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Responsabilidade estatal pela perda de uma chance em razão do erro de diagnóstico médico

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14/11/2014 às 11:22
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REQUISITOS NECESSÁRIOS PARA A INDENIZAÇÃO PELA PERDA DA CHANCE DE CURA

Malgrado seja a perda da chance um conceito jurídico indeterminado e de difícil definição, é possível assentar que essa teoria visa ressarcir a vítima que teve a chance de conseguir determinado benefício esvaziada pela conduta de outrem. A perda da chance é, portanto, a frustração da probabilidade, séria e real, de não vivenciar determinado acontecimento.

A expressão “perda da chance” compreende os casos em que a vítima afetada tinha, no momento da lesão, uma oportunidade séria o suficiente para considerar que o dano ocasionado por terceiro foi tão significativo a ponto de impedir que possíveis benefícios e vantagens lhe fossem somados. É como se o dano vislumbrado estivesse encoberto por um nevoeiro que impedisse a vítima de enxergar quais seriam de fato as consequencias daquele evento, caso um terceiro não tivesse nele interferido. Em outras palavras, é como se a prática do ato lesivo gerasse uma incerteza no sujeito afetado que, de forma abrupta, viu-se privado de saber se o efeito benéfico e esperado seria ou não produzido.

Como na perda da chance a probabilidade é que é consumida, e não o dano efetivamente esperado, a sua reparação nunca poderá ser valorada como se o dano tivesse de fato ocorrido, pois se trabalha, aqui, com a indenização pela perda da possibilidade e não com a perda dos benefícios que dela se originariam, pois estes são incertos, já que não mais poderão ser concretizados.

Todavia, para que o dano ocasionado pela perda da chance seja indenizável, é preciso que essa chance supere o caráter eventual ou hipotético e seja considerada uma probabilidade suficiente para adentrar ao campo da responsabilidade civil, preenchendo os seus pressupostos, ainda que de maneira flexibilizada.

Marcelo Mesa (2008, p.11), em análise sobre a temática, entende, que são cinco os requisitos necessários para fazer com que a perda da chance deixe de lado o caráter eventual e adentre ao mundo dos danos ressarcíveis: i) antijuricidade da atuação do causador do dano; ii) a legalidade do direito; iii) a relação de causalidade entre a frustração da chance e a atuação do lesador; iv) a probabilidade suficiente; v) e a possibilidade de quantificação da chance frustrada.

Ver-se-á, adiante, a análise detida dos sobreditos requisitos, diante da importância destes para o enfrentamento do problema eleito nesta monografia.

A antijuridicidade da atuação do causador do dano

O primeiro dos requisitos trazidos por Marcelo Mesa (2008, p.11) é a antijuricidade da atuação do causador do dano. Para o autor é imprescindível que a atuação do ofensor seja ilegítima, pois caso contrário não será devido àquele que foi danificado.

Trazendo a análise desse primeiro requisito para um caso prático, é possível imaginar a situação em que um médico, subordinado a entidade estatal, ao deparar-se com um sério problema de circulação ocasionado por uma gangrena em seu paciente, que se encontra em coma induzido devido ao acidente sofrido, e em risco de morte, decida que o melhor a ser feito, naquele caso, seria amputar-lhe a perna para evitar que danos maiores fossem causados. Não há dúvida de que uma eventual demanda ressarcitória pela perda da chance de andar, proposta pelo paciente contra o nosocômio, não mereceria qualquer reparação, pois o médico agira, inquestionavelmente, de forma legítima.

Conforme salientado na abordagem feita no presente trabalho, para que o Estado seja responsabilizado pela perda da chance em razão de eventuais erros de diagnósticos praticados por seus agentes, é necessário que os atos praticados por estes sejam antijurídicos; caso contrário não há que se falar em responsabilidade estatal.

A legitimidade do direito

O segundo requisito a que Marcelo Mesa (2008, p.11) faz alusão diz respeito à legitimidade do direito. Isso porque mesmo que de fato tenha sido retirada do sujeito afetado a probabilidade de auferir determinado benefício, se este for considerado antijurídico não há que se admitir uma eventual pretensão ressarcitória cujo objeto tenha esta natureza.

Um exemplo – aparentemente esdrúxulo – seria o caso de um médico que malgrado tivesse, de fato, conduzido seu paciente à morte por ter se equivocado ao definir o seu diagnóstico, fosse surpreendido com uma ação, proposta pelos descendentes da vítima, em que se pleiteasse indenização pela perda da chance de auferir proventos com o tráfico de substâncias entorpecentes. Isso porque, mesmo sendo a causa de pedir (erro de diagnóstico) legítima, o pedido (perda da chance de auferir benefícios com o tráfico de substâncias entorpecentes) é tido como antijurídico pelo ordenamento.

Relação de causalidade adequada entre a frustração da chance e a atuação do lesador

O terceiro requisito mencionado por Marcelo Mesa (2008, p.11) é o da necessidade da existência de um nexo causal unindo a frustração da chance e a atuação do causador do dano. Nota-se, com isso, que o nexo de causalidade existe, mas não nos moldes idealizados pela teoria clássica da responsabilidade civil. É que aqui, o nexo de causalidade não une o dano ao resultado final, mas sim à perda da chance de auferir determinado benefício, tendo em vista que aquele se tornou imprevisível a partir da conduta danosa.

Por esse motivo é que Marcelo Mesa (2008, p.13) assevera que a ausência de relação de causalidade entre a perda da oportunidade e a atuação do demandado impedirá que a chance seja ressarcida. Com base nisso é que o referido autor afirma que a perda da chance pressupõe um enfoque particular da causalidade.

Ao aplicar tal entendimento à perda da chance de cura, Marcelo Mesa (2008, p.12) refere que quando a probabilidade é considerada como suficiente pelos peritos, e o juiz deduz das provas periciais produzidas a existência de presunções, não há dúvida de que estas servirão para demonstrar a existência de um nexo de causalidade. Todavia adverte que nas hipóteses em que a dúvida subsista, e quando não for possível ao magistrado fazer o juízo de probabilidade, o ônus de provar a existência do nexo de causalidade é da vítima.

Marcelo Mesa (2008, p.12) adverte, também, que mesmo considerando ser pacífico o entendimento de que a prova do nexo de causalidade na perda da chance de cura é ainda mais complexo do que em outras hipóteses, a exigência da relação de causalidade entre a chance perdida e a atuação do sujeito é de exigência indiscutível.

O autor dá como exemplo um caso julgado pela Corte de Cassação Francesa em que uma mulher imputou ao cirurgião a má-formação de seu filho – que apresentava atrofia em ambas as orelhas e surdez total – por ter realizado, no início da gravidez, um exame de radiografia. Todavia, a Corte se posicionou no sentido de não admitir a pretensão da demandante por considerar que a síndrome apresentada pela criança era originária de uma predisposição genética e que a eventual contribuição da irradiação seria insignificante e não seria, por consequencia, indenizável.

Nota-se, desse modo, que para ser o dano pela perda da chance inidenizável, é preciso que a conduta do agente estatal seja consequencia adequada de um determinado fato antijurídico, como também sejam objeto de prova suficiente para demonstrar a sua ocorrência.

A probabilidade suficiente

Outro requisito mencionado pelo autor é o da necessidade de pesar os aspectos favoráveis e os aspectos contrários ao prejudicado, pois somente após essa avaliação é que será possível admitir, ou não, a aplicação da teoria da perda da chance ao caso em análise. Para o autor, somente quando o saldo dessa equação restar positivo, demonstrando, estatisticamente, que seguindo o curso normal e ordinário das coisas, era provável que se obtivesse a vantagem, será possível ressarcir o sujeito afetado pelos danos causados.

Quer-se dizer, com isso, que possibilidades vagas e meramente abstratas não serão passíveis de indenização. É o que se verá mais adiante, em tópico específico.

A possibilidade de quantificação da chance frustrada

O último dos requisitos trazidos por Marcelo Mesa (2008, p.12) é o da possibilidade de quantificação da chance frustrada. Segundo o autor, a ausência de avaliação deste item pode transformar a concessão de um ressarcimento em uma “caixa de Pandora”. Por esse motivo é que o referido doutrinador assevera que esse requisito deve ser aferido com grano salis, ou, em outras palavras, com prudência ímpar, procurando não convalidar por esta via, abusos manifestos, nem tentativas mascaradas de lucro fácil.


CRITÉRIOS PARA APLICAÇÃO DA TEORIA DA PERDA DA CHANCE

Antes de adentrar na análise da temática, é de suma importância esclarecer a distinção existente entre “chance” e “risco”.

Conforme salientado por Rafael Pettefi da Silva (2009, p.115), a perda da chance tem sido admitida como mais uma hipótese de ressarcimento, pois o uso de estimativas e probabilidades conferem um certo grau de precisão suficiente para que os Tribunais a aceitem como uma espécie típica de dano, ora como utilização pouco ortodoxa do nexo de causalidade.

Situação distinta a que Rafael Pettefi (2009, p.118) se refere é a da responsabilidade pela criação de riscos. É que nessa hipótese, apesar de ter a vítima sido comprometida com a conduta do réu, não é possível mensurar, com precisão, os resultados práticos desse comportamento gravoso, pois “dependente de situações desconhecidas”.

Segundo o referido autor, o ponto nevrálgico da distinção se situa no resultado. É que na perda da chance, a vítima encontra-se em um processo aleatório, que ao final pode gerar uma vantagem. Entretanto, no momento da apreciação da demanda, o processo pelo qual a vítima passou já chegou ao final reservando-se-lhe um resultado negativo. Situação completamente oposta acontece com a responsabilidade pela perda de risco, pois apesar de a vítima encontrar-se em um processo aleatório, é “impossível saber se em momento futuro a perda definitiva da vantagem esperada pela vítima será efetivamente observada”[15].

O exemplo fornecido pelo autor, bastante convincente, noticia uma situação em que determinado sujeito encontrava-se constantemente exposto a substâncias tóxicas, aumentando o risco de contrair determinadas doenças. Segundo o autor, mesmo existindo comprovação científica, de que a existência de determinadas doenças possa estar associada à exposição a estas substâncias, a vantagem esperada pela vítima, que é a da saúde perfeita, ainda pode ser perfeitamente alcançada, diferentemente da perda da chance, onde a doença já se manifestou de forma definitiva.

Apesar de não ser este o objeto do presente trabalho, é importante que se diga que a reparação civil por cada um destes institutos é distinta, pois na perda da chance de cura, o dano que poderia advir da falha do profissional médico já foi concretizado, apesar de não ser possível afirmar, com certeza, se a falha do profissional foi, de fato, determinante para o acontecimento do resultado lesivo. Situação completamente distinta ocorreria caso o arbitramento de uma indenização fosse feito pelo simples fato de ter a conduta médica lesiva, criado um risco ao seu paciente, ou seja, por ser a situação criada perigosa.

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A despeito de existirem entendimentos doutrinários e jurisprudenciais no direito comparado admitindo a reparação pela teoria do risco criado, a abordagem da questão não será objeto do presente trabalho. O tema foi trazido à baila apenas, e tão somente, para que fossem estabelecidas as diferenças que separam os institutos.

Passa-se, agora, à importante leitura da seriedade das chances, para que não sejam reparados danos meramente hipotéticos, enriquecendo a vítima sem causa justificável.

Meras ilusões perdidas não são reparáveis: a necessidade de ser a chance real e séria

Esta talvez seja a questão de maior importância na análise da teoria da perda da chance. A indefinição do conceito e as falhas encontradas na jurisprudência demonstram a necessidade de se distinguir meras ilusões de chances reais e sérias. Isso porque, uma má interpretação desta teoria poderá descambar em uma extensão ad infinitum do conceito de dano indenizável.

Conforme já salientado anteriormente, a indenização da perda da chance, além de outros requisitos já analisados, depende da perda da possibilidade de adquirir um benefício provável e esperado. A privação dessa oportunidade faz surgir um dano, ainda que este seja de difícil avaliação. Daí a importância de sopesar as circunstâncias favoráveis e desfavoráveis à ocorrência do evento danoso, pois somente por meio desse método é que se chegará à conclusão: se a perda da chance deve ou não deve ser indenizada e, em caso positivo, em que proporção.

É o que defende Marcelo Mesa (2008, p.16) ao afirmar que somente quando a perda da chance alcança certo grau de probabilidade é que será possível indenizá-la. Por isso, o autor defende que a decisão se baseie em um prognóstico da situação: “em condições normais de não haver existido interferência no acontecimento danoso quais eram as probabilidades de chance do sujeito afetado?”. Ou seja, exclui-se hipoteticamente o acontecimento danoso para que seja possível saber se o dano, naquelas circunstâncias iria, ou não, acontecer.

Para o autor, a não realização desse prognóstico prospectivo-retrospectivo faz com que muitos juízes apreciem a perda da chance de forma “esotérica”. A importância dessa avaliação é justamente a de afastar as probabilidades vagas ou meramente hipotéticas, que não poderão ser objeto de ressarcimento.

Em sentido similar, Rafael Pettefi da Silva (2009, p.138) afirma que a teoria da perda da chance encontra o seu limite no caráter de certeza que deve apresentar o dano reparável. Para o referido autor, para que seja a demanda digna de procedência, a chance perdida deve representar muito mais do que uma simples esperança subjetiva.

Quer-se dizer, com isso, que a teoria da perda da chance não pode ser utilizada como uma carta em branco para ressarcir a vítima em situações que a sua pretensão não passe de uma mera ilusão. Caso contrário, além de se estar sendo deferida uma pretensão de reparação sem causa (enriquecimento ilícito), também haverá, por vias reflexas, uma desmoralização do instituto.

Por isso é que Marcelo Mesa (2008, p.18) adverte que o magistrado deverá ter bastante cuidado ao analisar uma pretensão lastreada nesta teoria para que não confunda “chance perdida” com “chance imaginária”.

Deve-se avaliar, portanto, se a chance alegada era de provável ou improvável realização. Se o dano for provável ou certo, deverá ser a chance indenizada. Entretanto, caso seja ele incerto ou improvável, a frustração não poderá ser indenizada, pois desprovida de razoabilidade. Faz-se mister assinalar, no entanto, que esse julgamento dependerá, invariavelmente, de prova pericial.

Assentadas essas primeiras premissas relacionadas à admissibilidade da perda da chance, imperioso se faz o exame da teoria da perda da chance aplicada aos casos em que haja erro de diagnóstico médico de responsabilidade estatal, tema central do presente trabalho.

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LÍRIO, Luana Diniz. Responsabilidade estatal pela perda de uma chance em razão do erro de diagnóstico médico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4153, 14 nov. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/33892. Acesso em: 18 abr. 2024.

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