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Direito Penal de Jakons e Kafka:

Direito penal do inimigo. Possibilidade de aplicação no Estado Democrático de Direito brasileiro. Análise à luz da obra Na Colônia Penal de Franz Kafka

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3.0 BRASIL: ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

  3.1 Estado Democrático de Direito: surgimento e situação legal

Inicialmente é impossível fazer reflexões acerca do Estado Democrático de Direito sem fazer uma análise, mesmo que de maneira concisa, das punições ao longo da história da sociedade. Nem sempre vigorou o chamado Estado Democrático de Direito. Ele foi uma conquista do povo contra os poderes soberanos.

Na Idade Média, por volta do século XIII, o sistema punitivo tinha estreita relação com o poder exercido pela Igreja, e os que adotavam comportamentos contrários aos seus dogmas eram barbaramente mortos. Durante a Santa Inquisição, pessoas foram presas, condenadas e até queimadas em praça pública sob o argumento de atentarem contra a ordem soberana da Igreja Católica e do Direito Canônico.

Os processados durante a inquisição não tinham muitas chances de defesa, sendo que na maioria das vezes nem sabiam o porquê de sua prisão.Aqui não se falava em contraditório, ampla defesa ou em devido processo legal. Neste período surgiu o sistema processual inquisitivo, no qual não havia uma separação das funções processuais de acusação, defesa e julgamento, estavam todas concentradas nas mãos de uma só pessoa, o juiz inquisidor.

Insta observar a obra Na Colônia Penal e perceber, quase doze séculos depois, a descrição da condenação de um homem o qual é levado à sentença sem nenhuma explicação do crime cometido, exatamente como ocorria no século XIII. A ele é dispensado um tratamento humano elevado a condição de objeto. Não possui nome, é identificado apenas como condenado. Desta feita, como a literatura guarda as marcas do seu tempo, é evidente o caráter circunstancial do sistema punitivo, caráter que pode ser confirmado com o ressurgimento, no final do século XX, na ideologia de Jakobs, após a superação do início do mesmo século.

Posteriormente, durante o regime absolutista o poder era concentrado nas mãos do rei e ao povo não eram devidos os direitos fundamentais. Em condições de total submissão e influenciados pelas ideias iluministas advindas no século XVIII, propagadoras de que a razão do poder está no homem e não em Deus, o povo passou a se rebelar contra a concentração do poder.

Cumpre ressaltar que as influências das ideias iluministas atingiram seu ápice na França e como conseqüência deu origem a Revolução Francesa de 1789. Esse momento histórico foi marcado por uma repressão penal violenta, mediante execuções sumárias daqueles que ousaram a subverter o poder soberano.

Após a Revolução Francesa há o nascimento do Constitucionalismo. Esse movimento não tinha como escopo a criação de uma Constituição em cada Estado, uma vez que sempre a tiveram e sempre terão uma lei maior que regerá a ordem social, isso é típico da civilização. A finalidade do Constitucionalismo era fornecer constituições escritas aos Estados, concretizar por meio das letras as leis, a conduta a ser ou não seguida, os deveres e direitos.

Uma consequência das revoluções liberais e do Constitucionalismo foi o surgimento do denominado Estado de Direito, no qual tanto os governantes como os governados deviam obediência às leis. Entretanto, a ideia de Estado de Direito foi desvirtuada durante as Guerras Mundiais e vários judeus foram mortos com base na lei alemã, pois o positivismo pregava total obediência às leis. O ordenamento jurídico era intocável, revestia-se de sacralidade. Kafka, registrando seu tempo, retrata no conto Na Colônia Penal o tratamento dedicado à legislação no período entre Guerras Mundiais, uma vez que foi publicado em 1919. Ela cobria-se de um respeito tão grande que era permitido apenas obedecer sem ousar tocá-la.

Para tanto, transcreve-se um trecho que relata metaforicamente o cuidado  e o valor conferido ao livro, pelo Oficial,  cujo conteúdo trazia as sanções correspondentes a cada crime, pois representava o ordenamento legal:

 [...] – Lá no desenhador ficam as engrenagens que comandam o movimento do rastelo; elas estão dispostas segundo o desenho que acompanha o teor da sentença. Eu ainda uso os desenhos do antigo comandante. Aqui estão eles - puxou algumas folhas da carteira de couro – mas infelizmente não posso pôr na sua mão, são a coisa mais preciosa que tenho. Sente-se, eu os mostro ao senhor desta distância, assim poderá ver tudo bem (KAFKA, 1986, p. 46).

O passo seguinte foi, diante da insatisfação do período de Guerras, diferenciar lei vigente de lei válida. Percebeu-se acima das leis valores que devem ser considerados e obedecidos. Dessa forma, após a Segunda Guerra Mundial surge um aspecto novo ao Estado de Direito, o caráter Democrático, surgindo o Estado Democrático de Direito. Nele todos, governantes e governados, devem obediência às leis, porém ao cria-las devem atender os valores de igualdade, liberdade e, principalmente, a dignidade da pessoa humana.

Hoje, no artigo que inaugura a lei Magna brasileira, o legislador constituinte   prescreve que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito. Ainda acrescenta como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana, a que é um dos  fundamentos mais importante, já que se propaga por todo o ordenamento, sendo seu traço marcante. A importância dada aos direitos humanos fez a doutrina moderna defender a existência de um Estado Democrático e Humanitário de Direito.

3.2 Sistema Punitivo Democrático

As constituições democráticas, objetivando reprimir as atrocidades dos governos que circundaram as duas Grandes Guerras, estabeleceram, em sua essência, direitos e garantias a todos os cidadãos e criaram mecanismos de auto-limitação.

Os direitos e garantias foram concedidos para que a sociedade, nos momentos de paixões e fraquezas, não se deixassem submeter a um sistema punitivista desenfreado, evitando assim a legitimação de um direito penal pautado no simbolismo e na antecipação de juízos de culpabilidade.

Dentro desse cenário a todos foi concedido o direito a um rol mínimo de liberdades. Essas estão estabelecidas na Constituição que torna o Brasil um Estado de Direito e são elementos legitimadores do sistema punitivo democrático.

A legalidade do ordenamento jurídico penal tem por base a Constituição Democrática brasileira. A lei Maior orienta a técnica legislativa, uma vez que vincula o legislador na formulação das regras que prescreverão as condutas puníveis.

A finalidade de uma lei no topo da pirâmide de Kelsen (Constituição Federal) é servir de parâmetro e evitar a tipificação de condutas penais por meio de normas que não estejam, por exemplo, relacionadas a fatos, mas à pessoas, “ como as normas que, em terríveis ordenamentos passados, perseguiam as bruxas, os hereges, os judeus, os subversivos e os inimigos do povo; como as que ainda existem em nosso ordenamento, que perseguem “desocupados” e os “vagabundos”, os “propensos a delinquir (...)”.(FERRAJOLI, 2002, p. 21)

Neste sentido é que se tem como inadmissível, em um sistema punitivo democrático, a existência de tipos penais que descrevam ações tendentes a punir os que supõe ser, real ou potencialmente, perigosos para a hierarquização social.

A criação de condutas puníveis fundamentadas na potencial ameaça que um indivíduo aparenta à sociedade permite a discriminações justificadas em característica pessoais do agente e “enterram” a igualdade, o respeito, a fraternidade, enfim todo o rol estabelecido no artigo 5° da Constituição do Estado Democrático de Direito brasileiro.

Ao permitir ao juiz analisar as qualidades do agente e não o crime que cometeu, para  subsumi-lo no tipo penal e aplicar-lhe a pena, transforma-se o processo penal em um instrumento de análises subjetivas, arbitrário e inimigo da humanidade. Assim, o Estado tornando-se arbitrário retira a humanidade dos indivíduos, seleciona quem são os inimigos do Estado, viola o Estado Democrático de Direito instituído pela República Federativa do Brasil.

 As hipóteses acusatórias devem ser passíveis de verificação e de exposição à refutação em respeito à ampla defesa e ao contraditório. Dessa maneira, somente poder-se-ia falar em imposição de pena a um fato descrito e reconhecido em lei como delituoso, se este fosse passível de comprovação, através da produção de provas e contraprovas, não em suposições e cogitações por demais imparciais.

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O cerceamento da produção de provas é incompatível com o sistema atual e com o próprio sentido da democracia. É típico de período marcado por um sistema penitenciário cruel como a colônia (sistema prisional) da obra Na Colônia Penal de Kafka, entendimento que se confirma no trecho abaixo selecionado;

[...] – Então até agora o homem ainda não sabe como foi acolhida sua defesa?

- Ele não teve oportunidade de se defender, disse oficial, olhando de lado como se falasse consigo mesmo e não quisesse envergonhar o explorador com o relato de coisas que lhe eram tão óbvias. (KAFKA, 1986, p.40)

Além do exposto, cumpre observar que um Estado detentor de um sistema punitivo harmônico com os direitos e garantias fundamentais são de interesse de toda a sociedade brasileira, tanto dos "mocinhos" como dos "bandidos" e reafirma seu papel democrático. Salo de Carvalho ratificando esse entendimento dispõe que:

A garantia desses direitos correspondem a pré-condições de convivência, sendo que sua lesão por parte do Estado justificaria o dissenso, a resistência e a guerra civil. O que nos parece relevante sublinhar é o fato de que todas as pessoas, independentemente de incorrerem ou não em sanção penal preservam e devem ter garantidas igualmente condições mínimas de dignidade. O garantimos penal é um instrumento de salvaguarda de todos, desviantes ou não, visto que, em sendo estereótipo de racionalidade, tem o escopo de minimizar a violência e garantir a paz (CARVALHO, 2001, p. 99).

Neste sentido, o sistema punitivo democrático foi o escolhido pela Constituição Federal de 1988, quando instituiu o Brasil como Estado Democrático de Direito e conferiu uma série de garantias aos indivíduos. Essas foram revestidas de respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento maior da nação brasileira.

3.3 O Direito Penal do Inimigo e os direitos e princípios do Estado Democrático de Direito

Consoante exposto anteriormente o Estado Democrático de Direito apresenta um rol de direitos e princípios concedidos na Lei Maior do país, portando, de observância obrigatória. Abaixo será confrontado com a Teoria do Direito Penal do inimigo fazendo um paralelo.

A presunção de inocência ou de não culpabilidade impede a imposição das consequências jurídicas, estipuladas para determinado tipo penal, ao acusado ou investigado, antes da sentença criminal transitada em julgado. Nessa linha o Direito Penal do Inimigo resultaria na criação de crimes de mera suspeita ao estabelecer grupos de risco que representam ameaça à sociedade, sem necessitar do início de qualquer ação, pois há uma presunção de que haverá um ataque no futuro.

Já o contraditório e a ampla defesa conferem ao acusado, respectivamente, o direito de ser informado de todos os fatos a ele imputados, bem como de todos os atos judicialmente praticados pela parte adversa no processo, e de poder contra-atacar com os argumentos que considerar necessários. Na proposta de Jakobs o direito de defesa e de contraditório do inimigo sofre uma relativização, pois o homem que não cumpre às leis não deve dela desfrutar.

 A igualdade é um princípio básico para a criação de uma democracia. A Constituição de um Estado Democrático de Direito deve assegurar a igualdade, a fim de que seja resguardado um tratamento igualitário na elaboração de uma lei para situações idênticas. Por outro lado, Jakobs vislumbra a necessidade de coexistir dois direitos penais, do cidadão e do inimigo, gerando uma desigualdade perante a lei de uns e outros.

Seguindo os princípios constitucionais democráticos, sob a ótica penal, acrescenta-se a razoabilidade e a proporcionalidade. Esses visam não só impedir o emprego imoderado das sanções que privam ou limitam a liberdade do homem, mas também restringir o uso das penas dentro do necessário a reprovação e da retribuição. Assim, a periculosidade  anterior ao cometimento de um fato delituoso – e o recrudescimento das sanções presentes na teoria do Direito Penal do Inimigo é incompatível com as noções de proporcionalidade e razoabilidade.

Assinale, ainda, que o princípio da dignidade da pessoa humana é o valor supremo da sociedade. Ele agrega todos os direitos fundamentais dos cidadãos, além de ser intrínseca a condição humana, e confere respeito à pessoa como um valor em si.Portanto, concedendo, ao “inimigo”, a condição de não pessoa, o Direito Penal do Jakobs viola não apenas o princípio da dignidade da pessoa humana, como também  a Constituição brasileira e o ordenamento jurídico brasileiro.

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Sobre o autor
Thatiana Katiussia de Sousa Veras

Advogada, Especialista em Direito Civil e Processo Civil, Membro do Tribunal de Justiça Desportiva-TJDPI e Membro da Comissão de Defesa das Prerrogativa do Advogado-CDPA. <br>

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VERAS, Thatiana Katiussia Sousa. Direito Penal de Jakons e Kafka:: Direito penal do inimigo. Possibilidade de aplicação no Estado Democrático de Direito brasileiro. Análise à luz da obra Na Colônia Penal de Franz Kafka. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4802, 24 ago. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/35693. Acesso em: 22 dez. 2024.

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