduais, consoante redação do art. 102, inciso I, alínea a, da CF; e também por ter havido extensão da competência do Supremo Tribunal Federal por meio de lei.
Entrementes, não vislumbramos qualquer violação da Constituição porque, neste aspecto, conforme Olavo Alves Ferreira e Rodrigo Pieroni não há qualquer razão para se lançar mão de analogia entre a argüição e a ação direta de inconstitucionalidade.
Certamente, não nos restam dúvidas, na Adin há uma limitação constitucional às normas federais e estaduais, no entanto, em relação à argüição não vislumbramos qualquer previsão restritiva, isso sem considerarmos que o § 1º do artigo 102 da Constituição Federal também não faz qualquer ressalva, de modo que a Lei nº. 9.882/99 ampliou a competência do Supremo Tribunal Federal, tendo apenas regulamentado o instituto constitucional, em cumprimento da determinação do próprio Texto Fundamental.
Do mesmo modo, não houve restrição às normas pré-constitucionais.
Como já é de conhecimento de todos, reiterada jurisprudência do Supremo impede a utilização de ação declaratória de inconstitucionalidade contra ato normativo precedente à Constituição, sob o fundamento de que se trata de uma simples revogação. Agora, com a argüição e a previsão expressa dessa possibilidade, o direito anterior também poderá ser objeto do controle abstrato da constitucionalidade.
É uma solução que vem a suprir uma lacuna importante no sistema constitucional brasileiro, permitindo que controvérsias relevantes afetas ao direito pré-constitucional sejam solvidas pelo Pretório Excelso.
Nas belas palavras de Paulo Bonavides, in verbis:
"Todos temos o direito de nos rebelar contra qualquer espécie de coerção e abuso de poder, em qualquer instância em que se manifestem: nossa arma chama-se Constituição. Ela é a resposta à exigência também de Montesquieu, há mais de dois séculos: ‘Para que não se possa abusar do poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o poder freie o poder’". [47]
Concluindo este trabalho, lembramos que é necessário sim que tenhamos instrumentos eficazes para defender "nossa arma", a Constituição Federal, e que estejamos sempre aprimorando esses recursos, contudo, em nome disso, de forma apenas paliativa ou meramente superficial, não podemos admitir a vigência de dispositivos inconstitucionais, como se precisássemos, tão somente, de uma rapidez no suprimento das lacunas existentes em nosso ordenamento jurídico, precisamos de celeridade nessas conquistas, mas necessitamos, antes de tudo, que sejam mudanças profundas, reais e efetivas, sob pena de desrespeitarmos o maior instrumento de proteção aos direitos humanos, a Constituição Federal.