RESUMO:Com a reforma previdenciária, no tocante ao Regime Geral de Previdência Social, encetada pela Emenda Constitucional nº 20 de 1998, o sistema previdenciário tornou-se essencialmente contributivo. O requisito tempo de serviço deixou de ser exigido para concessão de aposentadorias. Com isso, a carência, a qual se combinava com o tempo de serviço para assegurar a viabilidade financeira do sistema, perdeu importância, deixando formalmente de ser exigida como requisito para as aposentadorias por tempo de contribuição e por idade, desde 2002, com a Medida Provisória nº 83 de 12 de dezembro de 2002. Todavia, doutrinadores de Direito Previdenciário ainda trazem em suas obras tal exigência, com base em dispositivo tacitamente revogado da Lei nº 8.213 de 1991. Contudo, na via administrativa, para concessão de aposentadoria por idade e por tempo de contribuição, apenas se leva em consideração o tempo de contribuição, abandonando a exigência de carência. A exigência de carência só existe nos manuais de Direito Administrativo, denotando como é rasa a doutrina dessa província do direito.
Palavras-chaves: Requisitos para aposentadoria por tempo de contribuição e por idade. Inexigência de carência. Contributividade apenas.
1 INTRODUÇÃO
É de todos sabido que a estrutura demográfica da população está em profunda mudança, porquanto cresce vertiginosamente o segmento de idosos em face das conquistas da ciência, as quais dia a dia são mais popularizadas, o que demanda mais recursos para pagamento de aposentadorias. Na verdade, já houve tal mudança demográfica. Por força disso, tornou-se imprescindível alteração no texto constitucional a fim de tornar o sistema previdenciário mais contributivo e menos assistencialista. Por essas circunstâncias, foi o papel da Emenda Constitucional nº 20 de 1998, a qual fixou o requisito contributividade nas aposentadorias por tempo de contribuição e por idade, deixando de lado o requisito tempo de serviço. Nas primeiras, fixou a necessidade de 35 ou 30 anos de contribuição, conforme o sexo; já na por idade, fixou a necessidade de quinze anos de contribuição. Importante ressaltar que foi abandonado tempo de serviço, de sorte que trecho da Lei nº 8.213/1991, consistente em maior parte dos artigos 52 a 56, restou incompatível com a nova realidade constitucional a partir de 16 de dezembro de 1998.
Como a carência servia para conferir sustentabilidade financeira ao sistema previdenciário, que era baseado em tempo de serviço, ela (a carência) ficou sem sentido diante dessa mudança paradigmática, haja vista que o novo paradigma é puramente contributivo. Nos capítulos seguintes, mostrar-se-á a incompatibilidade da exigência de carência desde a reforma dada pela Emenda Constitucional nº 20. De logo, adverte-se que não se deve confundir carência com tempo de contribuição.
2 MUDANÇA DE PARADIGMA PREVIDENCIÁRIO COM A EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 20
Até a reforma previdenciária dada pela mencionada emenda constitucional, o que informava a previdência social, como principal requisito para concessão de aposentadoria, era o tempo de serviço. Do ponto de vista ético-moral, havia razão nessa escolha, porquanto o que importava era o tempo de trabalho que o indivíduo havia despendido para a construção da sociedade. Assim, tal requisito era exigido tanto no regime geral de previdência como no regime próprio. Esse comando informativo condicional podia ser visto em vários dispositivos constitucionais e legais.
Com efeito, retornando um pouco no tempo, a Lei nº 3.807 de 26 de agosto de 1960, conhecida como Lei Orgânica da Previdência Social, revogada pelo atual estatuto do regime geral de previdência social, continha várias disposições cuidando de tempo de serviço. De tal modo, havia os benefícios de aposentadoria por tempo de serviço integral e proporcional, previstos em seu artigo 32, cujo requisito principal era exatamente tempo de serviço. O artigo 31 dessa mesma lei previa a aposentadoria especial, exigindo tempo de serviço, “que, para esse efeito, forem considerados penosos, insalubres ou perigosos, por Decreto do Poder Executivo”. Convém ressaltar a disposição do parágrafo 3º do artigo 8º, com inclusão feita pela Lei nº 5.610 de 1970, o qual dizia que “Para os efeitos de aposentadoria com base no tempo de serviço, serão computados, como se fossem de serviço efetivo, os meses que corresponderem às contribuições pagas na forma deste artigo”.
Contudo, tempo de serviço, apesar de ser um balizador ético elogiável como critério para concessão de benefício previdenciário, não serve como sustentáculo econômico ao sistema. A carência como requisito secundário ou subsidiário não era suficiente para garantir a incolumidade financeira da previdência, de sorte que vêm os primeiros avisos sobre o “rombo” (despesas maiores que a arrecadação) na previdência social. Por fim, esse rombo começa a tornar-se realidade. Chega-se a um ponto que necessário se faz a mudança de paradigma: deixa-se como requisito principal o tempo de serviço para eleger o tempo de contribuição. Na verdade, tudo leva a crer, pretendia-se substituir o tempo de serviço pelo tempo de contribuição, implicando dizer que a carência ainda poderia subsistir como critério secundário.
3 DA DEFINIÇÃO DE CARÊNCIA
O conceito de carência é dado positivamente pela Lei nº 8.213 de 1991, por seu artigo 24, o qual diz “Período de carência é o número mínimo de contribuições mensais indispensáveis para que o beneficiário faça jus ao benefício, consideradas a partir do transcurso do primeiro dia dos meses de suas competências”. De tal modo que carência era entendida como a exigência de certo número de contribuições a fim de que se pudesse deferir determinado benefício previdenciário. Tal conceito legal pode ser confundido com tempo de contribuição. No entanto, o importante aqui é ressaltar o papel da carência que era contrabalancear a exigência de tempo de contribuição, pois o sistema previdenciário, anterior a 1998, possuía como viga mestra para a concessão das prestações previdenciária o tempo de serviço, e a carência era a exigência recursal para garantir a sustentabilidade financeira do sistema.
O conceito legal não traduzia nem traduz bem a dimensão desse instituto dentro da própria disciplina legal. A rigor, a carência, com sua existência condicionada à continuidade de contribuições e outras circunstâncias enumeradas pelo legislador, não cabia dentro do conceito dado positivamente. Portanto, o conceito legal de carência é insuficiente para traduzir as nuanças previstas na própria Lei nº 8.213/91.
Com efeito, a carência não é somente o “número mínimo de contribuições mensais” indispensáveis para a concessão de benefício, consideradas a partir do transcurso do primeiro dia dos meses de suas competências. É mais que isso. Explica-se.
Por exemplo, a carência para o auxílio-doença previdenciário não decorrente de acidente de qualquer natureza ou de morbidezes enumeradas no regulamento é de doze meses. Todavia, ainda que alguém tenha cem contribuições, pode ter seu benefício negado, apesar de ser segurado. A rigor, essa pessoa pode ter perdido a qualidade de segurado. Com a perda da qualidade de segurado, perdem-se também todas as contribuições para cômputo de carência. De modo que, se essa pessoa tenha readquirido a qualidade de segurado e tenha ficado incapacitada para o labor, ter-se-á de verificar a carência a partir de seu novo reingresso no sistema previdenciário, em consonância com o parágrafo único do artigo 24 da Lei nº 8.213/91, o qual assevera que
Havendo perda da qualidade de segurado, as contribuições anteriores a essa data só serão computadas para efeito de carência depois que o segurado contar, a partir da nova filiação à Previdência Social, com, no mínimo, 1/3 (um terço) do número de contribuições exigidas para o cumprimento da carência definida para o benefício a ser requerido.
Logo, a noção de carência está intimamente imbricada com a qualidade de segurado. Só há carência quando existe a qualidade de segurado. Perdendo a qualidade de segurado, a pessoa não tem contribuições para obtenção de benefício previdenciário, exceto na condição de dependente. Era assim, até a reforma constitucional mencionada.
Diante do exposto, é possível conceituar carência como o número mínimo de contribuições, vertidas ou recuperadas em consonância com a lei, levando em consideração a aquisição, manutenção ou reaquisição da qualidade de segurado do peticionário, para obtenção de benefício previdenciário do regime geral de previdência social.
Assim, o conceito legal não condiz com a própria dimensão do instituto traçada na Lei nº 8.213/91.
4 DA DEFINIÇÃO DE TEMPO DE CONTRIBUIÇÃO
Tempo de contribuição é o que efetivamente segurado teria recolhido ao fisco previdenciário. Coloca-se a frase no condicional, visto que várias contribuições são presumidas, como as dos segurados empregado, do empregado doméstico, do trabalhador avulso e do contribuinte individual. Esse último somente em algumas hipóteses. Não se mencionarão as hipóteses de presunção de recolhimento por fugir ao objetivo deste artigo.
5 DOS BENEFÍCIOS DO RGPS QUE EXIGEM CARÊNCIA PARA SEU DEFERIMENTO CONFORME O REGULAMENTO DO RGPS
A Lei nº 8.213/91 enumera, em seu artigo 24, as prestações previdenciárias que necessitam de cumprir carência, a saber: auxílio-doença e aposentadoria por invalidez: 12 (doze) contribuições mensais; aposentadoria por idade, aposentadoria por tempo de serviço e aposentadoria especial: 180 contribuições mensais; e salário-maternidade para as seguradas contribuinte individual e facultativa: dez contribuições mensais.
Já o Regulamento do RGPS, baixado pelo decreto nº 3.048 de 6 de maio de 1999, fixa, em seu artigo 29, os seguintes prazos de carência: doze contribuições mensais, nos casos de auxílio-doença e aposentadoria por invalidez; e cento e oitenta contribuições mensais, nos casos de aposentadoria por idade, tempo de contribuição e especial. Também fixa dez contribuições mensais, no caso de salário-maternidade para as seguradas contribuinte individual, especial e facultativa.
De logo, verificam-se diferenças entre a redação do regulamento e da lei regulamentada. A lei fala em aposentadoria por tempo de serviço, visto que foi elaborada antes da reforma de 1998, isto é, a redação do artigo 24 da Lei nº 8.213 ainda se encontra conforme o paradigma vencido. Já o regulamento foi atualizado e tem redação em conformidade com a nova realidade constitucional, por isso que fala em aposentadoria por tempo de contribuição. O regulamento previdenciário, como tem sido comum, excede e afronta a lei regulamentada e exige carência para a segurada especial para percepção de salário-maternidade. Na verdade, não é exigida carência para que a segurada especial tenha deferido o benefício de salário-maternidade, mas tempo de trabalho rural ou de pesca em doze meses, podendo esse período ser descontínuo. Exigem-se esses doze meses anteriormente ao do início do benefício. Deve ser ressaltado que o regulamento desrespeita a lei e reduz esse tempo para dez meses.
6 DA INEXIGÊNCIA DE CARÊNCIA PARA OS BENEFÍCIOS DE APOSENTADORIA DO RGPS, EXCETO A POR INVALIDEZ
Pois bem, eis acima as exigências de período de carência previstas no regulamento do RGPS. Sucede que tal previsão está ultrapassada. Com efeito, desde 2002 que legalmente não é mais exigida carência para os benefícios de aposentadoria, exceto para a por invalidez. A rigor, a Medida Provisória nº 83 de 12 de dezembro de 2002 inovou o ordenamento previdenciário do RGPS, ao asseverar o seguinte:
Art. 3º A perda da qualidade de segurado não será considerada para a concessão das aposentadorias por tempo de contribuição e especial.
Parágrafo único. Na hipótese de aposentadoria por idade, a perda da qualidade de segurado não será considerada para a concessão desse benefício, desde que o segurado conte com, no mínimo, duzentas e quarenta contribuições mensais.
Mantendo a tradição canhestra, o legislador previdenciário fez grande arrodeio linguístico para dizer que não haveria mais exigência de carência para as aposentadorias por idade e por tempo de contribuição lato sensu[1]. Com efeito, bastava dizer que não mais é exigida carência para as aposentadorias, exceto para a por invalidez. Contudo, o legislador faz exercício de verborragia para dizer algo singelo. Realmente, a extinção da exigência de carência por essa norma pode ser aferida por sua exposição de motivos. Com efeito, o Poder Executivo ao elaborar a referida medida provisória asseverou, no que concerne ao preceptivo em análise, o seguinte:
21. No art. 3º propõe-se a eliminação da possibilidade de perda da qualidade de segurado na concessão de aposentadorias por tempo de contribuição, por idade e especiais. (…) No entanto, pelas regras atuais, deixando o segurado de verter contribuições para a Previdência Social, seja por motivo de desemprego ou outro qualquer, depois de um certo tempo, normalmente de entre 12 e 24 meses, independentemente do número de contribuições que tenha vertido ao sistema, perde ele a qualidade de segurado e, por conseguinte, o direito aos benefícios previdenciários.
22. Havendo perda da qualidade de segurado, as contribuições anteriores à perda só são computadas para efeito de carência depois que o segurado contar, a partir da nova filiação, com, no mínimo, um terço do número de contribuições exigidas para o benefício a ser requerido, ou seja, no caso de aposentadoria por tempo de contribuição, por idade ou especial, sessenta contribuições mensais.
23. Tomemos, por exemplo, um trabalhador que tenha perdido o emprego quando faltavam apenas dois anos para fazer jus à aposentadoria por tempo de contribuição e permanecido sem contribuição até perder a qualidade de segurado. Pelas regras atuais, só faria jus à aposentadoria por tempo de contribuição, se contribuísse por, pelo menos, mais cinco anos.
26. Nesse sentido é que se propõe que a perda da qualidade de segurado não seja considerada para as aposentadorias por tempo de contribuição e especial. É uma medida que irá reparar uma injustiça praticada contra o segurado da Previdência Social, principalmente o de baixa renda, que, na maioria das vezes, ao perder seu emprego, não tem condições de contribuir como facultativo e acaba perdendo a qualidade de segurado. A extensão da medida para a aposentadoria por idade deve estar atrelada a um período maior de contribuição, de forma a, de um lado, obter-se um maior equilíbrio entre benefício e contribuição e, de outro, a minimizar os efeitos da cessação da contribuição do segurado após cumprida a carência. Nesse sentido, propõe-se não ser considerada a perda da qualidade de segurado para a aposentadoria por idade na hipótese de o segurado ter vertido ao sistema contribuições durante vinte anos pelo menos, independentemente da época em que foram realizadas as contribuições.
De sorte que o legislador adotou apenas tempo de contribuição como requisito para concessão de aposentadoria por tempo de contribuição lato sensu combinado com o requisito etário para a por idade.
Na verdade, o exponente, em seu arrazoado transcrito acima, diz com muitas palavras o que poderia dizer em poucas, isto é, o que importa é o tempo de contribuição.
Causa espécie os manuais de direito previdenciário continuarem repetindo que tais benefícios dependem de carência, quando o próprio ordenamento jurídico positivo não mais a prevê. Também é desavisado o Presidente da República que pôs no regulamento tal exigência que afronta a lei. Todavia, na prática, a interpretação do referido dispositivo permite a dispensa de carência. E é o que acontece nas agências do INSS e nas decisões judiciais: perquirem-se apenas as contribuições vertidas ou presumidamente vertidas, deixando de se verificar se tais contribuições podem ou não ser contadas para efeito de carência. No entanto, seria importante esse esclarecimento no regulamento a fim de conferir mais racionalidade e precisão terminológica às regras do RGPS.
7 DA INEXIGÊNCIA DE CARÊNCIA PARA OS BENEFÍCIOS DE APOSENTADORIA DO RGPS, EXCETO A POR INVALIDEZ, COM OS REQUISITOS MODIFICADOS PELA LEI COMPLEMENTAR Nº 142 DE 8 DE MAIO DE 2013
A Lei Complementar nº 142 de 2013 cumpriu o papel previsto no parágrafo primeiro do artigo 201 da Constituição da República, adotando “requisitos e critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria aos beneficiários do regime geral de previdência social” que sejam pessoas com deficiência. Assim, essa lei atenua as exigências impostas às pessoas comuns em virtude das dificuldades suportadas pelas pessoas com deficiência. Logo, há um referencial ético plausível para adoção de critérios e requisitos diferenciados.
Assim, esse diploma legal diminuiu as exigências, no que concerne ao tempo de contribuição e à idade. Assentaram-se as seguintes condições: para aposentadoria por tempo de contribuição: I – aos vinte e cinco anos de tempo de contribuição, se homem, e 20 (vinte) anos, se mulher, no caso de segurado com deficiência grave; II – aos vinte e nove anos de tempo de contribuição, se homem, e 24 vinte e quatro anos, se mulher, no caso de segurado com deficiência moderada; e III – aos trinta e três anos de tempo de contribuição, se homem, e 28 vinte e oito anos, se mulher, no caso de segurado com deficiência leve. Já para a aposentadoria por idade reduziram-se cinco anos no requisito erário, de modo que a pessoa com deficiência aposenta-se aos sessenta anos de idade, se homem, e aos cinquenta e cinco anos de idade, se mulher, independentemente do grau de deficiência, desde que cumprido tempo mínimo de contribuição de 15 (quinze) anos e comprovada a existência de deficiência durante igual período.
Pois bem, a lei é claríssima em exigir somente tempo de contribuição para a aposentadoria por tempo de contribuição e porta clareza solar para dizer que na aposentadoria por idade exigem-se apenas o tempo de contribuição e a idade, além é claro de que se demonstre o próprio estado de deficiência da pessoa.
8 DA ILEGALIDADE DO DECRETO Nº 8.145 DE 3 DE DEZEMBRO DE 2013
Se se veem tropeços na regulamentação de outros benefícios previdenciários, no tocante à Lei Complementar nº 142 de 2013, há explícita inépcia, visto que o Decreto nº 8.145 de 2013 vai ao encontro da própria lei regulamentada e de tudo que foi construído legalmente após a reforma da previdência de 1998.
Pois bem, esse decreto exigiu carência para a concessão de aposentadorias para o segurado com deficiência, seja por tempo de contribuição, seja por idade. Com efeito, por força desse diploma regulamentador, foi acrescido o artigo 70-B ao Regulamento do RGPS, o qual tem a seguinte redação:
A aposentadoria por tempo de contribuição do segurado com deficiência, cumprida a carência, é devida ao segurado empregado, inclusive o doméstico, trabalhador avulso, contribuinte individual e facultativo… (Na redação original não há o destaque em negrito.)
Também em face do mesmo diploma, foi acrescido ao mesmo regulamento o artigo 70-C, que diz “A aposentadoria por idade da pessoa com deficiência, cumprida a carência, é devida ao segurado aos sessenta anos de idade, se homem, e cinquenta e cinco anos de idade, se mulher”. (Na redação original não há o destaque em negrito.)
Com o destaque feito na redação dos dois dispositivos regulamentares acima transcritos, resta claro que o Regulamento do RGPS exige carência para a concessão das aposentadorias por tempo de contribuição e por idade ao segurado com deficiência. Tal exigência será rechaçada pelo Poder Judiciário, porquanto os dois preceptivos são ilegais e, por via transversa, inconstitucionais.
Com efeito, a Emenda Constitucional nº 20, como exposto no começo deste artigo, ao mudar o paradigma para concessão de aposentadoria de tempo de serviço para tempo de contribuição, pôs fim a utilidade do instituto da carência. De fato, mesmo antes da Medida Provisória nº 83 de 2002, a exigência de carência para aposentadorias por tempo de contribuição e por idade já se entremostrava incompatível com a nova redação constitucional inserida no parágrafo 7º do artigo 201 da Constituição. A rigor, os incisos I e II já traçavam os requisitos para esses benefícios e fixavam o tempo de contribuição tanto uma como para outra. Ora, a exigência de carência poderia fazer com que fossem necessários, por exemplo, 39 anos para a aposentadoria por tempo de contribuição e 19 anos para a aposentadoria por idade. Explica-se.
Suponha que uma pessoa do sexo masculino, com 34 anos de contribuição, perda a qualidade de segurado. Resolva, por exemplo, tirar férias indeterminadas, por conta própria, de quatro anos, sem fazer nenhum tipo de contribuição previdenciária. Evidentemente, que essa pessoa vai perder a qualidade de segurado do RGPS. Se a exigência de carência ainda fosse exigida, essa pessoa só poderia aposentar-se com 39 anos de contribuição. Seria assim, visto que o parágrafo único do artigo 24 da Lei nº 8.213/91 diz que
Havendo perda da qualidade de segurado, as contribuições anteriores a essa data só serão computadas para efeito de carência depois que o segurado contar, a partir da nova filiação à Previdência Social, com, no mínimo, 1/3 (um terço) do número de contribuições exigidas para o cumprimento da carência definida para o benefício a ser requerido.
Ora, a carência para a aposentadoria por tempo de contribuição é de 180 contribuições mensais. Isso corresponde, guardadas pequenas diferenças, a cinco anos. Assim, a exigência de carência elevaria o tempo de contribuição para 39 anos, o que negaria vigência ao dispositivo constitucional do inciso I do parágrafo 7º do artigo 201.
O mesmo raciocínio pode ser empregado para a aposentadoria por idade. Se alguém perdesse a qualidade de segurado com 14 anos e 11 meses de contribuição, vencendo todo o período de graça do artigo 15 da Lei 8.213/91, teria de contribuir com quase vinte anos de contribuição, superando em muito os quinze anos exigidos pelo dispositivo constitucional mencionado. Portanto, a exigência de carência já tinha sido afastada em 1998, por força da Emenda Constitucional nº 20.
CONCLUSÃO
Desde a Emenda Constitucional nº 20 de 15 de dezembro de 1998, quer perdeu a razão de ser o instituto da carência dentro da dogmática do direito previdenciário positivo. Isso ficou explícito com a Medida Provisória nº 83 de 12 de dezembro de 2002, posteriormente convertida na Lei nº 10.666/2003. Contudo, apenas a doutrina dominante dessa província do direito é que traz tal exigência, visto que na prática, no balcão das agências do INSS, conta-se apenas o tempo de contribuição do indivíduo.
Por outro lado, é aberrantemente ilegal a exigência de carência veiculada pelo Decreto Presidencial nº 8.145 de 3 de dezembro de 2013, o qual fixou período de carência para as aposentadorias a serem concedidas às pessoas com deficiência. Com certeza, essa exigência afrontosa à lei e à Constituição será prontamente repelida pelo Poder Judiciário.
REFERÊNCIAS
ALENCAR, Hermes Arrais. Benefícios Previdenciários: temas integrais revisados e atualizados pelo autor com obediência às leis especiais e gerais. 4. ed. São Paulo: Liv. e Ed. Universitária de Direito, 2009.
BRASIL. Lei Complementar nº 142 de 8 de maio de 2013. Regulamenta o § 1o do art. 201 da Constituição Federal, no tocante à aposentadoria da pessoa com deficiência segurada do Regime Geral de Previdência Social - RGPS. Diário Oficial da União, 9 maio. 2013. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LCP/Lcp142.htm >. Acesso em: 24 fev. 2012.
BRASIL. Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Diário Oficial da União, 27 jun. 1991. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8213cons.htm>. Acesso em: 24 set. 2014.
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DIAS, Eduardo Rocha; MACÊDO, José Leandro Monteiro de. Curso de direito previdenciário. 3. ed. São Paulo: Método, 2012.
IBRAHIM, Fábio Zambite. Curso de direito previdenciário. 18. ed., rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Impetus, 2013.
ROCHA, Daniel Machado da; BALTAZAR JUNIOR, José Paulo. Comentários à lei de benefícios da previdência social. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado: Esmafe, 2009.
Nota
[1] Reporta-se ao termo lato sensu, visto que as aposentadorias de professor e a especial são também por tempo de contribuição, além da por tempo de contribuição propriamente dita que exige 35 ou 30 anos de contribuição, dependendo do sexo da pessoa, para seu deferimento. De modo que existem três tipos de aposentadoria por tempo de contribuição.