As delações premiadas e a literatura brasileira

15/12/2014 às 15:01
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As relações entre literatura e sociedade são mais profundas do que geralmente se pensa.

Anathol Rosenfeld defende a tese de que a obra literária não espelha o momento em que foi produzida, porque “embora tenha por sua vez raizes sociais, não pode ser reduzida a elas e é reelaborada de um modo complexo e pessoal, embora sob a influência de novas situações histórico-sociais.” (Problemas Literários, texto) Para referido autor, a grande obra literária revela a ideologia dominante mesmo quando exalta valores corruptos.  Assim, a crítica literária também teria por finalidade revelar, sob as camadas textuais, a ideologia que a obra registra e/ou pretende criticar.

Para René Vellek e Austin Waren “O  escritor não se limita a ser influenciado pela sociedade: o escritor influencia a sociedade. A Arte não só reproduz a vida, como lhe dá forma. As pessoas podem moldar suas vidas nos modelos dos heróis e heroínas da ficção.” ( Teoria da Literatura, Biblioteca Universitária,  publicações Europa-América, Lisboa 1962). Por isto, sugerem que  a literatura também pode ser considerada como um  retrato da realidade social.

A realidade social tem sido matéria prima da literatura desde o Romantismo, período em que os autores idealizavam suas sociedades. Os Realistas tentaram transpor a realidade nua e crua de seus países para a literatura. A Literatura Fantástica procurou distorcer e transfigurar a realidade para dar mostrar aos leitores os absurdos considerados normais cotidianamente.

Tratando da especificidadade das relações entre a literatura fantástica e a sociedade,  Jorge Schwartz assevera que “O fato fantástico, que se contrapõe em geral a um mundo (ou valor) estruturado solidamente, vive apenas através da linguagem. Sua existência, que somente se define em função do referente acima descrito, é puramente lingüistica, criando assim um paradoxo em relação ao mundo real que a constitui. Fundamentado num universo empírico, sobrevive apenas na dimensão da escritura, tornando-se paradoxal pela sua capacidade de nomear aquilo que é e não é ao mesmo tempo.” (Murilo Rubião: A Poética do Uroboro, Jorge Schwartz, ensaios 74, ática, São Paulo 1981). Mais adiante o crítico frisa que “... a possibilidade de conotação social enriquece o signo narrativo, permitindo que ele se projete além do fenômeno meramente ficcional."

Sintetizando as relações entre a literatura fantástica e a realidade, o mestre Antonio Cândido  enfatiza que “o dado sobrenatural é um artifício da imaginação para remeter a conflitos originários da própria realidade.” (Um mestre do fantástico, Antonio Candido – In Murilo Rubião, Literatura Comentada, abril, São Paulo 1981/82)

Das citações podemos inferir que literatura e realidade interpenetram-se. Mais que isto, que o realismo fantástico privilegia a análise das relações entre o texto e a realidade histórico-social das quais ele surgiu e às quais retorna. Sem uma abordagem desta natureza é impossível a construção do sentido da obra literária para além de suas propriedades meramente lingüísticas.

Os teóricos da literatura estudam as relações entre literatura e sociedade. O caminho inverso, porém, também pode ser feito. A própria literatura influencia a vida em sociedade e pode ser utilizada para tentarmos compreender a realidade. O caso mais evidente envolveu a recepção da obra Wherter, de J.W. Goethe no século XVIII. “Quando lançado na Europa, o livro inspirou uma leva de jovens leitores, que passaram a se vestir como o protagonista. Atribui-se a ele uma onda de suicídios na época.” http://super.abril.com.br/cotidiano/sofrimentos-jovem-werther-445970.shtml .  

Desde que as delações premiadas começaram a ser utilizadas eleitoralmente no ano passado. A imprensa escolheu seletiva e cirurgicamente as delações vazadas para prejudicar alguns candidatos e beneficiar outros. As recentes prisões de empresários e diretores de grandes empresas prestadoras de serviços à Petrobras tem tudo para complicar ainda mais as relações entre empresariado, mídia e lideranças políticas. Afinal, os novos presos são homens poderosos e anunciam produtos e serviços das suas empresas nas empresas de comunicação que apoiaram as prisões deles. E alguns políticos que os barões da mídia defendem provavelmente também correm o risco de ser presos em razão das novas delações premiadas que neste momento estão sendo negociadas com os empresários e diretores de empresas que foram presos.

A julgar pelos tumultos no Congresso esta semana, o Brasil tem sido transformado num hospício. Em razão disto se tornou pertinente a pergunta: Que tipo de hospício literário a oposição está trazendo à vida neste momento da realidade brasileira?

Os dois mais significativos hospícios da literatura brasileira foram construídos por Machado de Assis e Lima Barreto. Em O Alienista, obra inteiramente fictícia de Machado de Assis, o protagonista começa a internar mais e mais seus conterrâneos ampliando arbitrariamente seu conceito de doença mental. Ao final, o Dr. Simão resolve soltar todos os internos e se tranca no hospício certo de que ele é o único doente. Em O Cemitério dos Vivos, Lima Barreto romanceou suas experiências pessoais como interno no Hospital Nacional de Alienados no princípio do século XX.

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Transcrevo abaixo fragmentos das duas obras para poder melhor compará-las:

“A aflição do egrégio Simão Bacamarte é definida pelos cronistas itaguaienses como uma das mais medonhas tempestades morais que têm desabado sobre o homem. Mas as tempestades só aterram os fracos; os forres enrijam-se contra elas e fitam o trovão. Vinte minutos depois alumiou-se a fisionomia do alienista de uma suave claridade.

—Sim, há de ser isso, pensou ele.

Isso é isto. Simão Bacamarte achou em si os característicos do perfeito equilíbrio mental e moral; pareceu-lhe que possuía a sagacidade, a paciência, a perseverança, a tolerância, a veracidade, o vigor moral, a lealdade, todas as qualidades enfim que podem formar um acabado mentecapto. Duvidou logo, é certo, e chegou mesmo a concluir que era ilusão; mas, sendo homem prudente, resolveu convocar um conselho de amigos, a quem interrogou com franqueza. A opinião foi afirmativa.” 

http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000231.pdf

“A faina não tinha cessado, e fui com outros levado a lavar o banheiro. Depois de lavado o banheiro, intimou-nos o guarda, que era bom espanhol (galego) rústico, a tomar banho. Tínhamos que tirar as roupas e ficarmos, portanto, nus, uns em face dos outros. Quis ver se o guarda me dispensava, não pelo banho em si, mas por aquela nudez desavergonhada, que me repugnava, tanto mais que até de outras dependências me parecia que nos viam. Ele, com os melhores modos, não me dispensou, e não tive remédio: pus-me nu também. Lembrei-me um pouco de Dostoievski, no célebre banho da Casa dos Mortos; mas não havia nada de parecido. Tudo estava limpo e o espetáculo era inocente, de uma traquinada de colegiais que ajustaram tomar banho em comum. As duchas, principalmente as de chicote, deram-me um prazer imenso e, se fora rico, havia de tê-las em casa. Fazem-me saudades do Pavilhão...” 

http://www3.universia.com.br/conteudo/literatura/O_cemiterio_dos_vivos.pdf

O personagem de Machado de Assis é trágico e inspira compaixão, o de Lima Barreto é humano e provoca um otimismo comedido. Enquanto o primeiro se vê invadido por “medonhas tempestades morais”, o segundo aproveita o banho e confessa que, apesar de resistir ao mesmo, as duchas lhe deram  “um prazer imenso” e o fizeram sentir “saudades do Pavilhão”. O personagem de Machado de Assis sucumbe à culpa antes de se recolher ao hospício, o de Lima Barreto vai se libertando da tristeza durante a internação antes de ser colocado na rua. O rito de passagem é semelhante, o resultado bem diferente.  

As  delações premiadas em curso, que transformaram o Brasil num hospício, também podem ser consideradas um rito de passagem. O resultado, porém, ainda é incerto.

O aprofundamento das investigações e consequentes prisões de políticos importantes, inclusive tucanos, pode resultar num fortalecimento da democracia. Num futuro próximo, podemos vir a sentir saudades desta ducha acionada pelos governos petistas que está lavando a sujeira que havia na Petrobras. Mas a solução realista do conflito político à moda de O Cemitério dos Vivos pode não prevalecer. Caso prevaleça uma saída ficcional e machadiana, os investigadores é que sofrerão as consequencias de seus atos legítimos quando a democracia for destruída para fortalecer a antiga tradição patrimonialista da elite brasileira. A resistência da mídia à prisão de políticos tucanos tem tudo para desencadear um retrocesso imprevisível. Quem viver verá. Antes disto, porem, melhor mergulhar na literatura brasileira para compreendermos melhor nossa própria sociedade. 

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Sobre o autor
Fábio de Oliveira Ribeiro

advogado em Osasco (SP)

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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