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Responsabilidade estatal pela perda de uma chance em razão do erro de diagnóstico médico

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14/11/2014 às 11:22
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Aborda-se a teoria da perda de chance à luz das doutrinas e das discussões teóricas vigentes, não só no âmbito de sua justificativa e ordenamento de critérios, mas também quando da pertinência de sua aplicabilidade.

A PERDA DA CHANCE DE CURA[1]: INFLUÊNCIAS DO CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO

São inegáveis as mudanças empreendidas pelo “neoconstitucionalismo” no pensamento jurídico contemporâneo. A ascensão da dignidade da pessoa humana ao núcleo axiológico do sistema, a valorização do sentimento constitucional, a força normativa atribuída aos princípios e à constituição, a técnica legislativa – cada vez mais amparada nas cláusulas gerais[2] – foram algumas das mudanças detidamente analisadas por Eduardo Cambi (2009) que demonstraram a falência do positivismo jurídico e a importância da constitucionalização dos direitos materiais.

Todas essas mudanças atingiram, identicamente, a responsabilidade civil. É que com o advento da Constituição de 1988, reconheceu-se a necessidade, conforme salientado por Anderson Schreiber (2009, p. 87/88), de tutelar os direitos existenciais atinentes à pessoa humana, o que representou, segundo o autor, uma autêntica revolução consubstanciada pela aplicação direta das normas constitucionais às relações privadas; implicando o reconhecimento de novos institutos e categorias.

Com a ascensão da dignidade da pessoa humana – atributo inerente a todo e qualquer ser humano – ao núcleo axiológico do sistema jurídico, essa cláusula geral, de difícil definição, passou a ser, segundo Ana Paula de Barcellos (2002, p.146) o “vetor interpretativo geral, pelo qual o intérprete deverá orientar-se em seu ofício”. Vê-se, com isso, a importante função hermenêutica galgada pela dignidade da pessoa humana que possibilitará, invariavelmente, a realização de interpretações mais extensivas, que deverão estar sempre atreladas ao idealizado por Canotilho (2000, p.225), quando reconheceu o “indivíduo como limite e fundamento da República”.

Todavia, há que se ressaltar que toda essa ascensão da dignidade da pessoa humana ao patamar de valor constitucional supremo, não significa dizer que tal valor é absoluto e que não possa, em um conflito com outras normas, ser relativizado. O que se quis, em realidade, foi transformar esse postulado normativo em uma importante diretriz na criação e interpretação das demais normas jurídicas, pois a ela atribuiu-se, conforme asseverado por Schereiber (2009, p.87) uma espécie de “superioridade material ou axiológica”.

Esse mesmo paradigma, fundado na dignidade da pessoa humana, foi, segundo Rafael Peteffi da Silva (2009, p.73), o responsável por modificar o eixo da responsabilidade civil, que passou a propiciar a reparação mais abrangente possível às pessoas, incluindo aqui, a perda da chance de obter uma determinada vantagem, quando séria e real.

Outra questão, também associada à proteção da dignidade da pessoa humana, trazida por Sérgio Savi (2006, p.90), diz respeito ao giro conceitual por que passou o conceito de ato ilícito que, segundo o referido autor, foi, para Orlando Gomes, a mais interessante mudança na teoria da responsabilidade civil. Desde que o ato ilícito deveria ser entendido como dano injusto, a fim de que outros danos, não derivados necessariamente da prática de um ilícito, fossem, também, ressarcíveis.

Vê-se, com isso, que atrelar a indenização ao dano injusto e não mais ao dano ilícito além de permitir que a responsabilidade civil cumpra a sua missão, acaba por servir, indubitavelmente, conforme salientado por Sérgio Savi (2006, p.99), como mais um fundamento para a indenização da perda de uma chance.

Todavia, há que se atentar para a advertência feita por Anderson Schreiber (2009, p.124), no sentido de que a alusão descomprometida à dignidade humana periga resultar na banalização daquilo que mais se pretendia proteger: o pedido de ressarcimento de danos extrapatrimoniais, ameaçando poluir a vocação constitucional de ressarcimento do dano à pessoa.

Após essa análise sobre os aspectos que contribuíram e que continuam a contribuir para o desenvolvimento da teoria da perda da chance, mister se faz analisar a polêmica questão do enquadramento da teoria da perda de uma chance como uma utilização pouco ortodoxa do nexo de causalidade ou como um dano indenizável que necessita, para tanto, da ampliação do conceito de dano.

Perda de uma chance: utilização menos ortodoxa do nexo causal ou fruto da ampliação do conceito de dano reparável?

O dever de reparar exige, como já salientado no segundo capítulo, a presença de alguns pressupostos, quais sejam: o dano, a conduta e o nexo de causalidade unindo os dois primeiros. Essa aparente clareza no conceito de nexo de causalidade, contrasta, segundo Anderson Schreiber (2009, p.53) com as inúmeras dificuldades práticas que surgem na sua aferição. Justamente por isso é que o autor afirma ser o nexo de causalidade o mais delicado dos elementos da responsabilidade civil e o mais difícil de ser determinado; isso porque, nem tudo que está no mundo dos fatos pode ser considerado juridicamente como a causa do evento.

Nessa acepção, Fernando Noronha (2003, p.588) distingue as expressões “condição” e “causas do dano”. Segundo o referido autor, somente os fatos determinantes serão causas, tendo em vista que somente estas são consideradas como efetivamente determinantes do resultado; os demais fatores, por seu turno, serão meras condições.

No intuito de esclarecer a distinção entre essas duas expressões, o autor distingue a teoria da equivalência de condições, da causalidade necessária e a da causalidade adequada.

Nesse mesma esteira Anderson Schireiber (2009, p.54), sintetiza as teorias mais importantes sobre o tema, para que sejam minoradas as dificuldades na compreensão da temática.

Aborda, primeiramente, a teoria da equivalência das condições, que defendia que qualquer evento que carregasse em si a capacidade de contribuir para a produção de determinada consequência seria considerado a causa para os fins de responsabilização, aproximando-se, por consequencia, da teoria da conditio sine qua non. Todavia, por se mostrar a ampliação ilimitada do dever de reparar como seu maior inconveniente, o referido autor anuncia que essa teoria mostrou-se imprestável à disciplina da responsabilidade civil.

Devido a estas circunstâncias (imputar ao agente todas as condições originadas de um dano sem as quais este não se teria produzido) é que Fernando Noronha (2003, p.589) afirma que “seria indiferente falar em causas ou condições de dano”, já que, para essa teoria, estas expressões seriam sinônimas.

Na tentativa de minorar a ampliação desmesurada do dever de reparar é que o Anderson Schireiber (2009, p.55) traz à baila a nova teoria desenvolvida por Kries, para quem “a causalidade de um evento consistia na causa mais apta, em abstrato, à produção de determinado resultado”. Ou seja, não seriam consideradas todas as causas, mas sim aquela que se mostrasse mais contundente. Não obstante a maior precisão dessa teoria em relação à anterior, tal fato não foi suficiente para afastá-la das críticas, pois a sua aplicação demandaria a avaliação de normalidade e probabilidade, o que à época era impensável, já que o ressarcimento estava condicionado não à probabilidade, mas sim à certeza.

E justamente na tentativa de fugir dessa incerteza, é que Anderson Schreiber (2009, p.57) faz referência a teoria da causalidade eficiente, que ao contrário da anterior, faz um juízo acerca da causalidade em concreto, observando qual, dentre as diversas causas, foi a mais eficiente na determinação do dano.

Malgrado tenha sido notório o avanço empreendido pela teoria da causalidade eficiente, o mencionado autor refere que os criadores desta teoria não conseguiram a definição, em bases sólidas, de que modo seria aferida a causalidade de forma concreta.

Foi então que, em meio a todas essas teorias e críticas, surgiu a teoria da causalidade direta ou imediata, consagrando como causa jurídica apenas, e tão somente, o evento que se vinculasse direta e imediatamente ao dano, sem a interferência de outra condição sucessiva.

Esta foi, inclusive, a teoria adotada tanto pelo Código Civil de 1916, quanto pelo codex atual, que em seu art. 403 cristaliza que as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e lucros cessantes que dela derivem direta e imediatamente.

Muito embora sejam nítidas as bases seguras em que se funda a teoria adotada pelo legislador pátrio, com o tempo essa teoria passou a ser considerada excessivamente restritiva, sobretudo nos casos em que a causa indireta do prejuízo associava-se à causa direta de modo muito intenso, conforme salientado por Anderson Schreiber (2009, p.60).

Por esse motivo, o autor adverte que apesar de ter o Código Civil utilizado acepção que excluísse o dano indireto ou remoto de sua literalidade, em algumas situações tal abordagem gerava enorme injustiça, o que ensejou, por consequencia, o desenvolvimento da subteoria da necessidade causal, “que entendesse as expressões dano direto e imediato de forma substancial, como reveladores de um liame de necessidade – e não de simples proximidade – entre causa e efeito” (SCHREIBER, 2009, p.60). Essa admissibilidade pode ser constata facilmente na pacífica indenizabilidade, pelos Tribunais dos chamados danos reflexos, ou por ricochete.

Assim, Anderson Schreiber (2009, p.60) afirma que “haverá o dever de reparar, quando o evento danoso for efeito necessário de determinada causa, o que, segundo o autor, possibilita identificar danos indiretos, passíveis de ressarcimento, desde que seja consequencia necessária da conduta tomada como causa”.

Além da hipótese acima mencionada, em que se admite a reparação dos danos reflexos ou indiretos representando, claramente, uma mitigação da teoria do nexo de causalidade, adotado pelo Código Civil de 2002, é preciso, também, e agora de modo mais sutil, que a expressão “efeito direto e imediato” não seja compreendida em seu sentido literal. Isso porque, a adoção de letra tão estreita inviabilizaria, sem dúvida, conforme assinalado por Cristiano Chaves de Farias (2008, p.69) a proteção avançada da pessoa humana[3].

Dentro desse contexto, é que Fernando Noronha (2003, p.600) assinala ser adepto da teoria da causalidade adequada[4], que “procura resolver o problema do nexo causal em termos de razoabilidade e previsibilidade do dano, considerando o curso natural das coisas”. Segundo essa teoria, uma condição deve ser considerada causa de um dano quando, segundo o curso natural das coisas, poderia produzi-lo; as demais causas, por sua vez, seriam circunstâncias não causais.

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Para o autor, a adoção da teoria exige que seja feita uma prognose retrospectiva, pois, somente quando o indivíduo colocar-se em uma situação anterior ao momento da prática do injusto, e perceber que era normalmente previsível que o dano viesse a ocorrer, mesmo que estatisticamente não fosse muito provável, a causalidade será adequada, podendo esta ser originária de uma formulação negativa ou positiva.

No tocante à formulação positiva, Fernando Noronha (2003, p.601) aduz que “um fato deve ser considerado causa adequada de um evento posterior, quando favoreça a produção deste”, diferentemente do que ocorre na formulação negativa, onde a “causa adequada é a que, segundo as regras da experiência, não é indiferente ao surgir do dano”, e que, por esse motivo, a causalidade só fica excluída quando se trate de consequencia indiferente ao fato, estranhas ou extraordinárias.

Todavia, Fernando Noronha (2003, p.603) assevera que, apesar de preferir a formulação negativa[5], esta só tem utilidade caso a formulação positiva não consiga revelar a existência do nexo causal.

Ao analisar a formulação negativa na prática, Fernando Noronha (2003, p. 605) cita como exemplo o fato de o médico não ter solicitado biópsia para verificar a natureza de um tumor, que depois se apurou ser cancerígeno e que, por isso, causou a morte da paciente. Ressalta, também, a hipótese de um médico, que por erro culposo de diagnóstico, aplicou um tratamento inadequado ao paciente, e este depois vem apresentar um agravamento do seu quadro clínico. Para o referido autor, em ambas as hipóteses caberá ao profissional médico, em eventual ação regressiva, provar que ao tempo da intervenção cirúrgica e que a aplicação de um tratamento inadequado seriam inúteis para reverter o quadro clínico dos pacientes.

Contudo, Fernando Noronha (2003, p.608) adverte que apesar da teoria da causalidade adequada atender melhor aos interesses e valores em jogo em matéria de responsabilidade civil, ela não pode ser entendida como uma panaceia, capaz de conduzir à solução justa de todos os casos, pois o valor da supramencionada teoria está em “delimitar o marco extremo até onde pode ir a responsabilidade do agente. Por esse motivo, é que o autor afirma que o problema da extensão dos danos não pode ser resolvido apenas em termos de causalidade, já que se deve levar em conta, também, se o dano em questão é protegido pelo ordenamento jurídico.

Em síntese, o mencionado autor aduz que é preciso que o dano seja condição sem a qual o ato praticado não teria ocorrido; que o fato atribuível ao responsável possa ser considerado causa adequada do dano verificado (de acordo com as regras da experiência a que faz referência o art. 335 do Código de Ritos), pois somente nas hipóteses em que se puder concluir que o fato favoreceu a produção do dano, ter-se-á a relação de causalidade demonstrada.

No tocante à adoção dessas teorias pelos Tribunais pátrios, Gustavo Tepedino (2001, p.9) refere que na verdade não há, por parte das cortes, um consenso quanto à adoção das teorias, e por esse motivo, afirma que “diante do panorama da causalidade na jurisprudência brasileira, é necessário que se leve em consideração não suas designações, mas sim a motivação que inspira as decisões, permeadas predominantemente pela teoria da causalidade necessária”.

Nesse diapasão, Anderson Schreiber (2009 p.65) afirma que a indefinição das teorias da causalidade tem servido, sobretudo, à garantia da reparação às vítimas dos danos, assegurando-lhes alguma compensação pelos menoscabos sofridos; e que uma consequencia inquestionável dessa situação é a de que, tanto a jurisprudência quanto a doutrina encontram-se, longe do que afirmava Altavilla, quando dizia que o nexo causal jamais seria presumido.

Justamente dentro desse cenário é que se insere, para parte da doutrina, a teoria da perda da chance. Rafael Peteffi da Silva (2009, p.50) aduz que para os adeptos a esta concepção, com as teorias tradicionais do nexo de causalidade, a reparação do dano final não seria possível, pois não se poderia qualificar, com exatidão, a conduta do agente como condição necessária para o surgimento do dano final. Por esse motivo, o autor afirma que as chances perdidas estariam, para essa doutrina, sendo utilizadas como meio de quantificar o liame causal entre a ação do agente e o dano final (perda da vantagem esperada).

Parte da doutrina considera que por estar a teoria da perda da chance imbricada à mitigação do conceito de nexo causal adotado pelo Código Civil, esta seria apenas, conforme assinalado por Leonardo Vieira Santos (2008, p.181), uma espécie de liame etiológico presumido, por ela ter sido criada para vencer a dificuldade da prova do nexo de causalidade. Os que advogam essa tese, afirmam que o principal objetivo da perte d’une chance é mitigar o nexo causal enquanto pressuposto da responsabilidade civil, visto que se sustenta a ideia segundo a qual se deve punir uma conduta culposa independentemente de se conseguir provar o efetivo liame que une a conduta e o dano experimentado (SANTOS, 2008, p.182).

Vê-se, desse modo, que tal posição sustenta-se, sobretudo, pelo fato desta doutrina considerar que a perda da chance é indissociável do dano final. Esse entendimento é também sustentado, ainda com maior fôlego, na seara médica, pois, conforme salientado por Rafael Peteffi da Silva (2009, p.65) a perda da chance seria utilizada como uma técnica para mitigar as injustiças em casos médicos, em que a vítima fosse deixada sem qualquer reparação devido à dificuldade de prova do nexo de causalidade, mesmo estando comprovada uma falha médica que guarda relação com o dano final.

Com toda vênia, tal entendimento não merece prosperar. Isso porque, a teoria da perda da chance não foi criada para mitigar o pressuposto do nexo de causalidade. Ao contrário, tal teoria vem sendo aplicada para proteção da pessoa humana, que diante dos atos lesivos praticados por outrem, se vê privado de determinada oportunidade.

Portanto, não há dúvida de que a perda da chance constitui “uma nova concepção de dano indenizável, pelo qual se admite a reparabilidade - independentemente da certeza de um resultado final – da subtração de uma oportunidade futura” (FARIAS, 2008, p.70).

Toda a confusão doutrinária pode estar justamente no fato de que na perda da chance, ao contrário do que ocorre nas demais modalidades de dano, indeniza-se a vítima “independentemente da certeza do resultado final”, conforme assinado por Cristiano Chaves de Farias no parágrafo anterior. Por esse motivo, a perda da chance deve ser vista como algo inerente não a evolução do conceito de nexo de causalidade, mas sim ao elastecimento do conceito de dano.

Isso porque, conforme salientado por Rafael Pettefi da Silva (2009, p.79), “o principal motivo que impossibilita a indenização do dano final, nos casos típicos de perda de uma chance, é a impossibilidade de provar que a conduta do réu representa uma conditio sine qua non”.

Nessa toada, Fernando Noronha (2003, p.542), também relaciona a perda da chance a elasticidade do conceito de dano e assevera que a ampliação dos danos suscetíveis de reparação reflete-se na diminuição das exigências para o reconhecimento de certos danos tem sido feito principalmente pela via do alargamento da noção de causalidade e pela crescente aceitação da reparabilidade de certos danos de natureza um tanto aleatória, como é o caso da perda da chance.

Portanto, corrobora-se, mais uma vez, o entendimento de que a ampla reparabilidade dos danos está associada tanto à flexibilização do nexo de causalidade, conforme evidenciado na análise das teorias anteriormente mencionadas, bem como com a maximização do conceito de dano, que é para o referido autor, acertadamente a posição que se relaciona com a indenização pela perda das chances.

Conforme visto no tópico anterior, “o novo paradigma solidarista, fundado na dignidade da pessoa humana, modificou o eixo da responsabilidade civil, que passou a não considerar como seu desiderato a condenação de um agente culpado, mas a reparação da vítima prejudicada” (SILVA, 2009, p.73) correspondendo ao que aspira a sociedade atual: reparação mais abrangente possível[6].

Nota-se, com isso, que cada vez mais a doutrina, e o próprio legislador, distanciam-se da velha concepção de dano, em que apenas eram indenizados os danos patrimoniais, certos e tangíveis e aproximam-se da reparabilidade de danos incertos, intangíveis ou com efeitos puramente emocionais.

Dentro desse contexto, Rafael Pettefi (2009, p.76) afirma que grande parte da doutrina assevera que a teoria da responsabilidade pela perda de uma chance não necessita de noção de nexo de causalidade alternativo para ser validada, pois, para essa corrente, seria necessário apenas uma maior abertura conceitual de dano indenizável para que a aplicação da teoria fosse viabilizada[7].

Observa-se, com isso, que para essa corrente doutrinária, diferente do posicionamento acima explicitado, considera-se a chance perdida independente do dano final (vantagem esperada), por serem elas passíveis de aferição pecuniária.

Portanto, para essa corrente doutrinária, o dano indenizado é a perda da própria oportunidade de obter-se determinada vantagem[8], que foi, comprovadamente, frustrada. O que há de incerto na teoria – e que provavelmente contribuiu para a tese anteriormente citada – é a possibilidade da situação vantajosa vir a concretizar-se, pois, devido à interrupção ocasionada pelo agente lesador, ela se tornou, conforme assinalado por Noronha (2003, p.665), mais ou menos aleatória[9].

Segundo o mencionado autor, apesar de aleatória, a possibilidade de obter o benefício em expectativa, é um dano real, que é constituído pela própria chance perdida, isto é, pela possibilidade que se dissipou, de obter no futuro a vantagem, ou de evitar o prejuízo que veio a acontecer (NORONHA, 2003, p.666).

Ademais, deve-se ressaltar que para essa corrente, não há que se falar em mitigação do conceito de nexo causal, pois é patente a relação causal entre o fato danoso e a perda das chances. A relação de causalidade, aqui, não é analisada da conduta ao resultado final, pois não há condição necessária que interligue tais eventos. Por esse motivo, analisa-se, tão somente, se a conduta do réu constituiu condição necessária para a diminuição da probabilidade da vítima de auferir melhor condição.

Esse é, também, o posicionamento adotado por Judith Martins-Costa (2003, p.362), que, em análise sobre a admissibilidade da teoria pelo ordenamento pátrio à luz do art. 403 do Código Civil, afirma que mesmo não sendo a chance de realização do evento danoso certa, a chance perdida o é, e que por assim ser, não há óbice à aplicação, criteriosa, da teoria.

No tocante à perda da chance na seara médica, a despeito de entendimentos contrários (que consideram estar a perda da chance da seara médica submetida a outro regramento, que não ao de dano específico), coaduna-se, aqui, com o entendimento exposto por Georges Durry (1972, p.410, apud SILVA, 2009, p.99) que não consegue vislumbrar uma nítida diferenciação entre os casos de perda de uma chance na seara médica e os demais casos de aplicação da teoria, pois o fato de o processo aleatório seguir até o final, ou não, não é suficiente para distinguir tais categorias[10].

Nesse mesmo sentido, porém adotando classificação diversa, Fernando Noronha (2003, p.671) assevera que, independentemente da modalidade adotada, seja a perda da chance de obter uma vantagem futura (perda da chance clássica) ou perda da chance de evitar um prejuízo efetivamente ocorrido, a perda da chance, quando consequencia adotada do fato antijurídico que estiver em questão, apresenta-se sempre como um dano específico, pois são distintos dos benefícios que eram esperáveis.

Em análise sobre as modalidades acima referidas, o referido autor afirma que embora em ambas o ponto inicial seja a existência de uma chance real que foi frustrada, na primeira, o fato jurídico interrompe um processo que estava em curso, tornando impossível afirmar que, sem a interrupção, o resultado em expectativa aconteceria necessariamente, diferentemente do que ocorre na segunda modalidade, onde apesar de existir um processo causal em curso, este chegou ao seu final, tendo efetivamente causado o dano receado. Na segunda modalidade, a questão que se coloca é saber se tal dano (presente) poderia e deveria ter sido evitado, isto é, se o indigitado responsável poderia e deveria ter interrompido o processo danoso em curso.

Por ser na segunda modalidade (perda da chance de evitar um prejuízo efetivamente ocorrido) a que melhor se adapta aos casos de responsabilidade médica, serão traçadas, com maior exatidão, as características a que Fernando Noronha faz referência.

Segundo o referido autor, para que se fale em perda da chance de evitar um prejuízo efetivamente ocorrido, é imprescindível que o processo, o qual levou a vítima a sofrer o dano já estivesse em curso e que houvesse a possibilidade dele ser interrompido por uma certa atuação, que fosse exigível do indigitado responsável, mesmo que não seja possível garantir que com tal atuação o dano teria sido evitado.

Em ambas as modalidades o resultado almejado possui natureza aleatória. Todavia, na perda da chance de evitar um prejuízo efetivamente ocorrido, “o dano surge exatamente porque o processo em curso não foi interrompido, quando poderia tê-lo sido” (NORONHA, 2003, p.676), pois caso tivesse sido haveria a possibilidade de o dano não se verificar, a despeito de ser impossível, devido às circunstâncias, se isso realmente teria acontecido.

Para Noronha (2003, p.676) a pergunta que se mostra decisiva na análise da perda da chance nesta modalidade é: “O dano poderia ter sido evitado caso tivessem sido adotadas certas providências que interromperiam o processo?” Caso seja positiva a resposta, haverá sim o dever de indenizar pela retirada da chance.

A título ilustrativo, o referido autor traz como exemplo de um paciente que se encontra definitivamente inválido ou morto, devido ao erro de diagnóstico cometido pelo médico. Para o autor, mesmo sem esse erro poderia ser que o paciente acabasse inválido ou morresse, mas, com o erro, as chances de que isso ocorresse ficaram maiores.

Por ser, nestes casos, impossível estabelecer um nexo de causalidade, com precisão, entre a conduta do lesador e o dano final, alarga-se o conceito de dano, para que estas chances sejam passíveis de indenização, afastando, assim, a regra do tudo ou nada[11]. Por isso, o alargamento do conceito de dano parece ser o enquadramento mais adequado à teoria.

Contudo, de nada adianta analisar o enquadramento sem que se atente para os requisitos que tornam viável a reparação dos danos causados pela perda da chance. É o que se verá adiante.

A certeza do dano ocasionado pela perda da chance

Tomando-se como base a corrente doutrinária que associa a perda da chance a um dano específico, mesmo nos casos relacionados à responsabilidade médica, é preciso atentar-se para o fato de que a perda da chance somente será indenizada quando esta consistir em um dano certo[12].

Segundo Fernando Noronha (2003, p.666) dano certo são aqueles que sejam consequencia adequada de um determinado fato antijurídico, como também sejam objeto de prova suficiente para demonstrar a sua ocorrência, se danos presentes (danos que já aconteceram, mas que poderiam ter sido evitados); ou a verossimilhança de que virão a ocorrer, se danos futuros (danos relativos a eventos que não aconteceram e que só poderiam vir a verificar-se no futuro).

Para o referido autor, tal classificação é importante porque é preciso distinguir os danos certos daqueles que são eventuais, distinção que será feita mais adiante, em tópico que analisará os requisitos indispensáveis para a indenização pela perda da chance.

Nesse mesmo passo, Judith Martins-Costa (2003, p.362) afirma que o art. 403 afasta o dano meramente hipotético e não as hipóteses em que a vítima demonstre a existência do nexo causal entre a ação lesiva praticada pelo lesante e o dano sofrido (perda da probabilidade séria e real), pois nestes casos configurados estarão os pressupostos do dever de indenizar.

Infere-se, com isso, que toda vez que o dano for consequencia adequada de um determinado ato injustamente praticado e que, também, após a análise de sua probabilidade, seja considerado objeto de prova suficiente para demonstrar a sua ocorrência, ele será considerado um dano certo, e, portanto, indenizável; circunstância esta que pode ser perfeitamente aplicável a perda de uma chance.

Partindo-se dessa premissa, de que é possível indenizar a perda da chance diante da certeza do dano ocasionado, é preciso examinar se houve, ou não, restrição a aplicação dessa teoria pelo legislador pátrio.

A ampliação da ressarcibilidade: a cláusula geral do art. 186 do CC/02

O surgimento da responsabilidade civil objetiva e da flexibilização do nexo causal implicaram, sem dúvida, uma ampliação considerável do número de pretensões ressarcitórias que passaram a ser julgadas procedentes pelo Poder Judiciário. É que muitas demandas, apesar de nitidamente lesivas, não eram julgadas favoravelmente pelo simples argumento de que não apresentavam, com clareza, os pressupostos ensejadores da responsabilidade civil, o que deixava, por outro lado, a vítima sem qualquer forma de compensação.

Contudo, com todas as mudanças trazidas pelo pós-positivismo e pela ampliação do acesso à justiça, visualizadas no Capítulo 1 do presente trabalho, é possível assegurar que o núcleo da responsabilidade civil deixou de ser a culpa do lesador e passou a ser o dano, “apelidado” por Anderson Schreiber (2009, p.82) de ratio da reparação.

Nesse diapasão, o Código Civil brasileiro, construído com forte influência francesa e italiana, consagrou em seu art. 186, assim como nos países citados, uma verdadeira cláusula geral da responsabilidade civil. É que o mencionado artigo dispõe que “todo aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, cometerá ato ilícito” e ficará sujeito a consequencia estabelecida no art. 927, qual seja, o dever de reparar.

Com isso, é possível concluir que o legislador do Código Civil não delimitou quais seriam as espécies de danos passíveis de reparação, apenas foi incisivo ao exigir a presença do ato ilícito em si considerado.

Diante disso, Sérgio Savi (2006, p.84) questionou qual seria, então, o motivo que obstaria a aplicação da teoria da perda da chance no ordenamento jurídico brasileiro e em resposta ao seu questionamento o autor faz referência à explicação dada por Clóvis Couto e Silva, que dizia não ser aplicável a teoria por terem os artigos. 1.537 a 1.554 do Código Civil de 1916 enumerado de forma taxativa os bens protegidos pelo ordenamento jurídico.

Sucede que os mencionados dispositivos não foram reprisados, na íntegra, pelo novo Código Civil, tendo em vista que os arts. 948 e 949, que tratam atualmente da matéria, voltam a se valer da cláusula geral, já contida no art. 186, ao dizer que “no caso de homicídio, a indenização consiste, sem excluir outras reparações” e que “o ofensor indenizará o ofendido das despesas do tratamento e dos lucros cessantes até o fim da convalescença, além de algum outro prejuízo que o ofendido prove haver sofrido”.

Vê-se, deste modo, com a simples – e ainda que perfunctória leitura sistemática dos dispositivos – que não houve, por parte do legislador, qualquer objeção no tocante à admissibilidade da perda da chance como um dano jurídico passível de indenização.

Diante de tais circunstâncias, é preciso analisar em que medida o princípio da dignidade da pessoa humana relaciona-se com o postulado da efetivação do princípio da reparação integral para que seja possível aferir de que modo eles estão relacionados à admissibilidade da teoria da perda da chance.

A dignidade da pessoa humana como postulado de efetivação do princípio da reparação integral

O princípio da reparação integral dos danos encontra-se, conforme salientado por Sérgio Savi (2006, p.86), implicitamente consagrado no art. 402 do Código Civil brasileiro. Isso porque, segundo o referido autor, o legislador estatuiu que serão indenizáveis não apenas os danos efetivamente perdidos, mas também aqueles que o lesado razoavelmente deixou de ganhar, fazendo com que a vítima retorne, sempre que for possível, ao estado em que anteriormente se encontrava[13].

Considerando que a dignidade da pessoa humana, fundamento da República consagrado no inciso III do art. 1º da Constituição Federal, tem, dentre outros objetivos, servir como vetor interpretativo das normas jurídicas, é mister que se faça – para que esta cláusula geral continue sendo considerada o núcleo axiomático do sistema normativo – uma interpretação do referido dispositivo de acordo com esses ditames.

Bem por isso é que Sérgio Savi (2006, p.88) afirma que não há como se negar a necessidade de indenização dos casos em que alguém perde uma chance ou uma oportunidade em razão do ato de outrem, pois afirmar o contrário seria o mesmo que negar aplicação aos postulados consubstanciados pelo pós-positivismo. Por esse motivo, o autor advoga a tese da necessidade de uma releitura dos institutos tradicionais de Direito Civil à luz da tábua axiológica constitucional[14].

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LÍRIO, Luana Diniz. Responsabilidade estatal pela perda de uma chance em razão do erro de diagnóstico médico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4153, 14 nov. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/33892. Acesso em: 22 dez. 2024.

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