O presente artigo pretende analisar, sucintamente, os reflexos das decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Direito Brasileiro e o entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre sua eficácia.
A partir das decisões proferidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, o presente trabalho objetiva analisar como o Estado Brasileiro vem se posicionando sobre tais decisões, bem como os argumentos utilizados para eventual descumprimento das mesmas.
Vale observar que já existem algumas decisões da Corte Interamericana em que o Brasil foi condenado, algumas delas foram consideradas cumpridas e outras ainda estão sendo acompanhadas, até que o Estado demonstre seu efetivo cumprimento.
Apesar disso, há grande controvérsia sobre a efetividade de tais decisões em razão de sua interpretação à luz da legislação interna, existindo decisões no âmbito do próprio Supremo Tribunal Federal que aumentam ainda mais as dúvidas sobre a matéria.
É incontroversa a evolução de mecanismos para proteção dos direitos humanos, seja no âmbito interno, seja no âmbito externo, principalmente após a Segunda Guerra Mundial. Tendo em conta tal fato, bem como o surgimento de normatização internacional sobre a questão, se faz necessário avaliar de que forma essas regras devem ser interpretadas e aplicadas no sistema jurídico brasileiro.
Da mesma maneira, é imprescindível identificar quais são os limites, se é que eles existem, das decisões das Cortes Internacionais sobre direitos humanos. Essas decisões devem ser cumpridas sem ressalvas pelo Estado Brasileiro ou há algum limite a ser obedecido em razão da ordem constitucional vigente?
No início do ano de 2010, a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF n° 153, movida pela Ordem dos Advogados do Brasil, no sentido de que a Lei de Anistia foi recepcionada pela Constituição da República Federativa do Brasil, trouxe à baila uma interpretação que vai de encontro ao entendimento de alguns países vizinhos, como Chile, Argentina e Uruguai, e, principalmente, à posição da Corte Interamericana de Direitos Humanos em relação à possibilidade de responsabilização penal para crimes comuns cometidos durante período vivido sob regime de exceção.
A decisão em comento foi objeto de severas críticas por parte de alguns juristas brasileiros e acabou aumentando ainda mais a discussão sobre o tema. Como ainda não transitou em julgado, há uma imensa expectativa acerca da palavra final do Tribunal Constitucional brasileiro sobre a matéria.
No mesmo ano de 2010, mais precisamente em 24 de novembro, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, julgando o caso “Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia) vs. Brasil” consolidou entendimento, já adotado em outros casos, no sentido de que anistias e institutos similares não podem ser utilizados como óbice para investigar a punir os responsáveis por violações graves aos direitos humanos.
Naquela decisão, a Corte declarou de forma peremptória que:
As disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil.1
Tem-se, portanto, uma decisão da Corte Internacional de Direitos Humanos que é absolutamente antagônica à decisão do Supremo Tribunal Federal, Supremo que recentemente, pelas palavras de seu decano, asseverou a necessidade do Brasil acatar as decisões daquela Corte Internacional.
A decisão acima mencionada refere-se ao julgamento acerca do cabimento do recurso de embargos infringentes em ação penal originária, AP n° 470. No voto de desempate, proferido pelo Ministro Celso de Mello, discorreu-se sobre a posição a ser adotada pelo Brasil em relação às decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, senão vejamos:
Não custa relembrar que o Brasil, apoiando-se em soberana deliberação, submeteu-se à jurisdição contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o que significa – considerando o formal reconhecimento da obrigatoriedade de observância e respeito da competência da Corte (Decreto n° 4.463/2002) – que o Estado Brasileiro comprometeu-se, por efeito de sua vontade político-jurídica, “ a cumprir a decisão da Corte em todo caso” de que é parte (Pacto de São José da Costa Rica, Artigo 68). “Pacta sut servanda”...
Com efeito, o Brasil, no final do segundo mandato do Presidente Fernando Henrique Cardoso (Decreto n° 4.463, de 08/11/2002), reconheceu como obrigatórias a jurisdição e a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, “em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação desta Convenção” (Pacto de São José da Costa Rica, Artigo 62), o que legitima o exercício, por esse importante organismo judiciário de âmbito regional, do controle de convencionalidade, vale dizer, da adequação e observância, por parte dos Estados nacionais que voluntariamente se submeteram, como o Brasil, à jurisdição contenciosa da Corte Interamericana, dos princípios, direitos e garantias fundamentais assegurados e proclamados, no contexto do sistema interamericano, pela Convenção Americana de Direitos Humanos.
Após citar doutrina, prossegue o nobre ministro:
Nem se diga que a soberania do Estado Brasileiro seria oponível à autoridade das sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos, quando proferidas no exercício de sua jurisdição contenciosa.
A questão central, neste tema, considerada a limitação da soberania dos Estados (com evidente afastamento das concepções de JEAN BODIN), notadamente em matéria de Direitos Humanos, e a voluntária adesão do Brasil a esses importantíssimos estatutos internacionais de proteção regional e global aos direitos básicos da pessoa humana, consiste em manter fidelidade aos compromissos que o Estado Brasileiro assumiu na ordem internacional, eis que continua a prevalecer, ainda, o clássico dogma – reafirmado pelo Artigo 26 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, hoje incorporada ao ordenamento interno de nosso País (Decreto n° 7.030/2009) –, segundo o qual “pacta sunt servanda”, vale dizer, “Todo tratado em vigor obriga as partes e deve ser cumprido por elas de boa fé”, sendo-lhes inoponíveis, consoante diretriz fundada no Artigo 27 dessa mesma Convenção de Viena, as disposições do direito interno do Estado nacional, que não poderá justificar, com base em tais regras domésticas, o inadimplemento de suas obrigações convencionais, sob pena de cometer grave ilícito internacional.2
É de se destacar que a posição adotada pelo Ministro Celso de Mello não é pacífica sequer no âmbito daquela Suprema Corte, muito ao contrário, há grandes juristas sustentando que as decisões da Corte Interamericana sobre Direitos Humanos e os próprios dispositivos da Convenção Americana de Direitos Humanos poderiam ser afastados com base em disposições do ordenamento interno.
Não seria outra a razão da modificação trazida pela Emenda Constitucional número 45/2004, que alterou o art. 5°, parágrafo 3°, da Constituição da República Federativa do Brasil, passando a dispor que: Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.
Essa nova disposição veio com o intuito de acabar com a controvérsia sobre a força normativa dos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos no âmbito interno, já que havia enorme discussão se seriam incorporadas com status constitucional ou de lei ordinária. Ocorre que a modificação realizada por meio de emenda não acabou com a controvérsia, ao contrário, é objeto de várias críticas por parte de grandes juristas.
Ou seja, apesar de incorporado ao direito interno há mais de dez anos, ainda persiste um grande dissenso sobre a aplicação dos dispositivos da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e sobre a força das decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Da mesma forma, já existem algumas questões submetidas à Corte Interamericana de Direitos Humanos em que as medidas adotadas pelo Estado Brasileiro foram consideradas satisfatórias, em alguns casos com inequívoca evolução na seara perquirida, seja por meio de evolução legislativa, seja por meio de políticas públicas adotadas.
Assim, apesar da divergência acima citada, não há como negar a contribuição da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos na evolução da promoção dos direitos humanos e até mesmo no desenvolvimento da democracia no Brasil.
A importância do tema salta aos olhos, bem como a necessidade de formulação de propostas para sua solução.
Portanto, se faz necessário um aprofundamento dos fundamentos legais e doutrinários para a aplicação das decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Brasil, analisando-se criticamente eventuais impedimentos em razão da legislação interna.
Paralelamente, é imprescindível analisar o entendimento que vem sendo adotado pelos demais países que também aderiram à Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
Tendo em vista o crescente número de questões que estão sendo levadas a julgamento perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, bem como o inegável reposicionamento do Brasil na ordem mundial, onde vem sendo considerado um país de destaque, mesmo um líder, a solução da questão acerca do cumprimento dos julgados daquela Corte se coloca na ordem do dia.
Não é mais possível que o Brasil deixe de cumprir as obrigações por ele próprio assumidas, nem, tampouco, que exista tamanha divergência, inclusive perante o Poder Judiciário, acerca da força executiva das sentenças proferidas pela Corte internacional.
Da mesma maneira, é preciso que o Brasil analise e compreenda como tais questões estão sendo desenvolvidas nos países vizinhos, como Chile e Argentina, por exemplo, para que possa evoluir ainda mais no regime democrático de direito.
Parece fora de dúvidas que o Brasil evoluiu bastante na adoção de mecanismos para proteção dos direitos humanos.
A própria consolidação da democracia, com sucessivas eleições livres, redução das desigualdades e combate à pobreza, transparência nas contas públicas e maior controle sobre o aparato estatal, seja por meio de imprensa livre, seja pelo fortalecimento de órgão de controle, contribuíram sobremaneira para a proteção dos direitos humanos.
Alguns casos específicos que foram julgados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos produziram evidentes resultados positivos, seja em relação ao destaque que se confere ao tema, o que acaba gerando uma mobilização da sociedade e, consequentemente, uma efetiva mudança em relação a ele, seja por medidas concretas adotadas por iniciativas do próprio Estado.
Em relação ao caso específico sobre a responsabilização dos agentes do Estado que cometeram violações aos direitos humanos durante o estado de exceção da ditadura, há inequívocos avanços, como, por exemplo, a ampla divulgação de documentos outrora declarados secretos, medidas adotadas pelo Ministério Público para responsabilização civil e administrativa daqueles que perpetraram violações aos direitos humanos, a formação de grupos de trabalho, como o Grupo de Trabalho do Araguaia e a Comissão da Verdade, com objetivos variados, dentre os quais a localização de desaparecidos e a busca para elucidação de mortes supostamente acidentais.
Nesta mesma linha de raciocínio vem evoluindo a ideia de identificação de colaboradores e financiadores, inclusive pessoas jurídicas, dos crimes contra os direitos humanos cometidos por agentes do Estado na época do estado de exceção.
Ocorre que a possibilidade de persecução penal em relação aos crimes cometidos por agentes do Estado naquela época se mostra imprescindível, já que a Carta Constitucional consagra o princípio da dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Brasileiro.
Assim, não há como admitir que um Estado que tem como um de seus fundamentos basilares a proteção à dignidade da pessoa humana possa permitir que crimes como o de tortura, por exemplo, possam restar impunes.
A alegação, utilizada pela maioria do Supremo Tribunal Federal que julgou improcedente a ACP 153, de que a Corte Interamericana de Direitos Humanos não teria jurisdição para conhecer dos fatos ocorridos durante a ditadura não se sustenta. Tal se afirma na medida em que estes crimes, inequívocas lesões a direitos fundamentais, se protraem no tempo, e, portanto, se consumaram após o reconhecimento da jurisdição da Corte pelo Brasil.
Há julgados da Corte em casos absolutamente similares em que se entendeu desta maneira, aliás, a própria decisão do Supremo Tribunal Federal pode ser considerada contrária à Convenção Americana sobre Direitos Humanos e gerar, por consequência, responsabilização internacional do Brasil.
Portanto, se mostra extremamente necessário que o Estado Brasileiro, principalmente sua Corte Constitucional, reveja sua posição em relação às decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, conforme reconheceu o próprio decano da Corte recentemente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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SARMENTO, Daniel; SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos Fundamentais no Supremo Tribunal Federal: Balanço e Crítica. Rio de Janeiro. Editora Lumen Juris.
Notas
1 Ver Corte IDH. “Caso Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia) vs. Brasil”. Sentença de 24 de novembro de 2010. Série C, N. 219, p. 43-46).
2 https://s.conjur.com.br/dl/ap-470-voto-infringentes-celos-mello.pdf.