5. Da impossibilidade da capitalização de juros: uma perspectiva constitucional
A capitalização de juros implica uma desproporção radical entre prestação e contraprestação. Para que se chegue a esta conclusão, é necessária uma preliminar abordagem do significado real, prático, no sentido econômico, da capitalização.
O engenheiro Antônio de Pádua Collet e Silva, no seu artigo "Entendendo os Aspectos Legais dos Juros" 19, aborda a capitalização sob o viés econômico e jurídico de modo simples e preciso. Para simplificar a análise inicia distinguindo, para efeitos de seu trabalho, duas expressões que utiliza. A primeira é "juros capitalizados", que são os juros calculados pelo critério de juros compostos em períodos inferiores a um ano (dias, meses, etc.). A segunda é "juros legais", que são os juros calculados pelo critério de juros simples em períodos inferiores a um ano e de juros compostos para períodos superiores a um ano (pois a Lei da Usura e o Código Comercial o permitem). A partir desta distinção avalia a repercussão econômica da aplicação dos juros capitalizados e dos juros legais (estes capitalizados apenas anualmente, segundo a lei permite).
Parte o autor de um exemplo básico para que se possa "sentir" a diferença. Parte do valor do principal de R$ 1.000,00, taxa de juros de 8% ao mês, de período mensal.
Primeiro considera período inferior a um ano, com prazo de um semestre (seis meses), do que resultaria ao fim um total com juros legais somando R$ 1.480,00. O valor do principal e o valor do montante de juros não variam a cada mês, sendo o principal ao longo dos seis meses de R$ 1.000,00, e o valor dos juros de R$ 80,00 em cada mês. Já do cálculo com juros capitalizados resultaria um total de R$ 1.586,87. A cada mês o valor do principal se altera, somando-se os juros do período anterior, o que resulta numa alteração do valor dos juros a cada mês, pois embora a taxa de juros não varie o principal aumenta (R$ 80,00 no primeiro, R$ 86,40 no segundo,...).
Daí concluiu que, neste primeiro exemplo, comparando os valores obtidos, os juros capitalizados resultaram uma remuneração para o capital em + 58%, enquanto os juros legais resultaram uma remuneração para o principal em + 48%. Deste modo os juros capitalizados proporcionaram um ganho comparativamente maior em + 7,22% sobre os juros legais.
Em seguida, considera o autor para os mesmos dados básicos um período superior a um ano (o que muda um pouco porque os juros legais podem ser capitalizados de ano a ano), um prazo de cinco anos (60 meses). O total com juros legais após o período de 5 anos soma R$ 27.888,25. O valor do principal e a remuneração mensal de juros não varia dentro de cada ano. Somente ao completar cada ano o montante de juros do ano é acrescido ao valor do principal (juros compostos em períodos anuais). Já o total com juros capitalizados após o período de 5 anos é de R$ 101.257,06. Não é erro de digitação, é este absurdo mesmo. A cada período mensal varia o valor do principal, incorporando-se o valor dos juros do período anterior, bem como a cada período varia o montante de juros, pois embora a taxa de juros seja a mesma o valor do principal aumenta.
Conclui o autor, após comparar os valores totais obtidos com os dois critérios de cálculo, que os juros capitalizados aumentaram a remuneração para o principal em + 10.025,7%, enquanto os juros legais proporcionaram um aumentaram a remuneração para o principal em + 2.288,8%. A aplicação dos juros capitalizados geraram um ganho comparativamente maior em +263,08% sobre o ganho proporcionado pelos juros legais
Após estas análises chega Collet e Silva à seguinte conclusão:
Os dois exemplos numéricos apresentados acima permitem compreender porque no gráfico resultante dos cálculos, a curva para Juros Capitalizados aumenta de forma tão acentuada frente à curva obtida para os Juros Legais. A resposta está nos prazos e respectivos períodos considerados, bem como no critério de cálculo adotado para maximizar os resultados.
(...)
A melhor forma para maximizar a rentabilidade dos juros é prolongar prazos e utilizar o critério de cálculo exponencial com Juros Compostos, com a maior quantidade de períodos possíveis para aplicação das taxas. Por outro lado, para minimizar os custos dos juros, deve-se reduzir os prazos e diminuir o fator exponencial do critério de cálculo.
Observe que no exemplo anterior, a aplicação de Juros Legais resultaria numa excelente remuneração de + 2.792,5% para o Capital Empregado do financiador, considerando o prazo de 5 anos e períodos mensais com taxa de juros de 8% ao mês. Certamente configura-se como usura, a pretensão de remunerações acima de tal patamar, aplicando-se os cálculos dos Juros Capitalizados. 20
Demonstra o ilustre engenheiro ainda que os efeitos dos critérios de cálculo (juros legais ou capitalizados) é mais perverso do que o efeito das próprias taxas de juros. Observe-se o quadro comparativo que o autor faz entre os resultados obtidos com o uso dos juros legais e com o uso dos juros capitalizados, variando-se a taxa de juros mensais entre 1% e 12%:
Juros Mensais |
Juros após 1 ano (doze meses) |
Juros após 5 anos (60 meses) |
||
Juros Legais |
Juros Capitaliz. |
Juros Legais |
Juros Capitaliz. |
|
1% |
12% |
12,7% |
76,2% |
81,8% |
5% |
60% |
79,6% |
948,6% |
1.767,9% |
8% |
96% |
151,8% |
2.792,5% |
10.025,7% |
10% |
120% |
213,8% |
5.053,6% |
30.348,2% |
12% |
144% |
289,6% |
8.548,7% |
89.659,7% |
Após transplantar os efeitos disto num gráfico, Collet e Silva ressalta que o sentimento do ser humano é restrito para entender os efeitos da exponenciação, reclamando-se muito mais das taxas de juros do que do critério de cálculo. E prossegue que "Cientes da restrição de tal intuição, especialmente pelos menos favorecidos, os preceitos bíblicos condenam a usura desde o Antigo Testamento. Talvez já soubessem, naquela época, dos resultados em se depositar um único grão de trigo no primeiro quadrado de um tabuleiro de xadrez, dobrando esta quantia nos quadrados seguintes. O número de grãos começa bem pequeno: 1, 2, 4, 8, 16, 32, 64, 128,... mas quando chega no 64° quadrado, o resultado é quase 18, 5 quintilhões de grãos!"
Analisando estes dados (melhor expostos na origem pelo engenheiro, com outros gráficos e tabelas), é realmente difícil compreender aqueles que defendem a capitalização de juros nos empréstimos. Ao menos impossível é compreender sob a ótica de que o direito deve valorizar o humano antes do que o patrimônio, sob a ótica de que este serve àquele e não aquele serve a este.
A evolução exponencial que toma a dívida é patentemente injusta, onerosa, constituindo verdadeiro enriquecimento sem causa, onerosidade excessiva, lesão enorme, ou como mais se queira denominar. Certo é que o direito não pode tolerar um fator tal de desequilíbrio e até, por que não, abuso contratual.
Por isso, não obstante a previsão da medida provisória, acredita-se que os juízes e tribunais não se manterão silentes. Afora a inconstitucionalidade do dispositivo em virtude da impossibilidade da veiculação da matéria via medida provisória, também certa é a sua inconstitucionalidade perante o art. 1°, III, 3°, I, II, III, 170, da Carta Magna. Talvez os juristas não se tenham dado conta ainda do conteúdo que a norma a qual permite a capitalização reveste.
Luiz Edson Fachin 21 destaca que a Constituição Federal de 1.988 operou uma inversão ao erigir como fundamento da República a dignidade da pessoa humana, impondo ao Direito Privado o abandono da postura patrimonialista herdada do século XIX e na qual se inspirou o Código Civil pátrio. Submete-se o patrimônio à pessoa: aquele se legitima enquanto meio de realização desta.
Esse novo panorama constitucionalizado do direito privado atingiu em cheio os contratos, como notou Paulo Nalin na sua tese intitulada "Conceito Pós-Moderno de Contrato: em Busca de sua Formulação na Perspectiva Civil-Constitucional". 22 Destaca o autor a superação do sistema codificado do contrato do Código Civil 23, com seu desenvolvimento teórico assentado no século XIX, baseado na vontade individual dos contratantes, o que não encontra mais ressonância na realidade fática. 24 Nesse sentido, afirma o autor:
Há de se perseguir um mais amplo favorecimento da pessoa humana nas relações jurídicas e, especialmente, nas contratuais; conforme reafirmado nesta tese, a vontade contratual deixou de ser o núcleo do contrato, cedendo espaço a outros valores jurídicos, institutos, fundados na Carta. O paradigma da autonomia da vontade, em detrimento da tutela da pessoa na sua dimensão contratante, talvez até possa encontrar legitimidade no espaço do Código Civil, pois do homem em si não se ocupa, mas sempre estará em descompasso com a Constituição. Isso é observado com grande destaque nas relações jurídicas contratuais, em que a vontade surge como mero papel de impulso, quando não, completamente inexistente, no âmbito das relações de adesão e do contrato obrigatório, ambas conseqüências da massificação negocial. 25
Assim sendo, embora o contrato seja um veículo econômico de trânsito de bens, veiculando uma operação econômica destinada a transferir titularidades, não se pode olvidar que a Constituição Federal de 1988 consagrou a função social do contrato, à qual se subordina a função econômica. O art. 170. da Constituição, ao tratar da ordem econômica, determinou que esta tem por fim assegurar a todos uma existência digna, submetendo o valor patrimonial ao existencial. Não se trata de derrogação dos valores patrimoniais, mas sim de submissão destes aos valores existenciais.
Nesse sentido, propugna-se hoje a vigência dos princípios da boa fé objetiva, justiça contratual e transparência no âmbito dos contratos. E a capitalização de juros discrepa do conteúdo de todos esses princípios, os quais se relacionam intimamente. Discrepa da boa fé objetiva porque destoa do comportamento leal, da lisura com que as partes tem de se comportar uma diante da outra, pois se trata de um instituto cujo conteúdo não é claro, além de ser injusto. A capitalização não se conforma com o princípio da justiça contratual, porque engendra uma contraprestação totalmente desproporcional em relação à prestação, quebrando qualquer idéia de equidade. Por fim, afasta-se da transparência porque a cláusula de capitalização é incompreensível ao homem médio, ou consumidor médio, da sociedade.
É evidente a impossibilidade da aplicação da capitalização em contratos de adesão, e cumpre notar que os bancários, na esmagadora maioria, são adesivos. Isto porque o aderente não terá, com certeza, a possibilidade de optar entre formular um contrato de mútuo com capitalização de juros ou sem. Tendo como opção única firmar um contrato com capitalização, dada a necessidade que a sociedade tem deste tipo de operação, e dada a utilidade social do contrato, que deve estar acessível à comunidade como meio de desenvolvimento social, não se pode afirmar que há vontade do aderente no sentido da capitalização.
Reza o Código do Consumidor, com relação aos contratos de adesão, no art. 54, § 3° (que por sinal se insere dentro do âmbito do conceito de consumidor do art. 29. do CDC, pelo qual é consumidor todo aquele que se sujeita à prática ali prevista), que "Os contratos de adesão escritos serão redigidos em termos claros e com caracteres ostensivos e legíveis, de modo a facilitar sua compreensão pelo consumidor." O art. 46. do mesmo Código afirma que os contratos não obrigarão os consumidores se não for dada oportunidade de conhecer o seu conteúdo e se for redigido de modo a dificultar a compreensão do seu alcance.
Ora, a mera previsão contratual de juros capitalizados não permite que se tenha alcance das considerações econômicas traçadas. Imagine um consumidor que, tendo dificuldades econômicas, utiliza o cheque especial para prover seu sustento básico e acaba por abrir um débito de R$ 1.000,00. O banco ajuíza uma ação contra o cliente, que passa a discutir a questão em juízo, e permanecendo em dificuldades não paga.
Quem poderia imaginar que, passando-se cinco anos, a juros de 8% ao mês (que é um juro normal hoje para cheque especial), o critério de capitalização de juros conduziria o débito ao montante de, no mínimo (sem contar juros de mora), R$ 101.257,06 ?? Ou mesmo que o período seja menor, quem poderia imaginar que, sem nem contar juros de mora, ao fim do terceiro ano devesse R$ 15.968,17, e ao fim do quarto ano R$ 40.210,57 ??
Se esta previsão já é difícil para pessoas que tiveram acesso ao ensino superior, minoria na sociedade, quanto mais para a maior parte da população brasileira. A estipulação contratual fere o princípio da boa fé (objetiva), que consagra a equidade e justiça contratuais. Além de tudo, quando se configurar relação de consumo, nunca é demais recordar o direito básico que se tem, à luz do art. 6°, V, do Código do Consumo, à modificação de cláusulas contratuais que estatuam prestação desproporcional.
Mesmo que se entenda que lei permite a capitalização, e é válida, afirma a súmula do Superior Tribunal que é possível o "pacto de capitalização de juros". Mas no contrato bancário há de se questionar "que ‘pacto’?" É a instituição financeira que dita as regras do jogo, cabendo ao cliente meramente aderir a uma regra que é inadvertidamente injusta e também injurídica (frente a lei constitucional, civil e do consumidor). Se há um mínimo de vontade nestes "pactos", certamente não tem o sentido da capitalização. Se é que o cliente entender o que ela significa...
Além de tudo isso, é inoperante o argumento da injustiça de o banco capitalizar nas operações passivas e não nas ativas. O banco capitaliza porque quer, não havendo norma legal que o obrigue. Faz isso com o objetivo de atrair e manter poupadores para usar os recursos nas operações ativas. Porque se não o fizesse correria o risco de a cada mês o cliente reaplicar a quantia em outro banco para ver seus valores capitalizados. 26 Também se deve anotar que aí não é ferida a boa fé objetiva, porque o banco, especializado nas operações financeiras, tem dimensão do significado da capitalização, bem como porque é ele que predispõe as cláusulas negociais.
Por fim, cumpre destacar que a disposição da medida provisória que viabiliza a capitalização de juros, nas operações de instituições financeiras, em prazos inferiores a um ano, não atinge a impossibilidade de capitalização de juros após intentada ação contra o devedor. Reza o art. 253. do Código Comercial, não se sabe por que esquecido, in fine: "Depois que em juízo se intenta ação contra o devedor, não pode ter lugar a acumulação de capital e juros." Esta disposição do Código Comercial é norma especial para contratos comerciais (tal como o contrato bancário), e especial em relação ao período posterior à propositura da ação contra o devedor.
É, pois, norma duplamente especial (especialíssima) que não foi revogada. Primeiro não foi revogada pela Lei da Usura ou Código Civil porque a norma do Direito Comercial visou a regular situações após a propositura da ação especificamente em contratos comerciais, como o contrato bancário. Não foi também revogada pelos diplomas especiais que regem os mútuos rural, industrial e comercial, porque não se debruçaram sobre a capitalização especificamente após a mora. E não perde efeitos perante a medida provisória, até mesmo para quem admite a capitalização de juros (tese com que não concordamos), porquanto o tratamento da norma comercial é especialíssimo em relação ao período subsequente à propositura da ação, período que a medida provisória não atingiu ao estabelecer um tratamento genérico. Não há razão, assim, para o esquecimento ou não aplicação do art. 253. do Código Comercial.