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Benefício de prestação continuada a estrangeiros residentes no país:

tendências do judiciário para concessão ou não do benefício

24/08/2016 às 16:31
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Embora haja opiniões divergentes, a jurisprudência tem caminhado no sentido de amparar os estrangeiros, com base no princípio da dignidade da pessoa humana.

Resumo: O Benefício de Prestação Continuada é um meio de proteger pessoas maiores de sessenta e cinco anos de idade ou portadoras de deficiência que não possuam condições de se sustentar ou que não tenham sua manutenção provida por sua família, requisitos que se somam ao pressuposto de renda familiar “per capita” inferior a ¼ do salário mínimo. A discussão que se estabelece se resume ao estrangeiro. Regularmente residente no país, poderia ele receber o Benefício de Prestação Continuada da LOAS, já que não há previsão legal para essa hipótese?

palavras-chave: Benefício de Prestação Continuada. Estrangeiro. LOAS. Amparo assistencial


1 INTRODUÇÃO

O presente estudo aborda os argumentos favoráveis e desfavoráveis para a concessão do Benefício de Prestação Continuada a estrangeiros regularmente residentes no país.

Com o objetivo de demonstrar os principais fundamentos para o deferimento ou indeferimento do amparo assistencial a estrangeiros, este artigo traz decisões recentes dos tribunais brasileiros, de modo a permitir livre conclusão sobre o tema.

As ponderações a seguir são muito importantes, pois há muitos estrangeiros que fixam domicílio no país e que se encontram em estado de necessidade, idosos ou deficientes, que por não terem conseguido se naturalizar brasileiros, acabam desprotegidos pelo sistema de assistência social.

Tamanha a relevância e a quantidade de casos do gênero, que o Supremo Tribunal Federal reconheceu repercussão geral sobre o tema, do qual ainda se aguarda a decisão de mérito.

Ao final do presente estudo, será possível decidir se os estrangeiros regularmente residentes no Brasil podem receber o Benefício de Prestação Continuada.


2 Benefício de Prestação Continuada

2.1 Origem

O Benefício de Prestação Continuada ou amparo assistencial, popularmente chamado de LOAS, surgiu como a Renda Mensal Vitalícia (RMV), que foi criada por meio da Lei nº 6.179/74 como benefício previdenciário destinado aos maiores de 70 anos de idade ou inválidos, com incapacidade definitiva para o trabalho, que não exercessem atividades remuneradas ou não auferissem rendimento acima de sessenta por cento do valor do salário mínimo. Além disso, não poderiam ser mantidos por pessoas de quem dependiam, nem poderiam ter outro meio de prover o próprio sustento. 

Em 1988, foi promulgada a Constituição Federal, que garante no art. 203, inciso V, um benefício mensal no valor de um salário mínimo à pessoa com deficiência e ao idoso, independente de contribuição à Previdência Social, que não possuam meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, além disso, a renda mensal familiar “per capita” deve ser inferior a ¼ (um quarto) do salário mínimo vigente.

A Renda Mensal Vitalícia, criada no âmbito da previdência social, foi extinta a partir de 01 de janeiro de 1996, quando entrou em vigor a concessão do Benefício de Prestação Continuada. A RMV é um benefício em extinção, mantido apenas para aqueles que já eram beneficiários, com base no pressuposto do direito adquirido.

Atualmente, segundo informação do sítio do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS)[2], a gestão do Benefício de Prestação Continuada é realizada pelo próprio MDS, por intermédio da Secretaria Nacional de Assistência Social (SNAS), que é responsável pela implementação, coordenação, regulação, financiamento, monitoramento e avaliação do Benefício, sendo que a operacionalização é feita pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).

2.2 Conceito

O Benefício de Prestação Continuada é um benefício da Política de Assistência Social, individual, não vitalício e intransferível, que garante a transferência mensal de 1 (um) salário mínimo ao idoso, com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais, e à pessoa com deficiência, de qualquer idade, com impedimentos de longo prazo, de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, que comprovem não possuir meios para prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família.

O BPC integra a Proteção Social Básica no âmbito do Sistema Único de Assistência Social – SUAS e para acessá-lo não é necessário ter contribuído com a Previdência Social.

O Benefício de Prestação Continuada não é aposentadoria nem pensão e não dá direito ao 13º pagamento, não gera pensão nem se transfere a terceiros.

Também pode ser beneficiário do Benefício de Prestação Continuada o brasileiro naturalizado, domiciliado no Brasil, idoso ou com deficiência, observados os critérios estabelecidos na legislação, que não recebe qualquer outro benefício no âmbito da Seguridade Social ou de outro regime, nacional ou estrangeiro, salvo o da assistência médica e no caso de recebimento de pensão especial de natureza indenizatória.

O Benefício de Prestação Continuada tem como um de seus objetivos e princípios o enfrentamento da pobreza e a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (incisos I e III do art. 3º da Constituição Federal), por meio da garantia dos mínimos sociais. E sua natureza jurídica não impede o beneficiário de receber assistência médica no âmbito da Seguridade Social.

 O benefício da prestação continuada tem como principal escopo a minimização das diferenças sociais, das quais são principalmente acometidos os deficientes físicos e os idosos.

O BPC não pode ser acumulado com outro benefício no âmbito da Seguridade Social (como, por exemplo, o desemprego" data-type="category">seguro desemprego, a aposentadoria e a pensão) ou de outro regime, exceto com benefícios da assistência médica, pensões especiais de natureza indenizatória e a remuneração advinda de contrato de aprendizagem.

O Benefício de Prestação Continuada de uma pessoa idosa NÃO entra no cálculo da renda mensal familiar para concessão do benefício a outro idoso da mesma família, de acordo com o Estatuto do Idoso, Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003, diferentemente do que ocorre com o benefício em caso de deficiência, cujo rendimento é considerado na renda mensal familiar.

2.3 Benefício de Prestação Continuada para estrangeiros

Atualmente há inúmeras discussões sobre a possibilidade de conceder o Benefício de Prestação Continuada a estrangeiros legalmente residentes no país. A Lei nº 8.742/93 (Lei da Organização da Assistência Social), cuja redação de seu art. 1º, garante ao “cidadão” o direito à assistência social:

Art. 1º A assistência social, direito do cidadão e dever do Estado, é Política de Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas.

Considerando que cidadão é todo brasileiro, nato ou naturalizado, detentor de direitos políticos, pela interpretação literal do texto, os estrangeiros estariam excluídos do direito à assistência social.

Conforme bem analisado por Geandré Gomides[3], a própria Constituição Federal prevê expressamente várias restrições ao estrangeiro, como a impossibilidade de se alistar como eleitor; restrições ao exercício de cargos, empregos e funções públicas; exigências diferenciadas no processo de adoção, sendo que a não percepção do Benefício de Prestação Continuada  - LOAS seria apenas mais uma restrição.

Observa, ainda, que o texto do Decreto nº 6.214/07, que regulamenta a LOAS, prevê expressamente que o Benefício de Prestação Continuada se destina a brasileiro, naturalizado ou nato, ou seja, os estrangeiros estariam excluídos:

Art. 7o  É devido o Benefício de Prestação Continuada ao brasileiro, naturalizado ou nato, que comprove domicílio e residência no Brasil e atenda a todos os demais critérios estabelecidos neste Regulamento.

Utilizando ainda argumentos como o princípio da reserva do possível e perigo de escassez de recurso financeiro para tanto, alega-se que os estrangeiros simplesmente não possuem direito ao Benefício de Prestação Continuada.

Embora haja opiniões tão divergentes, a jurisprudência tem caminhado no sentido de amparar os estrangeiros, com base no princípio da dignidade da pessoa humana, que, num conflito principiológico, deve prevalecer; com fundamento no fato de que os estrangeiros também participam do custeio do sistema, através do consumo de produtos em cujos valores estão embutidos impostos e contribuições sociais. Ademais, trata-se de assegurar o básico para sobreviver, o mínimo existencial daqueles que fixaram domicílio legal e permanente no país.

Em razão de tamanha discussão, o tema teve a repercussão geral reconhecida pelo STF, em 26 de junho de 2009, no Recurso Extraordinário 587.970, que aguarda julgamento.[4] Entretanto, até o presente momento não houve decisão de mérito, sendo que a última decisão interlocutória, emitida em 30 de novembro de 2014, foi o indeferimento ao pedido do Procurador-Geral da República, que pleiteava vista do processo a fim de se pronunciar acerca do mérito da repercussão geral, alegando a “necessidade de uma reflexão contextualizada do tema ante a passagem do tempo entre o reconhecimento da repercussão e os dias atuais”.

Em outros países ocorre a mesma discussão, conforme o professor Fábio Zambitte Ibrahim[5] menciona:

Exemplo interessante na discussão relativa à extensão de benefício assistencial a estrangeiros residentes foi travada na África do Sul. Embora a Corte sul-africana, dentro da praxe internacional, tenha reconhecido sua limitação de análise para ampliação de direitos sociais, entendeu deter competência visando ao atendimento do mínimo existencial.

[...] no tema específico da extensão do benefício assistencial a estrangeiros, desde que residentes, a Corte sul-africana admitiu a extensão, apesar da critica estatal de possível falência do sistema, pois, no caso, não houve provas por parte do Estado do gasto alegado e, ao revés, dados concretos expuseram o contrário. Ademais, a isonomia na concessão deste tipo de prestação é especialmente importante para grupos mais carentes, vulneráveis ao preconceito, além de mostrar-se injustificada a não extensão, pois tais pessoas contribuem para o sistema, ao arcar com tributos diretos e indiretos, assim como os nacionais.

Para o professor Fábio Zambitte Ibrahim, a exclusão de estrangeiros somente poderia ser admitida se a União provasse real perigo de falência do sistema. Sem um verdadeiro perigo de impacto financeiro, não se justifica negar o benefício, principalmente porque se trata de meio para garantir o mínimo existencial a pessoas necessitadas. Observa-se que se trata de “pessoas” antes de “estrangeiros” ou “nacionais”.

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Apesar da discussão sobre a possibilidade ou não de arcar com os custos de proteger o estrangeiro, assegurando-lhe o mínimo existencial, o Judiciário parece sabiamente caminhar ao encontro do princípio da dignidade da pessoa humana. A exemplo disso, há recentíssima decisão, proferida em 10 de dezembro de 2014, pelo juiz federal Carlos Eduardo da Silva Camargo, substituto da 1ª Vara Federal em Jales/SP, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, que concedeu o Benefício de Prestação Continuada a uma idosa apátrida de noventa anos.

A pleiteante buscava receber benefício assistencial, porém, em atendimento na agência do INSS, ao se constatar que a certidão de casamento que possuía em mãos a qualificava como brasileira, porém, ela era nascida no Japão e possuía CPF de estrangeira, o pedido administrativo foi indeferido. Com o indeferimento, a requerente, através do Ministério Público Federal, buscou perante o Judiciário a concessão do Benefício de Prestação Continuada, que foi deferida após a demonstração do preenchimento do requisito de situação financeira precária.

Para o juiz, “a condição de estrangeiro não é fato que impede a percepção do benefício de prestação continuada, vez que o artigo 5º da Constituição Federal assegura ao estrangeiro, residente no país, o gozo dos direitos e garantias individuais em igualdade de condições com o nacional. O mesmo raciocínio, à evidência, deve ser aplicado ao apátrida”. [6]

Para corroborar a tendência do Judiciário, colaciona-se outras decisões no mesmo sentido:

BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. CONCESSÃO A ESTRANGEIRO LEGALMENTE RESIDENTE NO PAÍS. POSSIBILIDADE. A condição de estrangeiro legalmente residente no Brasil não impede a concessão de benefício assistencial ao idoso ou deficiente, pois a Constituição Federal, art. 5º, assegura ao estrangeiro residente no país o gozo dos direitos e garantias individuais em igualdade de condição com o nacional. A concessão do amparo, porém, deve ser afastada se restar demonstrado que o estrangeiro transferiu residência para o Brasil apenas com intuito de auferir o benefício em exame.Incidente conhecido e improvido.[7]


3 CONCLUSÃO

O Benefício de Prestação Continuada – LOAS é um amparo financeiro no valor de um salário mínimo destinado às pessoas maiores de sessenta e cinco anos ou deficientes, desde que não tenham condições de se manter ou que a sua manutenção não seja provida por sua família. Além disso, a renda familiar “per capita” deve ser inferior a vinte e cinco por cento do salário mínimo.

Esse amparo assistencial foi criado para assegurar o mínimo existencial dos brasileiros, natos ou naturalizados, segundo texto legal, porém, muitos estrangeiros legalmente residentes no país têm pleiteado tal benefício, o que passou a gerar inúmeras discussões.Diante de tantos casos semelhantes e de diferentes decisões, foi reconhecida a repercussão geral sobre o tema em 2009, e desde então se aguarda posicionamento definitivo do Supremo Tribunal Federal.

Apesar de argumentos consideráveis, por exemplo, de que os estrangeiros já convivem com outras restrições como não poder se alistar como eleitor, não poder tomar posse de cargos públicos, por exemplo, nada supera o dever da solidariedade, presente no princípio da dignidade da pessoa humana. Como deixar à míngua outro ser humano apenas em razão de sua nacionalidade?


REFERÊNCIAS

<http://www.mds.gov.br/assistenciasocial/beneficiosassistenciais/bpc>. Acesso em: 10 dez. 2014.

GOMIDES, Geandré. Amparo assistencial ao estrangeiro: Recurso com repercussão geral no STF - O que podemos esperar?. Jus Navigandi, Teresina, ano 19, n. 4139, [31] out. [2014]. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/32571>. Acesso em: 14 dez. 2014.

IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de direito previdenciário. 17. Ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2012. Página 24.

<http://web.trf3.jus.br/noticias/Noticias/Noticia/Exibir/321926>. Acesso em: 14 dez. 2014.

TRF-4 - IUJEF: 14089 PR 2007.70.95.014089-0, Relator: RONY FERREIRA. Data de Julgamento: 22/08/2008, TURMA REGIONAL DE UNIFORMIZAÇÃO DA 4ª REGIÃO, Data de Publicação: D.E. 17/09/2008.


Notas

[2] http://www.mds.gov.br/assistenciasocial/beneficiosassistenciais/bpc

[3] GOMIDES, Geandré. Amparo assistencial ao estrangeiro: Recurso com repercussão geral no STF - O que podemos esperar?. Jus Navigandi, Teresina, ano 19, n. 4139, [31] out. [2014]. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/32571>. Acesso em: 19 dez. 2014.

[4] STF. RE 587.970-SP, Rel. Min. Marco Aurélio

[5] Fábio Zambitte Ibrahim, 2012 (página 24).

[6] http://web.trf3.jus.br/noticias/Noticias/Noticia/Exibir/321926

[7] TRF-4 - IUJEF: 14089 PR 2007.70.95.014089-0, Relator: RONY FERREIRA. Data de Julgamento: 22/08/2008, TURMA REGIONAL DE UNIFORMIZAÇÃO DA 4ª REGIÃO, Data de Publicação: D.E. 17/09/2008.

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Sobre a autora
Raquel Miyuki Kanda

[1] Advogada, estudante do curso de pós-graduação “lato sensu” em Direito da Seguridade Social.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

KANDA, Raquel Miyuki. Benefício de prestação continuada a estrangeiros residentes no país:: tendências do judiciário para concessão ou não do benefício. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4802, 24 ago. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/35679. Acesso em: 24 abr. 2024.

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