A inscrição de autarquia federal em CADIN estadual não é legitima, por duas razões: (a) imunidade tributária e; (b) impossibilidade de exigir de autarquia federal, pessoa jurídica de direito público, a garantia do juízo mediante penhora de seus bens patrimoniais para suspensão dos efeitos da inscrição em CADIN estadual.
I.a. Imunidade Tributária
Imunidades tributárias são normas constitucionais que delimitam negativamente a competência tributária, impedindo que entidades tributantes, como os Estados, onerem com exações as autarquias federais em razão de sua natureza, atividade desenvolvida, dentre outros fatores. Leis ordinárias que a desafiem são inconstitucionais; o aplicador das leis tributárias não pode afastar a imunidade mediante interpretação como nos expõe a doutrina:
“Neste sentido, temos por indisputável que desobedecer a uma regra de imunidade equivale a incidir em inconstitucionalidade. Ou, diz expressamente, Aliomar Baleeiro, “imunidades tornam inconstitucionais as leis ordinárias que as desafiam”. Nem a emenda constitucional pode anular ou restringir as situações de imunidade contempladas na Constituição. Por muito maior razão, a ação do legislador ordinário, neste campo, encontra limites insuperáveis na Constituição. Ora, se até o constituinte derivado e o legislador ordinário não podem ignorar as imunidades tributárias, por muito maior razão, não poderá fazê-lo o aplicador das leis tributárias, interpretando-as, a seu talante, de moda a costeá-las. As normas infraconstitucionais (leis, regulamentos, portarias, atos administrativos, sentenças etc.) não podem, de nenhum modo, diminuir o conjunto de normas imunizantes contidas na Constituição.” (Roque Antonio Carraza, Curso de Direito Constitucional Tributário, p. 616, 17ª ed. 2002. Malheiros: São Paulo).
Como decorrência do princípio federativo, a Constituição estabeleceu a regra da imunidade recíproca, impedindo que entes federados (pessoas políticas) tributem uns aos outros, regra extensível às suas autarquias (CF, art. 150, VI, “a”, § 2º), nestes termos:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
VI - instituir impostos sobre:
a) patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros;
§ 2º - A vedação do inciso VI, "a", é extensiva às autarquias e às fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, no que se refere ao patrimônio, à renda e aos serviços, vinculados a suas finalidades essenciais ou às delas decorrentes.
A Constituição em seu art. 21 estabelece competências aos entes federais: que vão desde do exercício do monopólio nuclear até preservação do meio ambiente, desenvolvimento cientifico, saúde publica e educação, a área de atuação da União Federal é ampla.
Este âmbito de competências constitucionais implicam em várias situações em atribuir à União Federal uma atividade material com o objetivo de satisfazer concretamente necessidades públicas sob o regime de direito público, neste sentido a doutrina:
“...é o Estado, por meio da lei, que escolhe quais as atividades que, em determinado momento, são consideradas serviços públicos; no direito brasileiro, a própria Constituição faz essa indicação nos artigos 21, incisos X, XI, XII, XV e XXIII, e 25, § 2º (...). Daí a nossa definição de serviço público como toda atividade material que a lei atribui ao Estado para que a exerça diretamente ou por meio de seus delegados, com o objetivo de satisfazer concretamente às necessidades coletivas, sob regime jurídico total ou parcialmente público.” (Maria Sylvia Zanella di Pietro, Direito Administrativo, p. 102, 23ª ed. 2010. Editora Atlas: São Paulo.)
Se a Constituição atribui esta gama de competência à União, que pode exercê-la pessoalmente ou por meio de suas autarquias criadas para este fim, cabe aquele ente político e à autarquia federal, pessoa jurídica de direito público, exercer esta atividade em sua plenitude, conservando e protegendo sua competência visando o bem estar dos cidadãos que deve satisfazer e proteger, neste sentido a doutrina:
“Deve-se distinguir, ao tratar de execução de serviços públicos, a titularidade e a prestação. A titularidade é exclusiva do ente político ao qual a Constituição haja cometido, explícita ou implicitamente, a competência específica. Quanto à prestação, tanto poderá ela caber ao titular, dizendo-se direta, como pode ser por ele delegada a terceiros, denominando-se indireta.” (Diogo de Figueiredo Moreira Neto, Curso de Direito Administrativo, p. 479, 15ª ed. 2009. Forense: Rio de Janeiro.)
Autorizar que um Estado federado tribute atividade da União implicaria em permitir que diminua, obste ou destrua a competência garantida constitucionalmente à União, já que o poder de tributar enseja o poder de destruir, haja vista os casos de extrafiscalidade. Neste sentido, a doutrina:
“Entre as imunidades genéricas, está a imunidade recíproca. Trata-se de decorrência do principio federativo, do principio da isonomia das pessoas políticas e da autonomia municipal. É regra de imunidade que existiria ainda que não fosse prevista expressamente, já que a tributação, sobretudo por meio de impostos, pressupõe a supremacia daquele que cobra a exação em relação a quem paga. Não é dado a uma pessoa política criar embaraços à atuação de outra por meio de impostos. A imunidade recíproca seria, de certo modo, garantia da própria federação.” (Gilmar Ferreira Mendes, Curso de Direito Constitucional, p. 1374, 8ª ed. 2013. Saraiva: São Paulo.)
O poder de tributar é de vital importância para a consecução e manutenção dos mais diversos serviços públicos, que vão desde a segurança nacional e desenvolvimento cientifico, econômico até garantia de um meio ambiente equilibrado; contudo, o poder de tributar tem tamanha influência, efeitos e impacto na vida das pessoas que estados republicados somente exercem este poder de forma legitimada, ou seja, autorizado pelos cidadãos. Não há tributação sem legitimação.
Desta feita, os cidadãos domiciliados em um dos Estados da Federação não podem impor tributação nas atividades de competência da União, pois estariam impondo sua vontade não só aos cidadãos domiciliados no Estado que exercem sua cidadania, mas aos cidadãos que compõem toda União, falta-lhes, portanto, legitimação para tanto. Seria uma hipótese de tributação sem legitimação, algo que atenta não só ao estado federal, mas à própria democracia que o sustenta.
Estes fundamentos que justificam a imunidade recíproca prescrita na Constituição Federal, decorrem do caso McCulloch v. Maryland (17 U.S. 316), decidido pela Suprema Corte americana em 1819 (http://caselaw.lp.findlaw.com/scripts/getcase.pl?navby=case&court=us&vol=17&invol=316), que serviu de inspiração à Rui Barbosa para positivar o princípio na constituição de 1891, já que temia que o então criado Supremo Tribunal Federal viesse a negar a imunidade recíproca no Brasil o que poria em risco a própria ideia de Estado federal.
Por esta razão a imunidade recíproca é um instituto histórico em nosso federalismo, vem sendo positivado em nossas constituições desde a primeira Constituição republicana em 1891, art. 10 e posteriormente na Constituição Federal de 1934, art. 17, X; Constituição Federal de 1937, art. 32, “c”; Constituição Federal de 1946, art. 15, IV e VI, §§ 4º e 5º e Constituição Federal de 1967, art 20, III, “a”, §1º, até chegar à Constituição cidadã de 1988, como transcrito acima.
A imunidade é extensível às autarquias porque a pessoa de direito político, como a União, na consecução plena de suas competências deve se servir de todos os meios à sua disposição. Dentre estes meios está o poder de criar uma pessoa de direito público, como uma autarquia (CF, art. 37, XIX), para executar com especialidade e profissionalismo determinado serviço público.
Quando se trata de execução de serviço público, há que se distinguir a questão de sua titularidade da questão de sua prestação. A titularidade é exclusiva do ente político (União, Estado ou Município) ao qual a Constituição haja cometido, explicita ou implicitamente, a competência especifica para a atividade. Já a prestação do serviço poderá caber tanto ao titular como poderá ser delegada a terceiros.
Ademais, segundo o STJ quem tem o ônus de provar que a tributação esta a incidir sobre atividade não vinculada é do fisco e não da autarquia:
“Se a presunção milita em favor da autarquia, cabe o ônus da prova em contrário à parte interessada em constatar a não-incidência da norma constitucional que outorga imunidade.” (REsp 769.940/MG, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 17/08/2006, DJ 04/10/2006, p. 208)
Assim, o ato de inscrição de autarquia federal em CADIN estadual é inconstitucional e viola princípio histórico de nosso regime federativo.
I.b. Da Impossibilidade de Inscrição de Autarquia federal em CADIN estadual
A inscrição em CADIN tem duas finalidades claras: (i) servir como cadastro público de informação para que se apure a regularidade fiscal das pessoas e (ii) constranger o devedor à garantia do juízo e ao pagamento. Tanto é assim que, em São Paulo, por exemplo, a lei estadual n.º 12.799/08, art. 6º, § 1º c.c. art. 8º, prevê que enquanto persistir o débito e este não estiver suspenso, a pessoa inscrita no CADIN fica impedida de contratar, firmar, convênios e obter repasses financeiros.
Ocorre que pessoa jurídica de direito público não pode ter seus bens penhorados, porque estão afetados à consecução de interesse público, daí os procedimentos específicos de pagamentos para pessoas jurídicas de direito público impostos pela Constituição (CF, art. 100 e CPC, art. 730), neste sentido a doutrina:
“Impenhorabilidade. Bens públicos não podem ser penhorados. Isto é uma consequência do disposto no art. 100 da Constituição. Com efeito, de acordo com ele, há uma forma específica de satisfação de créditos contra o Poder Público inadimplente. Ou seja, os bens públicos não podem ser praceados par que o credor neles se sacie.” (Celso Antonio Bandeira de Mello. Curso de Direito Administrativo, p. 923. 28ª ed. 2011. Malheiros: São Paulo)
No caso de autarquia federal, por se tratar de pessoa jurídica de direito público, o eventual credor estadual sempre terá seus créditos garantidos, vez que o alegado devedor é pessoa solvente e seus créditos sempre estarão garantidos por meio de precatórios, é o que decidiu o STJ:
TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ART. 543-C, DO CPC. EXECUÇÃO FISCAL CONTRA A FAZENDA MUNICIPAL. INEXISTÊNCIA DE PENHORA. ARTIGO 206, DO CTN. CERTIDÃO POSITIVA COM EFEITOS DE NEGATIVA. EXPEDIÇÃO. ADMISSIBILIDADE.
1. O artigo 206 do CTN dispõe: "Tem os mesmos efeitos previstos no artigo anterior a certidão de que conste a existência de créditos não vencidos, em curso de cobrança executiva em que tenha sido efetivada a penhora, ou cuja exigibilidade esteja suspensa." 2. A Fazenda Pública, quer em ação anulatória, quer em execução embargada, faz jus à expedição da certidão positiva de débito com efeitos negativos, independentemente de penhora, posto inexpropriáveis os seus bens. (Precedentes: Ag 1.150.803/PR, Rel. Min. CASTRO MEIRA, DJ. 05.08.2009; REsp 1.074.253/MG, Rel. Min. BENEDITO GONÇALVES, DJ. 10.03.2009; AgRg no Ag 936.196/BA, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 15/04/2008, DJe 29/04/2008; REsp 497923/SC, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, SEGUNDA TURMA, julgado em 16/05/2006, DJ 02/08/2006; AgRg no REsp 736.730/SC, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 16/08/2005, DJ 17/10/2005; REsp 601.313/RS, Rel. Min. CASTRO MEIRA, DJ de 20.9.2004; REsp 381.459/SC, Rel. Min. HUMBERTO GOMES DE BARROS, DJ de 17.11.03; REsp 443.024/RS, Rel. Min. LUIZ FUX, DJ de 02.12.02; REsp 376.341/SC, Rel. Min. GARCIA VIEIRA, DJU de 21.10.02) 3. "Proposta ação anulatória pela Fazenda Municipal, "está o crédito tributário com a sua exigibilidade suspensa, porquanto as garantias que cercam o crédito devido pelo ente público são de ordem tal que prescindem de atos assecuratórios da eficácia do provimento futuro", sobressaindo o direito de ser obtida certidão positiva com efeitos de negativa." (REsp n. 601.313/RS, relator Ministro CASTRO MEIRA, DJ de 20.9.2004). 4. Recurso especial desprovido. Acórdão submetido ao regime do art. 543-C do CPC e da Resolução STJ 08/2008. (REsp 1123306/SP, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 09/12/2009, DJe 01/02/2010)
Portanto, segundo a jurisprudência do STJ, a simples interposição de embargos do devedor já é suficiente para suspender a exigibilidade do crédito, logo uma autarquia federal jamais poderia ser inscrita em CADIN estadual pelo simples ato de interposição de embargos do devedor.
Especificamente em relação à inscrição no CADIN de pessoa jurídica de direito público, como uma autarquia federal, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, aplicando o art. 7º da lei federal 10.522/02, que trata do CADIN em âmbito federal, que tem simetria com as legislações estaduais acerca dos cadastros de inadimplentes, decidiu:
“No tangente à inscrição no CADIN, a Lei 10.522/02 prevê que a suspensão da inscrição dar-se-á quando existente ação judicial acompanhada de garantia idônea ou quando presente causa suspensiva da exigibilidade do crédito. (...). Assim sendo, o art. 7º apenas exige a cobertura da dívida, não importando se a cobrança esteja sobrestada ou não. Assim, na medida em que à Fazenda Pública atribui-se a presunção de solvabilidade, a finalidade da exigência resta satisfeita com a simples figuração de uma pessoa de direito público interno na condição de contribuinte, ou seja, nessas hipóteses, a natureza mesma do contribuinte supera o requisito de ordem objetiva (garantia idônea) para o fim de suspensão da inscrição. Dessa forma, tenho que a interposição de ação de discussão do débito, ainda que não tenha a apresentação de garantia idônea, é suficiente para excluir o nome do impetrante do Registro no CADIN.” (AMS 2006.70.00.01.011645-6/PR, Rel. Des. Federal Joel Ilan Paciornik, julgado em 10/10/2007, DJe 14/11/2007)
É preciso ponderar, por fim, que a inclusão de autarquia federal em CADIN estadual tem obstado e colocado a prestação de serviços públicos essenciais prestados por entidades federais em risco, sobretudo em casos de segurança publica, pesquisa cientifica, educação e saúde. Em hipóteses como estas o STF, tem decidido que o nome da pessoa jurídica de direito público deve ser excluída do CADIN:
“Impõe-se ter presente, agora, um outro aspecto que se me afigura relevante, considerada a jurisprudência que o Supremo Tribunal Federal firmou em decisões que – ordenando a liberação e o repasse de verbas federais – foram proferidas com o propósito de neutralizar a ocorrência de risco que pudesse comprometer, de modo irreversível, a continuidade da execução de políticas públicas ou de serviços públicos essenciais à coletividade. (...) A inscrição no registro federal concernente a entidades e instituições inadimplentes, mais do que simplesmente afetar, compromete, de modo irreversível, a prestação, no plano local, de serviços públicos de caráter primário, além de inviabilizar a celebração de novos convênios, impedindo, assim, a transferência de recursos financeiros necessários ao desenvolvimento e ao fortalecimento de áreas sensíveis, como a saúde, a educação e a segurança públicas. Situação que configura, de modo expressivo, para efeito de outorga de provimento cautelar, hipótese caracterizadora, de periculum in mora. Precedentes.” (ACO 1534/RS, Min. Rel. Celso de Mello, julgado em 17.03.2011, DJe 11.04.2011)
Portanto, a inclusão de autarquia federal em CADIN estadual se revela ilegítima, pelas razões expostas neste artigo
BIBIBLIOGRAFIA
BANDEIRA DE MELO, C. A. Curso de Direito Administrativo. 28ª ed. 2011. Malheiros: São Paulo
CARRAZA, R. A. Curso de Direito Constitucional Tributário. 17ª ed. 2002. Malheiros: São Paulo
DI PIETRO, M. S. Z. Direito Administrativo. 23ª ed. 2010. Editora Atlas: São Paulo.
MENDES, G. F. et al. Curso de Direito Constitucional. 8ª ed. 2013. Saraiva: São Paulo.
MOREIRA NETO, D. F. Curso de Direito Administrativo. 15ª ed. 2009. Forense: Rio de Janeiro.