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O dever de mitigar o prejuízo (duty to mitigate the loss) e a responsabilidade civil do Estado

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04/11/2016 às 12:04
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IV - A aplicação do dever de mitigar o prejuízo na defesa do Estado: uma decorrência da prerrogativa da independência funcional.

A responsabilidade civil do Estado prevista nos arts. 37, §6º, da CR e no art. 43 do Código Civil tem natureza extracontratual[40].

Art. 37, § 6º, da CR - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

Art. 43 do CC/2002. As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo.

A teoria do dever de mitigar o prejuízo, embora seja muito discutida no direito brasileiro na esfera contratual, pode plenamente ser aplicada para a responsabilidade extracontratual, pois decorre do princípio da boa-fé objetiva e da teoria do abuso de direito.

Na defesa do Estado, o tema ganha enorme projeção porque inúmeras serão as repercussões possíveis em sede de demandas de reparação. Basta pensar no simples exemplo de o Estado ser demandado eventualmente pelo fato de um médico, servidor público estadual, por um determinado erro no procedimento, causar uma lesão em determinado paciente. O tratamento para a vítima recomendado por outra equipe médica não foi seguido pelo paciente o que agravou a lesão e evitou, eventualmente, uma cura possível. Neste exemplo singelo, seria perfeitamente possível, em sede de defesa estatal, sustentar que houve quebra do dever legal de cooperação, dever anexo decorrente da boa-fé objetiva, para diminuir eventual indenização a ser paga pelo Estado.

O princípio da boa-fé objetiva é perfeitamente aplicável em sede de responsabilidade civil do Estado. Aliás, a própria exposição de motivos do Código Civil de 2002 expõe a inexistência de separação absoluta entre o direito público e o direito privado. Há, em verdade, dinamismo e complementaridade:

“20. Finalmente, não posso deixar sem reparo a manutenção no Código Civil dos dispositivos referentes às pessoas e bens públicos.

Não há razão para considerar incabível a disciplina dessa matéria no âmbito da Lei Civil. Não se trata de apego a uma concepção privatista do Direito Administrativo, que está bem longe das conhecidas posições do autor desta Exposição, mas reflete, antes de mais nada, a compreensão da Filosofia e Teoria Geral do Direito contemporâneo, as quais mantêm a distinção entre direito Público e Privado como duas perspectivas ordenadoras da experiência jurídica, considerando-os distintos, mas substancialmente complementares e até mesmo dinamicamente reversíveis, e não duas categorias absolutas e estanques.

Abstração feita, porém, desse pressuposto de ordem teórica, há que considerar outras razões não menos relevantes, que me limito a sumariar. A permanência dessa matéria no Código Civil, além de obedecer à linha tradicional de nosso Direito, explica-se:”[41] (grifo nosso)

Sobre o tema, Antônio Junqueira de Azevedo também emitiu parecer a corroborar essa tese:

27. A boa-fé objetiva, portanto, não somente como cânone hermêutico, mas também como limite ao exercício de posições subjetivas (direitos, faculdades, poderes, pretensões e ações), evitando seu uso anormal, vigora no campo do Direito Administrativo e no campo do Direito Tributário. O tema mereceu estudo do Professor Jesús González Pérez, em monografia específica (de 1983) sobre o princípio da boa-fé no Direito Administrativo e foi objeto de painel especial nas Jornadas da Associação Henri Capitant, de 1992. Todo sujeito de direito deve agir conforme a boa-fé objetiva, seja pessoa natural ou jurídica, seja pessoa de direito privado ou de direito público, seja, enfim, mero órgão da administração[42].

Somente é possível pensar em inovações em matéria de defesa por parte dos Procuradores do Estado com a prerrogativa indissociável da independência funcional e a garantia de não ser constrangido em sua atuação por qualquer esfera de poder.

Em Pernambuco, constata-se que o art. 29, I, da Lei Complementar estadual 02/90 permite uma defesa plena do Estado em questões dessa natureza:

Art. 29 - São prerrogativas dos Procuradores do Estado:

I - não ser constrangido, por qualquer modo ou forma, a agir em desconformidade com a sua consciência ético-profissional; (...)

Somente com a independência funcional, o Procurador do Estado pode realizar uma efetiva defesa do Estado e inovar em matéria de defesa.


V - Conclusões

1. O dever de mitigar o prejuízo (duty to mitigate the loss) aplica-se ao direito brasileiro como decorrência do princípio da boa-fé objetiva e da teoria do abuso de direito.           Há uma imposição de atuação por parte do credor. A inércia e posterior exigência de reparação da totalidade do dano quando no caso concreto é possível evitar o incremento lesivo configura abuso de direito em sede de responsabilidade civil por violação do dever anexo de colaboração. 

2. Embora comumente tenha sido aplicado à responsabilidade contratual, é perfeitamente possível a utilização da teoria para a responsabilidade extracontratual. O art. 187 do CC/02 conceitua o ilícito do abuso de direito, a base do duty to mitigate the loss no direito brasileiro. Ao se interpretar o dispositivo em conjunto com o art. 927, caput, do CC/02, percebe-se ser perfeitamente possível a extensão da aplicação da teoria para a responsabilidade extracontratual.

3. O dever de mitigar o prejuízo é uma importante ferramenta na defesa do Estado em sede de responsabilidade extracontratual por ampliar de maneira significativa a possibilidade de redução das indenizações.

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VI - Referências Bibliográficas

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Sobre o autor
Silvano José Gomes Flumignan

Doutorando em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Visiting reseacher (University of Ottawa). Procurador do Estado de Pernambuco. Graduação em Direito pela faculdade de Direito da USP. Professor Universitário. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Civil, Processual Civil, Consumidor e Empresarial.<br>email: [email protected]<br>Twitter: @silvanoflumigna

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FLUMIGNAN, Silvano José Gomes. O dever de mitigar o prejuízo (duty to mitigate the loss) e a responsabilidade civil do Estado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4874, 4 nov. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/35654. Acesso em: 26 abr. 2024.

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