1.INTRODUÇÃO
A relação de trabalho entre os profissionais da saúde e as entidades hospitalares, dada a sua complexidade e especificidade, é nebulosa e causa dúvidas quanto a sua natureza e consequências no universo jurídico.
Advogados, juízes, representantes do Ministério Público e operadores do Direito em geral têm dificuldades de compreender a relação existente entre médicos, equipes médicas, fornecedores de materiais e insumos, entidades hospitalares e seus respectivos colaboradores, notadamente nas dependências dos centros cirúrgicos.
Dentre as maiores dificuldades encontradas está a que diz respeito a natureza jurídica da relação de trabalho existente entre a entidade hospitalar e os assistentes contratados pelas equipes médicas.
Em especial, quanto aos instrumentadores cirúrgicos, que são aqueles profissionais que auxiliam os médicos cirurgiões nos procedimentos cirúrgicos realizados nas dependências das entidades hospitalares.
Diversos questionamentos surgem a partir desta situação, tendo em vista que durante a realização de um ato cirúrgico diversos profissionais estão presentes no centro cirúrgico, desde colaboradores das entidades hospitalares, colaboradores e/ou representantes de empresas fornecedoras de materiais, equipes médicas e colaboradores trazidos pelas equipes médicas.
Mas, dentre todos os questionamentos possíveis, pretende-se, por meio deste artigo, fomentar o debate sobre um dos mais delicados, qual seja, quanto a existência ou não de responsabilidade trabalhista das entidades hospitalares sobre os instrumentadores cirúrgicos trazidos pelas equipes médicas.
Para tanto, faz-se necessária uma breve incursão sobre os requisitos para a configuração da relação de emprego e, consequentemente, de responsabilidade trabalhista, passando-se pela natureza jurídica da relação existente entre as equipes médicas com as entidades hospitalares.
2. DA RELAÇÃO DE EMPREGO
O artigo 3º, da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), enumera as condições necessárias para a caracterização do vínculo de emprego, nos seguintes termos:
Art. 3º - Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário.
Ou seja, para a caracterização da relação de emprego, é necessária a reunião de quatro requisitos imprescindíveis – pessoalidade, subordinação hierárquica, remuneração e pessoalidade.
O primeiro deles, diz respeito à pessoalidade na prestação do serviço, que nas palavras de Plácido e Silva (1997, p. 448), em seu Vocabulário Jurídico, define-se como:
É essencial à configuração da relação de emprego que a prestação do trabalho, pela pessoa natural, tenha efeito caráter de infungibilidade no que tange ao trabalhador.
A relação jurídica pactuada – ou efeticamente cumprida – deve ser, desse modo, intuitu personae com respeito ao prestador de serviços, que não poderá, assim, se fazer substituir intermitentemente por outro trabalhador ao longo da concretização dos serviços pactuados. Verificando-se a prática de substituição intermitente –cinrcunstância que torna impessoal e fungível a figura específica do trabalhador enfocado -, descaracteriza-se a relação de emprego, por ausência de seu segundo elemento fático-jurídico.
Ou seja, caso o contratado possa se fazer substituir por outro, caracterizada não estará a relação de emprego, face o seu caráter intuitu personae.
O segundo relaciona-se a presença de subordinação hierárquica, a qual, de acordo com o mestre Valentin Carrion (2000, p. 230), diz respeito ao cumprimento das ordens determinadas pelo empregador:
A subordinação do empregado às ordens do empregador (colocando à disposição deste sua força de trabalho) de forma não eventual é a mais evidente manifestação da existência de um contrato de emprego; o poder disciplinar é-lhe inerente.
Tem de existir, portanto, ordem de comando superior a ser obedecida pelo contratado para a caracterização do vínculo de emprego.
A terceira condição, a remuneração, caracteriza-se pela contraprestação ao contratado pelos serviços prestados.
A quarta e última condição, diz respeito à habitualidade, ou seja, sobre a prestação de serviços de forma permanente do contratado ao contratante.
Maurício Godinho Delgado (2009, p. 273), traz conceito bastante esclarecedor:
Nesse sentido, para que haja relação empregatícia é necessário que o trabalho prestado tenha caráter de permanência (ainda que por um curto período determinado), não se qualificando como trabalho esporádico. A continuidade da prestação (antítese à eventualidade) é, inclusive, expressão acolhida pela Lei n. 5.859/72 (Lei do Trabalho Doméstico), que se refere a “serviços de natureza contínua.
Em síntese, segundo o artigo 3º, da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), o vínculo de emprego somente se caracteriza caso o contratado, pessoalmente e de forma direta, preste serviços sob supervisão e subordinação, de forma contínua, mediante remuneração e vinculadas a atividade-fim do contratante.
3. DA RELAÇÃO ENTRE AS EQUIPES MÉDICAS E OS HOSPITAIS
Antes de tratar da relação dos instrumentadores trazidos para os centros cirúrgicos pelas equipes médicas e das consequências jurídicas deste ato, necessário tecer comentários sobre a questão atinente a relação entre os médicos e os hospitais.
A relação dos médicos com as entidades hospitalares, em regra, é regida pela existência de um corpo clínico, cuja existência e organização é exigência legal, imposta pelo Conselho Federal de Medicina e Conselho Regional de Medicina de Santa Catarina, através das Resoluções CFM nº 1481/97, 1124/83 e Resoluções CRM/SC nº. 53/99, 73/2001 e 85/2003.
O propósito da exigência de organização do corpo clínico nos estabelecimentos de saúde visa exatamente a proteção da autonomia e liberdade dos profissionais médicos que ali atuam, salvaguardando o exercício profissional de todo e qualquer interesse e interferência por parte da administração dos hospitais. Razão pela qual, a administração das entidades hospitalares não pode ingerir nas atividades médicas, até mesmo porque, a atividade exercida pelos médicos não é sua atividade-fim.
A atividade-fim dos hospitais é o fornecimento de serviços assistenciais e de hotelaria, a fim de conferir suporte à atividade do médico, ao ato médico em si.
Neste sentido, para esclarecer a questão, importante trazer à lume o disposto na Resolução do CFM nº 1481/97:
“O Corpo Clínico é o conjunto de médicos de uma instituição com a incumbência de prestar assistência aos pacientes que a procuram, gozando de autonomia profissional, técnica, científica, política e cultural.
Os hospitais são uma universalidade de fato, formados por um conjunto de instalações, equipamentos, aparelhos e equipes – assistenciais e administrativas/financeiras -, destinada ao tratamento da saúde humana, mas que não realiza, em regra, atos médicos per se.
Quem realiza os atos médicos são os médicos e não os hospitais, de modo que eles coexistem, apesar de inexistir subordinação jurídica destes à administração daqueles.
A atuação dos médicos nos hospitais é, em regra, autônoma, eventual, sem habitualidade, sem subordinação e com ampla liberdade e autonomia técnica, sem caráter oneroso e sem pessoalidade, não havendo qualquer possibilidade de caracterização de vínculo empregatício entre ambos.
Entendimento, inclusive, que se extrai da jurisprudência da Justiça do Trabalho:
“Contrato de trabalho. Médico integrante de corpo clínico autônomo de hospital, regido unicamente por normas técnicas e operacionais auto-instituídas. Ausência de subordinação jurídica e de pessoalidade. Não é empregado de hospital o médico que nele atua por ter sido admitido no corpo clínico, sociedade civil de fato que, sob os auspícios do Conselho Regional de Medicina, opera em situação de completa autonomia técnica, utilizando-se apenas das instalações, recursos, equipamentos e serviços de apoio do nosocômio.” (TRT/SC, RO-V 4991/2000, Rel. Juiz Luiz Fernando Vaz Cabeda - Publicado no DJ/SC em 25-04-2001 , página: 258).
MÉDICO. VÍNCULO DE EMPREGO NÃO RECONHECIDO. Comprovado que o trabalho executado pelo autor era prestado com autonomia, não se reconhece a relação de emprego (TRT/SC, RO 00459-2003-040-12-00-8, Rel. Juiz Edson Mendes De Oliveira - Publicado no DJ/SC em 06-07-2005, página: 251).
Inexiste, em regra, vínculo de emprego entre os médicos integrantes do corpo clínico e as entidades hospitalares.
4. DOS INSTRUMENTADORES CIRÚRGICOS CONTRATADOS DIRETAMENTE PELAS EQUIPES MÉDICAS
Realizada uma detida análise dos requisitos necessários para a caracterização da relação de emprego, bem como esclarecida a questão sobre a ausência de vínculo de emprego entre os médicos integrantes do corpo clínico e as entidades hospitalares, questiona-se: as entidades hospitalares, quando os instrumentadores cirúrgicos são diretamente contratados pelas equipes médicas para atuar em procedimentos específicos, tem responsabilidade trabalhista sobre a contratação de referidos profissionais?
A resposta, diante do fato das entidades hospitalares não terem poder hierárquico sobre os médicos integrantes do corpo clínico que atuam em suas dependências, deve necessariamente ser analisada sob a luz da Resolução de Conselho Federal de Medicina nº 1490/98, de 24/04/1998, segundo a qual:
“Art. 1º - A composição da equipe cirúrgica é da responsabilidade direta do cirurgião titular e deve ser composta exclusivamente por profissionais de saúde qualificados.”
Ou seja, a composição da equipe cirúrgica é de responsabilidade exclusiva do médico cirurgião titular e não das entidades hospitalares.
E, assim o sendo, por certo que os hospitais não podem ser tidos como empregadores dos instrumentadores cirúrgicos contratados pelas equipes médicas, ante a ausência de requisitos indispensáveis para tanto, mais precisamente o da subordinação hierárquica, da pessoalidade na prestação de serviços e da ausência de remuneração direta.
Ora, quem contrata o instrumentador cirúrgico é o cirurgião titular, sob sua responsabilidade direta – ausência de subordinação.
Aos hospitais não cabe intervir nas decisões dos médicos do corpo clínico quanto à escolha dos profissionais que atuarão nas suas equipes, tendo em vista a preservação da sua absoluta autonomia técnica - ausência de pessoalidade.
Quem remunera o instrumentador cirúrgico é o médico cirurgião responsável pela equipe médica ou o paciente – ausência de remuneração.
Não há habitualidade, tendo em vista que o responsável pelo agendamento das cirurgias é o próprio médico cirurgião, não havendo constância e periodicidade nestes agendamentos, que variam conforme a necessidade dos pacientes e não por decisão e critério dos médicos e muito menos dos hospitais. Sendo certo que até mesmo o critério da habitualidade entre o instrumentador cirúrgico e o médico/equipe cirúrgica que o contratou é inexistente, pelos motivos já expostos.
Não se pode, portanto, imputar às entidades hospitalares a necessidade de reconhecimento de vínculo empregatício ou qualquer responsabilidade sobre eventuais débitos trabalhistas oriundos da relação entre médicos e instrumentadores cirúrgicos.
Tal assertiva deve prevalecer ainda que o instrumentador cirúrgico não tenha a sua contratação formalizada perante o médico cirurgião e/ou demais membros da equipe médica responsável pela realização dos procedimentos cirúrgicos, vez que não cabe aos hospitais interferir nesta relação, estabelecida entre os médicos cirurgiões e os membros integrantes da sua equipe cirúrgica.
Diante deste panorama, a existência de contatos (telefônicos, pessoais ou por meio de correspondências eletrônicas) entre as equipes assistenciais e/ou administrativas dos hospitais e os instrumentadores cirúrgicos integrantes das equipes médicas em nada contribui para tese que advoga pela existência de configuração da relação de trabalho, posto que estes contatos se prestam a organizar a realização dos atos cirúrgicos.
O fato dos instrumentadores cirúrgicos integrantes das equipes médicas permanecerem nas dependências dos hospitais durante todo o dia, ou mesmo todo período matutino, vespertino ou noturno não se presta a caracterização de relação de trabalho com os hospitais, posto que ou estarão participando de um mesmo procedimento cirúrgico (que pode ser bastante prolongado) ou estarão aguardando o início de outro procedimento cirúrgico (tendo em vista que muitas vezes um procedimento não é seguido do outro com a mesma equipe médica).
Também não se presta a configuração da relação de trabalho entre hospitais e instrumentadores cirúrgicos integrantes das equipes médicas o fato destes profissionais, muitas vezes, chegarem às dependências dos hospitais muito tempo antes do horário designado para o procedimento cirúrgico, com a finalidade de iniciar os preparativos para o procedimento cirúrgico, como por exemplo em relação aos materiais e instrumentais cirúrgicos, hipótese em que haverá interação destes profissionais com os empregados dos hospitais.
Por fim, importante relatar a existência de uma situação ainda mais complexa, imposta por questões de mercado, no tocante a escassez de bons profissionais instrumentadores cirúrgicos. Em muitas oportunidades os instrumentadores cirúrgicos possuem múltiplos vínculos de trabalho e/ou contratos de prestação de serviços (tácitos ou expressos), tendo em vista a ausência de rotina e constância de agendamentos cirúrgicos por parte das equipes médicas (ausência de habitualidade). Assim sendo, não são raras as situações em que o instrumentador cirúrgico possui um vínculo de trabalho com um determinado hospital e também com uma ou mais equipes médicas cirúrgicas.
Nestes casos, é importante analisar a situação com toda a cautela, sendo válidas e aplicáveis todas as assertivas expostas neste artigo para as atuações destes profissionais fora da jornada de trabalho contratada junto ao hospital, em favor de uma determinada equipe médica cirúrgica, ainda que o procedimento cirúrgico seja realizado nas dependências do hospital do qual é também empregado.
5. DAS CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por certo que, ante a ausência dos requisitos necessários para a caracterização da relação de emprego, elencados no artigo 3º, da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), bem como diante das disposições contidas na legislação dos Conselhos Federal e Regional de Medicina, nenhuma responsabilidade trabalhista deve ser imputada às entidades hospitalares em relação aos instrumentadores cirúrgicos contratados, formal ou informalmente, pelas equipes médicas cirúrgicas.
6. REFERÊNCIAS
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BRASIL. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. RESOLUÇÃO CFM nº 1.124/83. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/1983/1124_1983.htm>. Acesso em: 14.08.2014.
BRASIL. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. RESOLUÇÃO CFM nº 1.481/97. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/1997/1481_1997.htm>. Acesso em: 14.08.2014.
BRASIL. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. RESOLUÇÃO CFM nº 1490/98. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/1998/1490_1998.htm>. Acesso em: 14.08.2014.
CARRION, Valentin. Apud RODRIGUES, Douglas Alencar. Direito individual do trabalho – a relação de emprego. In: GIORDANI, Francisco Alberto da Motta Peixoto, MARTINS, Melchíades Rodrigues, VIDOTTI. Tárcio José (coord.). Fundamentos do Direito do Trabalho – Estudos em homenagem ao Ministro Milton de Moura França. São Paulo: LTr, 2000. p. 230.
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 8ª edição. São Paulo: LTr, 2009. p. 273.
PLÁCIDO E SILVA, Oscar Joseph de. Vocabulário Jurídico, atualizado por Nagib Slaibi Filho e Geraldo Magela Alves. 13ª ed., Ed. Forense, p. 448.
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