Trata o art. 385 do Código de Processo Penal da possibilidade do Juiz, mesmo frente a pedido de absolvição formulado pelo Ministério Público, condenar o réu. Embora, atualmente, pareça óbvia tal prerrogativa, ainda se ouve uma ou outra voz discordante, no sentido que, frente ao requerimento de absolvição formulado pela acusação oficial, estaria o juiz obrigado a acolher o pedido e, por conseqüência, absolver o réu.
Um dos argumentos favoráveis à tese é no sentido de que a Constituição de 1988 adotou, de forma clara, o sistema acusatório, prevendo a nítida separação entre órgão acusador e órgão julgador. No dizer de Américo Bedê Freire Júnior, “deve-se ir além. Mais do que simplesmente a separação entre acusação e julgamento há, para efetivação do jus puniendi, a necessidade de que a acusação e o julgador se entendam quanto à existência de crime. Na verdade há uma relação de prejudicialidade entre o convencimento do promotor e do magistrado, melhor explicando: entendendo o Ministério Público pela não existência de crime, não cabe ao magistrado exercer qualquer juízo de valor sobre a existência ou não do crime, uma vez que a partir desse momento o magistrado estaria atuando de ofício, ou seja, sem acusação e em flagrante desrespeito ao sistema acusatório” (Boletim do IBCCrim, nº 152 – julho 2005, p. 19).
A discussão não é nova. Interessante, neste aspecto, o posicionamento de Ary Azevedo Franco, ao comentar o mencionado dispositivo legal: “Também sempre entendemos que, uma vez que o Ministério Público houvesse opinado pela absolvição do réu, nada mais cabia ao juiz senão acolher o petitório do Ministério Público, porque sempre consideramos o mesmo como autor da ação, e dês que era ele o primeiro a reconhecer que dela havia decaído, não devia o juiz entrar na apreciação da prova para discordar do Ministério Público” (Código de processo penal, vol. 1, Rio de Janeiro: Editora A noite, 1950, p. 386). Mas esse próprio autor, frente aos termos peremptórios do preceito em estudo, passou a reconhecer tal possibilidade conferida ao julgador e que, efetivamente, parece mais adequada.
A um, pois a sentença deve representar a íntima convicção do Juiz sobre o mérito da causa, não se subordinando a nenhum pedido anterior. E, a dois, por vigorar, em nosso processo penal, o principio da indisponibilidade, por meio do qual prevalece o interesse público na persecução penal nos crimes de ação penal pública. Fosse diferente, aliás, o julgador da causa não seria o juiz, mas sim o Ministério Público, a cujo pedido de absolvição estaria sempre vinculado aquele primeiro. Tal faculdade concedida ao Juiz, porém, reforça, de outro lado, o entendimento segundo o qual pode o parquet recorrer em favor do réu do qual a absolvição foi pedida.
Invocar-se o sistema acusatório como fator impeditivo para que o juiz condene frente a um pedido de absolvição parece absolutamente equivocado. Afinal, se há evidente separação entre acusador, defensor e julgador, cada um ocupando um compartimento estanque na relação processual, aí sim há de se admitir a condenação mesmo com anterior pedido de absolvição. Com efeito, a vinculação do juiz ao pedido do Ministério Público, da forma que sugerida, é que romperia com o sistema, na medida em que transferiria para a acusação pública o poder de julgar, reunindo, em um só órgão, as funções de acusar e decidir, em clara reminiscência ao sistema inquisitivo.
Outro equívoco reside em se afirmar que, se o Ministério Público pode requerer o arquivamento do inquérito policial, também pode retirar a acusação, pedindo a absolvição do réu. Ocorre que o pedido de arquivamento, pelo menos, é objeto de crivo judicial, podendo o juiz, dele discordando, invocar o art. 28 do Código de Processo Penal. Já frente a um pedido de absolvição, se acolhida a tese, não restaria outra alternativa ao juiz senão a de acolhê-lo. Com isso, se afastaria, por completo, a possibilidade de controle dos atos judiciais pelas instâncias superiores, e – diria – dos atos do Ministério Público, eis que, na prática, ninguém recorreria de tal decisum, ante a evidente falta de interesse (rectius: utilidade).
Esse importante fundamento político, que justifica o duplo grau de jurisdição, a saber a possibilidade da salutar revisão das decisões judiciais, ficaria restrito ao improvável recurso do ofendido, das pessoas relacionadas no art. 31 do CPP ou do assistente da acusação. Ou, ainda, às raras hipóteses nas quais se admite o recurso obrigatório. Na prática, a sentença absolutória repousaria, para sempre, no silêncio de um arquivo, inatingível à instância superior. Aliás, a se privilegiar tal entendimento, se deveria concluir, por coerência, que também o art. 28 do CPP não foi recepcionado pela Constituição. Claro: se o juiz não pode discordar do pedido de absolvição, tampouco poderá apresentar qualquer oposição quando requerido o arquivamento do inquérito policial pela acusação pública.
Também não nos parece correta a argumentação de que, ao condenar, conquanto tenha o Ministério Público pedido a absolvição, estaria o juiz agindo de ofício. Esse entendimento parece altamente contaminado por regras típicas do processo civil, cristalizadas através do velho aforismo ne procedat judex ex officio, onde o interesse em jogo, via de regra, é disponível, podendo a parte dele transigir. Mas, se mesmo no processo civil tal brocardo já perdeu força (cf. art. 130 do Código de Processo Civil), no processo penal ele jamais incidiu com total plenitude. Aqui, ao contrário do processo civil, o juiz não é um mero espectador inerte ou “convidado de pedra”. Ao revés, está comprometido com a busca da verdade real, tanto quanto o Ministério Público, não se satisfazendo, assim, com a mera verdade formal, que basta ao juiz cível.
Alguém dirá que, nas ações penais privadas, não é dado ao juiz condenar sem um pedido expresso do querelante nesse sentido. E, de fato, é assim. Com efeito, nos termos do art. 60, inc. III, do Código de Processo Penal, a ausência de um pedido de condenação, em sede de alegações finais, induz à perempção da queixa-crime, a ser obrigatoriamente reconhecida pelo juiz, impedido que se encontra de condenar o querelado frente a tal circunstância. Ocorre que a ação penal privada repousa em fundamentos totalmente diversos da ação penal pública. Enquanto que nesta última prevalece o interesse público, naquela primeira conta apenas a manifestação de vontade do ofendido que, segundo critérios de conveniência e oportunidade, pode deflagrar – ou não - o respectivo processo-crime. Nas ações penais privadas o Estado coloca à disposição da vítima o armamento para que, se assim o desejar, ela possa utilizá-lo. Esse armamento consiste no Código Penal e na legislação extravagante que contempla a ocorrência de um crime. Se a vítima vai empregá-lo é algo que fica restrito ao âmbito de sua discricionariedade, sem que se cogite de qualquer influência externa. Por isso mesmo que, nessa espécie de ação, há a possibilidade de renúncia e perdão, institutos desconhecidos na ação penal pública.
Daí se concluir como perfeitamente cabível a condenação do réu mesmo frente a um pedido de absolvição formulado pelo Ministério Público, única conclusão, aliás, que se coaduna com a literalidade do texto legal. Resta ao parquet, não se conformando com a condenação, recorrer em favor do réu, em postura, hoje, tranquilamente admitida pela doutrina e jurisprudência.