Após quase onze anos vigente, o Estatuto do Desarmamento (Lei nº 10.826/03) voltou ao centro das discussões no Congresso Nacional, diante da tramitação do Projeto de Lei 3722/12, que propõe sua revogação e a criação de novas regras para a circulação de armas de fogo no país. No dia 26 de novembro, a Comissão Especial da Câmara dos Deputados responsável pela análise do texto realizou uma movimentada audiência pública, quando quase uma centena de pessoas lotou o plenário a ela reservado e muitas outras ficaram de fora. Nos debates, discursos favoráveis e contrários à revogação do estatuto, uns recheados de números, outros marcados por ideologia, mas duas correntes claramente contrapostas.
As discussões já repercutem além dos limites do Congresso e se estendem a veículos de mídia, palestras, seminários e, principalmente, as redes sociais, onde a aprovação ao texto é bastante expressiva. Embora com variações de abordagem, traço comum aos debates são os números do Mapa da Violência, o estudo mais confiável sobre violência homicida no Brasil. Curiosamente, a mesma fonte é utilizada nos dois extremos, ora para apontar que os homicídios continuaram a aumentar depois da vigência da lei atual, ora para garantir que aumentaram em ritmo menor.
Ainda que se admita como verdadeiras as duas afirmações – o que já é contestável quanto ao ritmo de aumento de homicídios -, elas, isoladamente, não se prestam a retratar os efetivos impactos do Estatuto do Desarmamento para a violência homicida brasileira, cuja compreensão passa por um campo distinto e até mais simples.
Ao se analisar qualquer quadro de violência homicida, o dado primordial para seu entendimento não são os números absolutos – embora sejam estes os de maior impacto -, mas as taxas de ocorrências por grupo populacional. É um valor que se convencionou representar na fração por 100 mil habitantes, tal como é utilizada no Mapa da Violência, e que em si já abrange, para finalidades estatísticas, a evolução demográfica do grupo pesquisado. E é daí, exatamente, que se extrai o primeiro elemento comparativo direto sobre os efeitos do Estatuto do Desarmamento nas taxas gerais de homicídio.
Os dados do Mapa da Violência sobre taxas gerais de homicídio estão disponíveis até o ano de 2012, ou seja, nove anos após o Estatuto do Desarmamento, de 23 de dezembro de 2003, começar a produzir efeitos (em 2004). Logo, para um justo e técnico comparativo estatístico, esse período deve ser confrontado com o mesmo intervalo de nove anos anterior à lei.
Pois bem. De 1995 a 2003, ou seja, nos nove anos imediatamente anteriores à vigência do estatuto, a taxa média de homicídios no Brasil (somatório das taxas anuais dividido pelo número de anos pesquisados) foi de 26,44 / 100 mil (238 ÷ 9). Já nos nove anos posteriores (2004 a 2012), a mesma taxa foi de 26,8 / 100 mil (241,2 ÷ 9). Entre os dois períodos, portanto, houve um aumento na taxa de homicídios no país de 1,36%, o que já permite alcançar a conclusão de que, até hoje, a legislação fortemente restritiva às armas não reduziu a taxa média de homicídios em relação ao período anterior à sua vigência.
EVOLUÇÃO DA TAXA MÉDIA DE HOMICÍDIOS
PERÍODOS COMPARATIVOS (9 anos)
1995 a 2003
2004 a 2012
TAXA MÉDIA DE HOMICÍDIOS (por 100 mil habitantes)
26,44
26,80
EVOLUÇÃO (em percentual)
+ 1,36 %
Por outro lado, tratando-se de uma legislação especificamente voltada às armas de fogo, o segundo indicativo de seus efeitos pode ser objetivamente compreendido pela participação percentual deste meio letal no total de assassinatos registrados no país. Afinal, se o objeto da lei foi impedir que o cidadão tivesse fácil acesso às armas – no que, aliás, foi bastante eficaz -, seria natural que, depois dela, a utilização de armas de fogo para a prática homicida fosse proporcionalmente menor.
Não é, contudo, o que mostram os dados oficialmente disponíveis. A edição mais detalhada do Mapa da Violência quanto a armas de fogo até hoje já publicada é a de 2013, sob o subtítulo “Mortes Matadas por Armas de Fogo”. Nela, as estatísticas vão até 2010, com um detalhamento de casos de disparos letais resultantes de acidentes, suicídios, homicídios e de chamadas “causas indeterminadas”. Essa edição, curiosamente, não traz o total de homicídios registrados no país para o mesmo período, o que pode ser encontrado na edição do ano subsequente (2014), com o subtítulo “Os Jovens do Brasil”. O cotejo entre as duas edições do Mapa e a vigência do Estatuto do Desarmamento é inegavelmente esclarecedor.
Diferentemente da análise por período das taxas gerais de homicídios, que cobrem nove anos, os números sobre assassinatos especificamente praticados com armas de fogo disponíveis no Mapa da Violência compreendem sete anos (2004 a 2010), sendo este período que, pela mesma técnica utilizada anteriormente, deve ser retrocedido em relação à lei (1997 a 2003) para comparar diretamente as duas realidades.
Nessa acepção, o quantitativo total de homicídios praticados no Brasil nos sete anos antes do estatuto foi de 319.412, dos quais 211.562 com arma de fogo, o que resulta numa participação deste meio em 66,23% dos assassinatos. Já nos sete anos posteriores, foram mortas no país 346.611 pessoas, 245.496 das quais com armas de fogo, ou 70,83% do total. Objetivamente, portanto, constata-se que, após a vigência do Estatuto do Desarmamento, os crimes de morte praticados com armas de fogo no Brasil tiveram, em relação ao total de assassinatos, um aumento de 4,60 pontos percentuais, ou 6,95%.
PERCENTUAL DE HOMICÍDIOS COMETIDOS COM ARMAS DE FOGO
PERÍODOS COMPARATIVOS (7 anos)
1997 a 2003
2004 a 2010
TOTAL DE HOMICÍDIOS
319.412
346.611
HOMICÍDIOS COM ARMA DE FOGO
211.562
245.496
PERCENTUAL DE HOMICÍDIOS COM AF
66,23%
70,83%
EVOLUÇÃO
+ 6,95 %
Independentemente de posicionamentos ideológicos ou esforços interpretativos, a aplicação de critérios estatísticos isentos não respalda invocar efeitos positivos com a aplicação da lei atual, salvo se assim for considerada a drástica redução do comércio de armas no país – de 2,4 mil lojas em 2000 para menos de 280 em 2010. A questão é que essa redução não diminuiu a taxa média de homicídios ou sequer a participação das armas de fogo no total destes. Talvez isso se explique porque, como há muito vêm insistindo os críticos do estatuto, não é a circulação legal de armas que abastece os assassinos.