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Criminalização do assédio moral no ambiente de trabalho.

Uma leitura crítica do Projeto de Lei 4.742/2001

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5 – Da criminalização do assédio moral – o Projeto de Lei 4.742/2001

Em 2001 o então Deputado Marcos de Jesus (PL/PE) apresentou o Projeto de Lei 4.742/2001 com o objetivo de tipificar criminalmente a conduta do assédio moral no trabalho, por entender que a prática, naturalmente caracterizada como ilícita e dolosa, ultrapassa a esfera apenas da reparação cível, exigindo reprimenda de natureza penal. O projeto recebeu emenda substitutiva do relator e está em mesa para votação desde 2005.  O Deputado Marcos de Jesus não foi reeleito em 2006, muito embora a proposta tenha recebido coro de apoio de outros parlamentares que entendem a sua pertinência.

A Constituição Federal de 1988 ampliou o universo dos direitos individuais, consagrando, a tutela dos direitos subjetivos, a dignidade, a honra, a imagem e assim o Direito Civil reconhece em seus dispositivos que se alguém causa dano a outrem, mesmo que de cunho moral, comete ato ilícito (art. 186) e por tal, deverá reparar seu ato através de indenização.

A Consolidação das Leis do Trabalho, ainda que não preveja em seus dispositivos o assédio moral, não tem impedido que as Cortes Especializadas, aplicando subsidiariamente o Direito Civil, venham reconhecendo a prática como razão para ruptura justificada do contrato de trabalho, além daquelas enumeradas no art. 483 do texto consolidado e indenização decorrente, embora não seja esse o tema central dessa incursão.

Analisando a conduta do assédio moral, situa-se a discussão sob a ótica do Direito Penal, enquanto ato ilícito doloso (antijurídico e intencional), faltando-lhe apenas a definição em tipo penal específico (art. 5º, XXXIX da Constituição Federal e artigo 1º do Código Penal). Este seria o propósito do Projeto de Lei 4.742/2001 que tem a pretensão de tipificar a conduta do assédio moral e definir-lhe a pena compatível, apresentado originalmente com a seguinte redação:

Art. 146A. Desqualificar, reiteradamente, por meio de palavras, gestos ou atitudes, a auto-estima, a segurança ou a imagem do servidor público ou empregado em razão de vínculo hierárquico, funcional ou laboral.

Pena: Detenção de 3 (três) meses a um ano e multa.

A primeira versão apresentada pelo autor do projeto pretendia inserir tal conduta na seção do Código Penal que trata dos crimes contra a liberdade pessoal (Título II, Capítulo VI, Seção I), com pena abrandada. Não obstante, durante a tramitação o projeto sofreu emenda do relator, com vista a tipificar a conduta no capítulo anterior (capítulo III – Periclitação da Vida e da Saúde), com pena mais grave e adequação da conduta à sistemática do Código. Contudo, a redação sofreu modificação que não eliminou os defeitos originais do texto, mas ao contrário, inseriu outros defeitos que tornaram a matéria imprestável sob o nosso ponto de vista.

Conforme Hirigoyen (2011, pg. 165):

Tal qual o assalto à mão armada ou o estupro, o assédio moral constitui incontestavelmente um traumatismo. Em psicanálise, o traumatismo inclui um acontecimento intenso eventualmente repetido na vida da pessoa, a incapacidade na qual a pessoa se encontra de reagir de maneira adequada e os efeitos duradouros que este trauma provoca sobre o psiquismo. [...]

Os quadros traumáticos de maior gravidade, conforme Hirigoyen (2011) são perceptíveis nos casos de assédio em que a vitima se vê isolada, indefesa, acuada. Forma-se então, de acordo com a Classificação Internacional das Doenças Mentais, o estado de estresse pós-traumático, que evidencia que o quadro psíquico da vítima do assédio será o mesmo qualquer que seja a origem do traumatismo.

Entende-se que talvez seja esse o viés adotado pelo ilustre relator ao propor a adequada inclusão do dispositivo na lei penal, no rol dos delitos mais graves (periclitação da vida e da saúde). Tal situação, entretanto, não é de relevância, pois apenas elevaria o quantitativo da pena, desde que pudesse ser mantida a redação original do dispositivo na descrição do fato típico e no alcance da pena proposta, o que satisfaz, em primeiro momento, a técnica legislativa e jurídica da conceituação do crime. Mera adequação por similaridade de conceitos que não interfere no sentido objetivo da norma.    

O que causa certo desconforto na tramitação do projeto, no entanto, é a sua equivocada redação, onde, pelo que se percebe, não aprofundou o nobre deputado autor da proposta quanto a ocorrência que pretende inibir. Foi destacado com  grifos o que se entende ser a primeira incongruência da proposta:

Art. 146A. Desqualificar, reiteradamente, por meio de palavras, gestos ou atitudes, a auto-estima, a segurança ou a imagem do servidor público ou empregado em razão de vínculo hierárquico, funcional ou laboral.

Pena: Detenção de 3 (três) meses a um ano e multa.

Já em sua justificação, valendo-se, talvez de dados estatísticos, o parlamentar, autor da matéria, aponta pessoas que sofreram agravos em sua saúde física e psíquica, de fundo emocional, causado pelo comportamento de seus chefes. Desconsideram-se as condições desfavoráveis do ambiente do trabalho quando essas são motivadas pelos pares, como se tais agressões, quando partidas de pessoas do mesmo nível pudessem ser permitidas.  

Ainda em conformidade com a Exposição de Motivos do Projeto de Lei, diz o deputado autor que em estudos realizados pela médica Margarida Barreto da Universidade Católica de São Paulo, ela constatou em suas consultas realizadas em sindicatos que os pacientes expostos ao assédio sofriam de dores generalizadas, aumento de pressão arterial, entre outras patologias e infindáveis sofrimentos físicos e emocionais. Nada que evidenciasse que o assédio advém da subordinação hierárquica, portanto, mas de uma agressão reiterada sofrida em ambiente laboral.

Evidente que a circunstância do art. 146A, como descrito na redação original do Projeto de Lei 4.742/2001, não poderá atender ao novo tipo penal proposto de forma a inibir a prática, porquanto a conduta de assédio moral não necessariamente poderá advir de alguém que detenha a autoridade, guarda ou exerça vigilância sobre a vítima. O assédio poderá partir de colegas de trabalho do mesmo nível ou de outros departamentos que não o da vítima. Enfim, é um tipo penal que tem seus nuances próprios e que não foi tratado com rigor na elaboração da proposição de lei.

Quem afirma que tais ocorrências advenham apenas da relação de subordinação hierárquica, funcional ou laboral, decerto ignora o ambiente de trabalho no seu todo e as suas outras interferências e relações complexas com outros atores que dele fazem parte.

Sem atentar a esse particular, após passar pela Comissão de Constituição e Justiça e Redação da Câmara Federal o relator, o então Deputado Aldir Cabral (PFL/RJ), manifestou pela constitucionalidade, boa técnica legislativa e pela aprovação do Projeto de Lei 4.742/2001, mas apresentou emenda substitutiva que adequou o tipo penal à estrutura do Código, redimensionou a pena e modificou a redação do dispositivo como vimos, de modo que se aumentou a pena de detenção e suprimiu a sanção reparadora (multa) constante na proposta original que passou a tramitar sob a numeração PL 4.742A/2001.

Restou desta forma a emenda substitutiva do ilustre Relator:

Art. 136-A. Depreciar, de qualquer forma e reiteradamente a imagem ou o desempenho de servidor público ou empregado, em razão de subordinação hierárquica funcional ou laboral, sem justa causa, ou tratá-lo com rigor excessivo, colocando em risco ou afetando sua saúde física ou psíquica.

Pena – detenção de um a dois anos.

Justificou a apresentação da emenda sob alegação de que a técnica legislativa no texto original deixava a desejar, por incluir no tipo condutas que se enquadrariam em outros delitos, como os crimes contra a honra, a injúria e difamação. Diante disso, e seguido pelos demais membros da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, na sessão de 06.12.2001, decidiu-se que a conduta do assédio moral melhor ser encaixaria no capítulo que trata dos crimes de periclitação da vida e saúde, logo após o crime de maus tratos, sugerindo acrescer assim o art. 136-A no Código Penal.

Todavia, a redação do novo dispositivo não corrigiu a deficiência do texto original e inseriu nova incongruência, ressaltada com nosso grifo:

Art. 136-A. Depreciar, de qualquer forma e reiteradamente a imagem ou o desempenho de servidor público ou empregado, em razão de subordinação hierárquica funcional ou laboral, sem justa causa, ou tratá-lo com rigor excessivo, colocando em risco ou afetando sua saúde física ou psíquica.

Pena – detenção de um a dois anos.

O acréscimo da expressão “sem justa causa” é um despautério que  compromete a qualidade jurídica da norma.

5.1 – Defeitos conceituais do PL 4.742/2001

Equivoca-se o Ilustre Relator, ao limitar a definição de Assédio Moral apenas e tão somente aqueles que advêm da relação de subordinação hierárquica, funcional ou laboral no universo do trabalho. Tal equívoco adveio da redação original da proposta, foi mantida no substitutivo, implicando em uma redação conflituosa e inútil, que acaba por excluir do alcance legal o cometimento de infrações por parceiros de idêntico nível funcional, ou mesmo de nível inferior ao da vítima na estrutura de trabalho, e que direta ou indiretamente possam causar o transtorno que se quer tipificar.

 Entender o assédio moral apenas como ato de abuso de poder é restringir o alcance da norma a níveis perigosos de ineficácia e impunidade.

Ainda na esteira da leitura linear do texto, torna-se despropositada a excludente de ilicitude ali justaposta  “sem justa causa”  (que não constava do texto original e fora acrescida pelo relator), como a legitimar eventual ocorrência que se pratique por “justa causa”. Aos olhos de quem e sob quais critérios se estabelece a justa causa para afetar a saúde psíquica de outrem?

O assédio, por definição, é antijurídico, portanto, injusto. Não há, por princípio, crime que possa ser justo, embora se possa ter a descriminalização da conduta por excludentes de ilicitude já tratados na parte geral da Lei Penal, numerus clausus, sem que se aceite conjecturas ou ilações nas disposições da parte especial do Código. Não há como justificar a imposição de sofrimento psíquico ao obreiro como algo justo.

Diante do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, não há nada que justifique (no sentido de tornar justo) o desrespeito ou a ofensa ao direito de outrem. Desta forma, a proposição do texto legal como apresentado pelo relator, padece de falta de precisão e qualidade linguística que, caso venha a ser aprovado no teor que se encontra, compromete o alcance da norma e as razões sociais que a motivam.

Noutro vértice, considerando tanto os danos físicos quanto psicológicos que o assédio moral acarreta na vida do trabalhador, surge a discussão se para o tipo criminal sugerido no Projeto de Lei 4.742-A/2001 a pena, detenção de um a dois anos, ali cominada seria suficiente para coibir a prática do assédio moral no ambiente de trabalho, pelo caráter pedagógico da sanção.  Afasta-se, por ora de tal discussão, por não ser o tema da incursão.

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6 – Considerações Finais:

A seriedade do tema Assédio Moral no Ambiente de Trabalho, em razão das consequências funestas de sua prática, está a exigir do legislador atenção e critério ao propor medidas jurídicas que possam conter o ilícito ou inibir a sua atividade nefasta.

A inclusão da conduta no rol das práticas sociais passíveis de punição pela lei penal é uma iniciativa viável de tratar o problema, já que particulariza a sanção, não mais aplicada ao empregador apenas, mas também ao agente, de maneira pedagógica e inibidora, no universo da culpabilidade subjetiva e pode resultar em um avanço no trato da questão da ambiência saudável do local de trabalho.

Todavia, a equivocada redação do Projeto de Lei 4.7642A/2001 que, se já apresentava incongruências formais no seu texto original, tornou-se ainda mais esconsa após a emenda substitutiva apresentada pelo relator, poderá resultar na inserção em nosso ordenamento jurídico de uma norma inadequada ao fim a que se propõe. Quer pela  consideração única da relação de subordinação, o que não é suficiente, quer pela inexplicável justificativa para a conduta, que pode ser considerada  uma excludente de ilicitude, além daqueles já previstas na Parte Geral do Código Penal, trazendo em si uma inovação na redação jurídica contrária à boa técnica legislativa.

A delimitação do agente da conduta,  que restou focada exclusivamente no superior hierárquico como forma de abuso de poder, inadmite eventual prática pelos pares ou até mesmo pelos subordinados ou agregados do ambiente de trabalho.

O que se espera que as Casas Legislativas atentem para a ocorrência e possam, a tempo, corrigir tais equívocos.


REFERÊNCIAS

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BRASIL, Congresso. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n° 4.742-A/2001. Introduz art. 146-A no Código Penal Brasileiro – Decreto Lei n° 2.848, de 7 de dezembro de 1940 -, dispondo sobre o crime de assédio moral no trabalho. Diário da Câmara dos Deputados, ed. 22/02/2002 – pg. 749-751.

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CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal – Volume I – Parte Geral – 15ª. edição. São Paulo: Saraiva, 2011

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Sobre os autores
Israel Quirino

Advogado, professor de Direito Constitucional; Mestre em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local. Especialista em Administração Pública. Escritor membro efetivo da Academia de Letras Ciências e Artes Brasil.

Flávia Lays de Souza

Bacharel em Direito pela Unipac; Servidora Pública do Tribunal de Justiça de Minas Gerais

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

QUIRINO, Israel ; SOUZA, Flávia Lays. Criminalização do assédio moral no ambiente de trabalho.: Uma leitura crítica do Projeto de Lei 4.742/2001. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4501, 28 out. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/35341. Acesso em: 22 dez. 2024.

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