1. INTRODUÇÃO
A nova Lei n. 13.043, de 13 de novembro de 2014, trouxe impactante alteração no que tange a competência para propositura de execuções fiscais promovidas pela União, Autarquias e Fundações Públicas Federais, sendo esta modificação legal o objeto de análise deste breve artigo.
2. DESENVOLVIMENTO
A cobrança judicial da Dívida Ativa da Fazenda Pública é regida pela Lei n. 6.830/80, contemplando a cobrança de dívidas de natureza tributária e não tributária, que são, segundo o conceito legal, assim definidas pelo art. 39, § 2º, da Lei n. 4.320/64:
§ 2º - Dívida Ativa Tributária é o crédito da Fazenda Pública dessa natureza, proveniente de obrigação legal relativa a tributos e respectivos adicionais e multas, e Dívida Ativa não Tributária são os demais créditos da Fazenda Pública, tais como os provenientes de empréstimos compulsórios, contribuições estabelecidas em lei, multa de qualquer origem ou natureza, exceto as tributárias, foros, laudêmios, alugueis ou taxas de ocupação, custas processuais, preços de serviços prestados por estabelecimentos públicos, indenizações, reposições, restituições, alcances dos responsáveis definitivamente julgados, bem assim os créditos decorrentes de obrigações em moeda estrangeira, de subrogação de hipoteca, fiança, aval ou outra garantia, de contratos em geral ou de outras obrigações legais.
A competência para processar e julgar execuções fiscais, entretanto, não está prevista na Lei n. 6.830/90, mas sim, Código de Processo Civil, que tem aplicação subsidiária, por força do art. 1º da Lei de Execuções Fiscais. O art. 578 do Estatuto Processual assim dispõe:
Art. 578 - A execução fiscal (Art. 585, VI) será proposta no foro do domicílio do réu; se não o tiver, no de sua residência ou no do lugar onde for encontrado.
Parágrafo único - Na execução fiscal, a Fazenda Pública poderá escolher o foro de qualquer um dos devedores, quando houver mais de um, ou o foro de qualquer dos domicílios do réu; a ação poderá ainda ser proposta no foro do lugar em que se praticou o ato ou ocorreu o fato que deu origem à dívida, embora nele não mais resida o réu, ou, ainda, no foro da situação dos bens, quando a dívida deles se originar.
A regra, portanto, é que a execução fiscal deve ser ajuizada no foro de domicílio do devedor. A execução fiscal será ajuizada na Justiça Estadual, nos casos em que a demanda for intentada pela Fazenda Pública Estadual ou Municipal e, quando o ajuizamento for feito pela União e suas autarquias e fundações públicas, a competência será da Justiça Federal, nos termos do art. 109, I, da Constituição.
Contudo, a Justiça Federal não tem a capilaridade da Justiça Estadual e somente nos últimos anos vem se interiorizando, o que causava dúvidas sobre qual o juízo competente para promover execução fiscal em face de devedor não domiciliado em local sede de vara federal.
A doutrina e jurisprudência firmaram entendimento no sentido de aplicação do art. 15, I, da Lei n. 5.010/66, a Lei de Organização da Justiça Federal, que previa a competência delegada da Justiça Estadual, com fulcro no art. 109, § 3º, da Constituição. Veja-se a lição de Leonardo Carneiro da Cunha:
Enfim, a competência será do juízo de Direito ou do juízo federal do foro do domicílio do executado. Se o devedor mantiver domicílio no interior, onde não haja juízo federal, a Fazenda Federal não deve ajuizar a execução em vara federal da capital do Estado correspondente. Nesse caso, a execução será proposta perante o juiz estadual da comarca domicílio do devedor. O juiz estadual estará, na espécie, investido de competência federal, devendo os recursos que forem interpostos ser encaminhados ao Tribunal Regional Federal da Região que compreenda aquela comarca[1].
Com entrada em vigor da Lei n. 13.043/2014, publicada no Diário Oficial da União em 14 de novembro de 2014, houve expressa revogação do inciso I do art. 15 da Lei n. 5.010/66, no art. 114, in verbis:
Art. 114. Ficam revogados: (...)
IX - o inciso I do art. 15 da Lei no 5.010, de 30 de maio de 1966.
A nova lei, portanto, acaba com a competência delegada em execução fiscal promovida pela União, suas autarquias e fundações públicas, tendo entrado em vigor a partir da publicação (cf. art. 113 da Lei n. 13.043/2014), ocorrida em 14/11/2014.
Portanto, todas as execuções fiscais ajuizadas pela Fazenda Pública Federal posteriormente a nova lei devem ser propostas perante o juízo federal, especificamente na vara federal com competência sobre a cidade domicílio do devedor.
Desta ilação se conclui que, no caso de ações eventualmente ajuizadas perante a Justiça Estadual após a publicação da lei, caberá ao magistrado declarar sua incompetência absoluta para processar e julgar a causa, remetendo-a ao juízo federal competente.
Com efeito, a competência prevista no art. 109, I, da Constituição é absoluta, eis que “constitui reflexo de razões ligadas ao correto exercício e bom funcionamento do Poder Judiciário, segundo critérios que sensibilizaram o constituinte e o legislador; interest rei pubicae, p. ex., que as causas de interesse da União sejam julgadas pela Justiça Federal, por ela mantida, e não pelas Justiças das unidades federadas[2]”, como ensina Dinamarco.
A competência, como requisito de validade do procedimento pode acarretar a nulidade dos atos decisórios (art. 113, § 2º, do CPC), acarretando graves consequências às partes, sendo imperioso que o juiz estadual observe, a partir de 14 de novembro de 2014, se a execução fiscal ajuizada é de sua competência.
Outra questão relevante a ser analisada é a aplicabilidade da Lei. Com efeito, é sabido que a lei processual tem aplicação imediata, como consagrado na doutrina e jurisprudência, preservando as situações pretéritas (tempus regit actum)[3]. Com o espírito de extirpar qualquer questionamento quanto à possibilidade de deslocamento das ações em curso na Justiça Estadual para a Justiça Federal, a Lei n. 13.043/2014 dispôs no art. 75, litteris:
Art. 75. A revogação do inciso I do art. 15 da Lei no 5.010, de 30 de maio de 1966, constante do inciso IX do art. 114 desta Lei, não alcança as execuções fiscais da União e de suas autarquias e fundações públicas ajuizadas na Justiça Estadual antes da vigência desta Lei.
O legislador foi previdente ao dispor expressamente que o fim da competência delegada não afeta as execuções fiscais em curso, tentando evitar, assim, discussões sobre o tema.
Este normativo privilegia o princípio do juiz natural, que é assente na doutrina e jurisprudência pátria, configurando verdadeiro direito fundamental, podendo ser extraído dos incisos XXXVII e LIII do art. 5º da Constituição, que, respectivamente, proíbe juízo ou tribunal de exceção e determina que ninguém será processado senão pela autoridade competente.
De igual modo, está em compasso com o art. 87 do Código de Processo Civil, que estabelece:
Art. 87. Determina-se a competência no momento em que a ação é proposta. São irrelevantes as modificações do estado de fato ou de direito ocorridas posteriormente, salvo quando suprimirem o órgão judiciário ou alterarem a competência em razão da matéria ou da hierarquia.
O referido artigo prevê a aplicação do princípio da perpetuatio jurisdictionis e leva em consideração a competência no momento em que a ação é proposta. Em virtude da lei, não é cabível que uma alteração posterior possa modificar a competência, fazendo com que haja o deslocamento do processo durante seu curso. A exceção é quando há supressão do órgão judiciário ou há alteração da competência em razão da matéria ou da hierarquia. Como afirma Fredie Didier Jr:
Cumpre lembrar, ainda, que somente a alteração superveniente de competência absoluta tem alguma relevância para o processo, conforme art. 87. Se o magistrado perder a competência absoluta para processar e julgar a causa, devem os autos ser remetidos ao juízo agora competente, sendo hipótese que excepciona a regra da perpetuação da jurisdição[4].
No caso, não está sendo suprimido órgão judiciário, porquanto permanece a competência da Justiça Federal, em consonância com o art. 109, I, da Constituição.
Além disso, a supressão da delegação de competência não traduz uma alteração de competência em razão da matéria. A transferência de competência ocorreu por força de norma constitucional autorizativa (art. 109, § 3º, da Constituição) e lei prevendo tal possibilidade (art. 5.010/66) .
Deve se destacar que o Superior Tribunal de Justiça, decidiu pela obrigatoriedade de ajuizamento de execução fiscal na justiça estadual, quando o domicílio do devedor não for sede de vara federal. Transcrevo, por oportuno, o seguinte julgado:
PROCESSO CIVIL. COMPETÊNCIA. EXECUÇÃO FISCAL.
A execução fiscal proposta pela União e suas autarquias deve ser ajuizada perante o Juiz de Direito da comarca do domicílio do devedor, quando esta não for sede de vara da justiça federal.
A decisão do Juiz Federal, que declina da competência quando a norma do art. 15, I, da Lei nº 5.010, de 1966 deixa de ser observada, não está sujeita ao enunciado da Súmula nº 33 do Superior Tribunal de Justiça.
A norma legal visa facilitar tanto a defesa do devedor quanto o aparelhamento da execução, que assim não fica, via de regra, sujeita a cumprimento de atos por cartas precatórias.
Recurso especial conhecido, mas desprovido.
(REsp 1146194/SC, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, Rel. p/ Acórdão Ministro ARI PARGENDLER, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 14/08/2013, DJe 25/10/2013)
No voto-condutor do acórdão o eminente Min. Ari Pargendler afirmou ser um dever o ajuizamento da execução fiscal nos casos antes previstos pela Lei n. 5.010/66. A norma prevista no art. 15, I, da Lei de Organização da Justiça Federal seria, portanto, cogente, do que se conclui que na supressão da lei, não haveria mais tal obrigatoriedade.
A legalidade da previsão contida no art. 75 da Lei n. 13.043/2014, tem assento, repise-se, na necessidade de verificação da competência in statu assertioni, ou seja, no momento em que a ação é proposta, resguardando o princípio do juiz natural, o princípio da perpetuatio jurisdicionis e as relações jurídicas já constituídas.
Diante destas considerações, é possível aplicar o entendimento do Supremo Tribunal Federal no julgado abaixo referido:
EMENTA: RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. INSTALAÇÃO DE NOVA VARA POSTERIORMENTE AO INÍCIO DA AÇÃO PENAL. APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DO ART. 87 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. ORDEM DENEGADA. 1. A criação de novas varas, em virtude de modificação da Lei de Organização Judicial local, não implica incompetência superveniente do juízo em que se iniciou a ação penal. 2. O art. 87 do Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente ao processo penal, leva à perpetuação do foro, em respeito ao princípio do juiz natural. 3. Ordem denegada.(RHC 83181, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. JOAQUIM BARBOSA, Tribunal Pleno, julgado em 06/08/2003, DJ 22-10-2004 PP-00005 EMENT VOL-02169-02 PP-00336 LEXSTF v. 27, n. 313, 2005, p. 406-415)
3. DA CONCLUSÃO
A Lei n. 13.043/2014, publicada no Diário Oficial da União em 14 de novembro de 2014, trouxe o fim da competência delegada da Justiça Estadual para processar e julgar execuções fiscais promovidas pela União, suas autarquias e fundações públicas, porquanto revogou o inciso I do art. 15 da Lei n. 5.010/66, que previa a competência da Justiça Estadual para estas causas.
A referida inovação legislativa tem aplicação imediata apenas para as ações ajuizadas após a sua publicação. As execuções fiscais antes de 14 de novembro de 2014 permanecerão no foro estadual, não só em face de disposição expressa no art. 75 da Lei n. 13.043/2014, mas também em decorrência do princípio do juiz natural e do princípio da perpetuatio jurisdicionis.
BIBLIOGRAFIA
CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Fazenda Pública em juízo. 10 ed. rev. e atual. São Paulo: Dialética, 2012.
DIDIER Jr, Fredie. Pressupostos processuais e condições da ação: o juízo de admissibilidade do processo. São Paulo: Saraiva, 2005.
DINAMARCO, Candido Rangel. Instituições de direito processual civil. 5ª Ed. rev. e atualizada de acordo com a emenda constitucional n. 45, de 8.12.2005. v. I. São Paulo: Malheiros, 2005.
Notas
[1] CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Fazenda Pública em juízo. 10 ed. rev. e atual. São Paulo: Dialética, 2012, p. 397.
[2] DINAMARCO, Candido Rangel. Instituições de direito processual civil. 5ª Ed. rev. e atualizada de acordo com a emenda constitucional n. 45, de 8.12.2005. v. I. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 598
[3] REsp 1321928/SP, Rel. Ministra ASSUSETE MAGALHÃES, SEGUNDA TURMA, julgado em 04/11/2014, DJe 14/11/2014; REsp 999.901/RS, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 13/05/2009, DJe 10/06/2009.
[4] DIDIER Jr, Fredie. Pressupostos processuais e condições da ação: o juízo de admissibilidade do processo. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 154.