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Responsabilidade estatal pela perda de uma chance em razão do erro de diagnóstico médico

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14/11/2014 às 11:22
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A RESPONSABILIDADE ESTATAL PELA PERDA DA CHANCE EM RAZÃO DO ERRO DE DIAGNÓSTICO MÉDICO

A perda da chance de cura pode, segundo assinalado por Miguel Kfouri Neto (2002, p.105) aparecer na área da responsabilidade médica em diversas situações práticas. O referido autor faz menção à aplicação da teoria nas hipóteses pelo erro do diagnóstico médico, pela ausência de exames pré-operatórios, pela ausência de anestesista qualificado e pela falta de cuidados médicos.

Há que se salientar, no entanto, que este trabalho tem como objeto apenas a primeira das hipóteses, qual seja, a que relaciona a perda da chance ao erro de diagnóstico médico.

Conforme observado no Capítulo 3 deste trabalho, o diagnóstico médico não é um ato isolado, mas sim um conjunto de atos sequenciados que desencadeiam em uma determinada conclusão diagnóstica. Todavia, mesmo que sejam cumpridas, com afinco, as etapas necessárias a este desencadeamento, é possível que a conclusão a que se chegue não seja aquela que realmente acomete o paciente-vítima de determinada moléstia.

Outrossim, deve-se salientar, também, que mesmo após o profissional médico ter apontado uma conclusão diagnóstica, é possível que ao dar início ao tratamento sugerido, ele descubra que se tratava de outra enfermidade.

O erro dessa conclusão diagnóstica pode ocorrer de duas maneiras, que são completamente opostas. Em uma delas, a conclusão a que se chega, mesmo que equivocada, é fruto da dedicação exigida pelo profissional médico que, diante das inúmeras hipóteses diagnosticas, priorizou, de forma fundamentada, a que lhe parecia, com segurança, estar mais bem amoldada às características apresentadas em determinado quadro clínico. A outra hipótese, no entanto, está relacionada a uma conclusão diagnóstica equivocada não somente no ato final, mas também, e, sobretudo, no passo a passo traçado pelo profissional, que com a sua conduta incorreta acabou por viciar toda a cadeia sequencial coerente exigida do médico.

Não há dúvida de que esses dois tipos de profissionais merecem tratamentos diversos e isso não poderia ser diferente no tocante à teoria da perda da chance de cura.

Por isso, a afirmação a que Kfouri Neto (2002, p.105) faz referência, lastreado no posicionamento da jurisprudência, deve ser analisada com muito cuidado. Segundo o autor, “a jurisprudência cível tem considerado que o erro de diagnóstico, que determina tratamento inadequado, acarreta a perda de uma chance de cura ou sobrevivência”. O cuidado deve ser no seguinte sentido: não é possível afirmar, categoricamente, que o tratamento indicado erroneamente ensejará sempre a reparação pela perda de uma chance. Por essa razão, é que o melhor seria dizer que o diagnóstico equivocado pode levar à reparação pela perda da chance de cura. Deve-se frisar, portanto, que os institutos, apesar de terem nítida relação entre si, nem sempre aparecerão acompanhados um do outro.

Caso contrário, seria legítima a crítica mencionada por Kfouri Neto (2002, p.104) que em análise sobre a aplicação da teoria da perda da chance de cura, afirma que esta estaria transformando a responsabilidade do profissional médico em uma obrigação de resultado. De fato, a crítica é extremamente coerente e oportuna, pois conforme salientado no Capítulo 2 desta monografia, não há dúvida de que a obrigação do médico é, na grande maioria dos casos, de meios e a teoria da perda de uma chance não tem o condão, e nem objetiva, afastar essa regra geral.

Não obstante ser pacífica esta ideia de que a obrigação profissional do médico é de meios, faz-se mister asseverar que a obrigação é de meios somente no tocante ao resultado, pois no que diz respeito à conduta, haverá sim obrigação de resultado. Ou seja, o resultado da atuação do profissional (conclusão diagnóstica) é que é incerto, mas os meios que foram utilizados para almejar tal conclusão são, por seu turno, certos e devem ser manejados corretamente.

Contudo, faz-se mister salientar que esse raciocínio, de levar em consideração a conduta desempenhada pelo profissional médico, deverá ser levado em consideração apenas no tocante à ação regressiva e nas hipóteses em que o erro de diagnóstico derive de comportamento omissivo, pois, no caso da responsabilização estatal comissiva, basta que seja demonstrada a existência da chance real e séria, o nexo de causalidade e a conduta do agente estatal.

Portanto, caberá ao magistrado e aos peritos analisar, no momento de uma eventual ação regressiva ou da hipótese de responsabilidade omissiva do Estado, o modo como agiu o profissional, se diligentemente ou não, se houve por parte do médico interesse em buscar todos os meios ao seu alcance que fossem pertinentes para a análise diagnóstica, se a sua atuação esteve, ou não, em algum momento, eivada de culpa, etc. Enfim, deve-se analisar o histórico traçado pelo profissional para que se avalie se a causa que justificou o erro de diagnóstico deve, ou não, ser repudiada. Quer-se dizer, com isso, que se exige do profissional médico uma atitude ativa e coerente com as hipóteses diagnósticas por ele formuladas, durante todo o tratamento, para que ele não seja responsabilizado em ação regressiva, ou contribua para a viabilidade de ação de responsabilidade estatal por omissão, por ter retirado as chances de cura de seu paciente.

Por outro lado, uma atuação passiva e não diligente levará, quando comissiva, a situações em que o Estado terá que indenizar a vítima do erro de diagnóstico praticado por seu agente, pela perda da chance de cura, mesmo não sendo absolutamente certo que o dano final causado à esta tenha tido origem direta no erro de diagnóstico, pois a perda da chance existirá como uma conseqüência lógica da chamada falha diagnóstica; em razão da responsabilidade objetiva do ente estatal.

Nesse sentido, exemplo esclarecedor é fornecido por Miguel Kfouri Neto (2002, p.126) ao se referir a uma situação em que o médico, mesmo diante de sintomas claros de câncer, não solicita exames complementares e interpreta erroneamente e com negligência os laudos que lhe são apresentados. Não há dúvida de que se a conclusão a que o médico chegou, por seu comportamento negligente, causou danos ao seu paciente, será perfeitamente exigível a indenização pela perda da chance de cura do Estado, mesmo que no limite das chances perdidas; sendo provável o êxito em futura ação regressiva.

Em sendo assim, o ideia assinalada por Grácia Cristina (2009, p.136) de que a obrigação do médico no quadro do diagnóstico é de meios, pois “se os meios técnicos e intelectuais que são colocados em ação habitualmente por um profissional competente e diligente não tiverem sido acionados, a sua responsabilidade poderá ser comprometida” vale, tão somente, nos casos em que a conduta adotada pelo agente estatal for comissiva ou na ação regressiva; já que nas demais hipóteses o Estado responderá estando presentes apenas o fato administrativo, a perda da chance real e séria e o nexo causal.

Por isso, a importância de trazer a balia o entendimento esposado pela referida doutrinadora (2009, p.149) ao ressaltar que nem toda falha do profissional médico deflagra uma obrigação de reparar o dano, pois pensar de modo contrário tornaria impraticável o exercício da medicina ou, nas palavras de Kfouri Neto (2002, p.104), “estar-se-ia a condenar o profissional médico a exercer a sua profissão em clima de insegurança e aumentar os riscos profissionais”, leitura esta feita no capítulo 2 do presente trabalho.

Ademais, não é possível olvidar que as decisões judiciais somente deverão aplicar a teoria da perda da chance quando se verificar a perda definitiva da vantagem esperada, pois, caso contrário, estar-se-ia, mais uma vez, adentrando ao campo do enriquecimento ilícito, já que é pacífico o entendimento de que o réu deverá arcar apenas com as consequencias dos danos a que der causa.

Computação das predisposições e condições preexistentes do paciente

Há que se levar em consideração, também, que a situação orgânica preexistente no paciente adquire grande importância em matéria de responsabilidade médica. Isso porque, da mesma forma que as predisposições podem não ter nenhuma incidência sobre a causalidade, sendo a conduta do profissional a única fonte do prejuízo sofrido pela vítima, é possível, também, que estas mesmas predisposições contribuam de forma total, ou parcial, para eximir a responsabilidade do profissional e, consequentemente, do Estado.

Por esse motivo, nas hipóteses em que as predisposições do paciente tiverem concorrido de alguma forma para o acontecimento do evento lesivo, é preciso invocar a máxima contida no art. 945 do Código Civil, que limita a indenização pelos danos e prejuízos que tenham sido efetivamente causados pelo agente agressor, para que o valor a ser arbitrado, a título de indenização, deva ser proporcional ao prejuízo efetivamente sofrido pela vítima; e não seja feito além do prejuízo efetivamente causado.

Justamente por isso é que Chaia e Prévôt (2007, p.96) defendem que o ofensor responde pelas consequencias das lesões que causa e não pelo estado pré-existente da vítima, que deverá ser descontado ao liquidar-se o dano.

Nesse mesmo passo, Marcelo Mesa (2008, p.36) reconhece a importância de se levar em consideração o cômputo das chamadas incapacidades pré-existentes, pois caso contrário estar-se-ia colocando a vítima em melhor situação do que a que ele se encontrava, antes da prática do ato profissional questionado, implicando, por consequencia, um enriquecimento sem causa do paciente ou de seus familiares.

A título ilustrativo, o referido autor dá como exemplo o caso de um paciente que antes de se submeter a determinado procedimento cirúrgico já apresentava incapacidade parcial e permanente entre 50 e 55%. Neste caso, uma eventual demanda de responsabilidade poderia apenas discutir os outros 50%, já que o restante existiu independentemente da atuação do profissional.

A importância da análise destas circunstâncias está, também, no fato de evitarem-se situações injustas que indenizem não o dano efetivamente causado, mas sim o dano pré-existente.

Essa circunstância é também aplicada, por óbvio, na indenização pela perda da chance, pois no momento de quantificar a “chance” perdida é preciso ter-se em mente quais eram, de fato, as chances reais e sérias do paciente, o que implicará a análise das circunstâncias pré-existentes que acompanhavam o paciente em momento anterior à intervenção médica.

Nesse sentido, Marcelo Mesa (2008, p.41) faz referência a um julgado argentino em que se decidiu que a morte causada por um fator externo ao paciente, que teria comprometido a saúde da vítima, não poderia ter a indenização arbitrada de maneira igual, como se a morte tivesse sido causada por uma atuação negligente, pois na perda da chance deve-se ressarcir a chance na medida do saldo exitoso.

Mas, para isso, é preciso atentar para a diferença feita por Chaia e Prévôt (2007, p.109) entre situações patológicas delineadas com anterioridade ao efeito lesivo das simples tendências ou predisposições que todos são portadores, pois segundo os autores, na segunda hipótese não há verdadeira contribuição suscetível de minorar a indenização. Para distinguir uma hipótese da outra, os autores referem que as condições preexistentes têm, como características típicas, a anterioridade ao ato médico imperito e que a independência em relação ao acidente terapêutico que atua como seu agravante ou acelerador.

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Nesse mesmo passo, Fernando Noronha aduz que a causa do agravamento do paciente somente ensejará a reparação da perda da chance quando:

o agravamento do estado do paciente for devido a erro médico (ou seja, se com um tratamento adequado a doença seria curada, ou pelo menos o paciente experimentaria melhoras) o profissional terá de responder, ainda que a responsabilidade em regra não seja pelo total do dano sofrido pelo paciente: é que nestes casos haverá que se descontar a parcela de dano que seja atribuível à própria doença preexistente, conforme a regra feral aplicável nas hipóteses de concurso entre fato do responsável e caso fortuito ou de força maior, que é uma das situações em que temos a chamada causalidade concorrente. (NORONHA, 2003, p.681).

Ambas as condições devem ser levadas em consideração, pois tanto o erro médico quanto a evolução natural da doença reúnem as condições indispensáveis para poderem ser considerados causas adequadas do dano sofrido pelo paciente. Ademais, o fato de ser impossível provar qual dos fatores são possíveis causas do dano, não pode ensejar aplicação da teoria do “tudo ou nada”, tendo em vista que tal aplicação seria demasiadamente injusta por deixar a vítima sem reparação quando se sabe que o dano foi originado por um dos dois fatores.

A solução proposta por Noronha (2003, p.683), para estes casos, é a de que caberá ao indigitado, no caso o Estado, o ônus da prova capaz de destruir a presunção de causação que milita contra ele, devendo este provar que apesar da condicionalidade, não houve adequação entre tal fato e o dano. Caso contrário, será ele responsável por indenizar a vítima com base no grau de probabilidade em que o seu fato contribuiu para o dano.

Por isso, somente uma análise pormenorizada e inter-relacionada de ambos os componentes é que fará com que o intérprete, à luz das provas periciais produzidas, defina se a culpa médica contribuiu como condição do dano, ou não.

A quantificação dos danos originários da perda da chance de cura

Após assentado o critério que deve distinguir as duas possíveis hipóteses de erros de diagnósticos e o importante cômputo das predisposições e condições existentes no paciente, ver-se-á, com muito mais coerência, a análise da quantificação dos danos originários da perda da chance de cura.

Todavia, antes de adentrar à temática, faz-se mister reiterar a advertência feita por Rafael Pettefi (2009, p.142) exatamente no sentido de que a teoria da perda da chance somente é utilizada nas hipóteses em que a vítima, devido às circunstâncias em que se encontra, está impossibilitada de provar o nexo causal da forma como ele foi concebido originariamente (conduta do agente e a perda definitiva da vantagem), mas tem a possibilidade de provar a existência de nexo causal entre a conduta do agente e as chances perdidas; pois caso seja possível provar o nexo com o dano final, não será hipótese de indenização pela perda da chance.

Partindo dessa primeira premissa, já discutida anteriormente, de que o nexo a que a teoria da perda da chance, apesar de existente, não é o mesmo vislumbrado na teoria clássica da responsabilidade civil médica (pois une a conduta à perda da chance) é possível assinalar os aspectos que contribuirão para a construção da teoria da quantificação dos danos no tocante à perda da chance de cura.

A chance devida deverá ser sempre inferior ao valor da vantagem esperada

O primeiro aspecto diz respeito à impossibilidade de reparação integral do dano originário da perda da chance de cura. Isso porque, conforme já visualizado, nesta teoria, indeniza-se não o dano final (ou vantagem esperada), mas sim a perda da oportunidade de obter determinado resultado.

Por esse motivo, não seria razoável indenizar a vítima pelo valor integral do dano como se ela tivesse certeza daquele resultado, apesar de ter sido essa opção adotada em alguns julgados proferidos pelos Tribunais pátrios.

Todavia, tal circunstância não representa, conforme salientado por Rafael Pettefi da Silva (2009, p.143) uma violação ao princípio da reparação integral, pois a indenização concedida a título de perda da chance repara de forma integral as chances perdidas, que é um dano específico e independente em relação ao dano final. É possível afirmar, com isso, que da mesma forma que ocorre com a teoria clássica onde há observância do princípio mencionado, há, também, sua observância nessa teoria, já que, igualmente, o dano é indenizado, malgrado esteja ele representado pela própria chance perdida.

O autor dá como exemplo o caso em que a falta de uma terapêutica correta por parte do médico retirou as chances de um determinado paciente e para restaurar (ou tentar restaurar) a vítima ao seu status quo ante, considerou-se que como 37,5% das pessoas que sofreram do mesmo problema sobreviveriam, indenizou-se a vítima em 37,5% do valor que seria concedido se o médico fosse considerado plenamente responsável pela morte da vítima (SILVA, 2009, p.144).

Nesse sentido, Marcelo Mesa (2008, p.39) assevera que quando o dano consiste na perda da chance de sobrevivência não pode o Tribunal condenar o profissional a pagar uma quantia em indenização equivalente à que seria devida se a morte do enfermo tivesse sido provocada pela sua imperícia. Isso porque, não foi o médico o responsável por criar a enfermidade do paciente, uma vez que atuou somente no sentido de não contribuir para tratar de detê-la, e por isso, o limite de sua responsabilidade será dado pela perda da chance de cura e não pelo desenvolvimento definitivo da enfermidade, uma vez que este último não tem de forma direta, relação causal de forma adequada ligando à atuação ou omissão do médico. 

A valiosa contribuição da probabilidade estatística e da perícia médica

Marcelo Mesa (2008, p.40), com apoio nos ensinamentos ministrados por Chabas, afirma que quando o prejuízo é causado pela perda da chance, é normal que para se calcular o prejuízo o juiz busque saber primeiro quanto valeria a vida daquele determinado indivíduo, e depois aplique a este percentual o coeficiente das chances.

Devido à dificuldade em realizar este exercício é que Marcelo Mesa (2008, p.40) defende a importância da utilização das estatísticas, além de examinar, em concreto, a situação do paciente o que fará com que o método nunca esteja isento de um certo arbítrio[16].

Segundo o autor, o que se deve fazer é basear-se nas perícias médicas agregadas à causa, avaliar de acordo com as estatísticas e comprovações periciais qual era a evolução mais provável do quadro médico do paciente de suprimir o feito ou omissão imputada ao demandado.

Isso significa que nas hipóteses em que seja constatada a atuação indevida do profissional nas condutas que lhe fizeram chegar à conclusão diagnóstica, deve-se analisar a existência de predisposições, tanto do paciente, quanto de fatores externos. Depois deverá ser avaliada quais as chances tidas por aquele paciente antes da lesão praticada e, ao final, de acordo com as estatísticas e perícia médica, definir o valor a ser arbitrado a título de indenização pela perda da chance decorrente do erro do diagnóstico médico.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LÍRIO, Luana Diniz. Responsabilidade estatal pela perda de uma chance em razão do erro de diagnóstico médico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4153, 14 nov. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/33892. Acesso em: 16 abr. 2024.

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