Comentários à Emenda Constitucional n. 66: subsiste no ordenamento jurídico brasileiro o instituto da separação jurídica?

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22/01/2015 às 19:56
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O presente artigo pretende tecer comentários à Emenda Constitucional n. 66, especificamente quanto aos seus efeitos sobre instituto da separação jurídica no ordenamento jurídico brasileiro.

Resumo:

O presente artigo pretende tecer comentários à Emenda Constitucional n. 66, especificamente quanto aos seus efeitos sobre instituto da separação jurídica[2] no ordenamento jurídico brasileiro. Com a entrada em vigor da Emenda Constitucional n. 66, de 13 de julho de 2010, alterando significativamente o artigo 226, § 6º da Constituição da República, surgiu o seguinte questionamento: Após a Emenda Constitucional n. 66, subsiste no ordenamento jurídico brasileiro o instituto da separação jurídica? Há sobre o tema profunda discussão na doutrina, não sendo possível definir a posição prevalente, sobretudo porque não há, ainda, posicionamento dos tribunais superiores, em razão da alteração constitucional ser recente.

Palavras-chave: Emenda Constitucional n. 66, Divórcio, Separação Jurídica, Separação de direito. Separação Judicial.

  1. Introdução

Em 13 de julho de 2010, a Constituição da República foi alterada pela Emenda Constitucional n. 66, que suprimiu a parte final do artigo 226, § 6º, suscitando, assim, inúmeras controvérsias na doutrina.

Ao aprofundar o tema em livros e artigos jurídicos, percebeu-se profunda controvérsia no que tange a manutenção ou não da separação jurídica no ordenamento pátrio, que é a premissa de inúmeras outras discussões, inclusive na seara processual.

Pode-se, no entanto, considerar pacífico que, com a nova redação do artigo 226, § 6º da Constituição da República, não mais subsiste o requisito temporal da prévia separação jurídica para viabilizar o pedido de divórcio.

O que tem gerado profundos questionamentos doutrinários diz respeito a permanência ou não do instituto da separação de direito no ordenamento jurídico brasileiro.

Nota-se quanto ao tema, a formação de duas correntes antagônicas na doutrina.

A primeira corrente sustenta que a Emenda Constitucional n. 66 extinguiu o instituto da separação jurídica, em razão da ausência deliberada de previsão no texto constitucional e da não recepção das leis infraconstitucionais sobre o tema.

A segunda corrente defende a permanência do instituto da separação jurídica, em que pese não haver mais previsão expressa no texto constitucional em razão da Emenda Constitucional n. 66 de 2010.

Mostra-se prematuro qualquer estudo jurisprudencial a respeito do tema, eis que a questão ainda está limitada a poucas decisões de tribunais inferiores, desprovidos que são de um caráter uniforme e nacional.

O presente artigo tem por escopo compilar os posicionamentos doutrinários sobre o tema, de forma crítica e, demonstrar que, apesar da profunda controvérsia, não há mais espaço no ordenamento jurídico para a separação jurídica. Parte-se, portanto, da premissa de que Emenda Constitucional n. 66 extinguiu com o instituto da separação judicial.

  1. Evolução Legislativa

O reconhecimento constitucional da instituição casamento seu deu na Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1891, no artigo 72, § 4º, previsão que se manteve nas constituições seguintes.

Na Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1934, houve previsão pela indissolubilidade do casamento no artigo 144, admitindo-se, entretanto o desquite, na forma da lei civil.

À época, vigorava o Código Civil de 1916, que em seu artigo 315, III previa o desquite como forma de extinção da sociedade conjugal, mas mantendo-se hígido o vínculo matrimonial.

A Emenda Constitucional n. 9, de 28 de junho de 1977, previu a possibilidade de dissolução do casamento, elencando como requisito a prévia separação judicial por mais de três anos.

A fim de regulamentar o dispositivo constitucional foi editada a Lei n. 6.515/77, que, à época, revolucionou o instituto do casamento, prevendo como causas de extinção da sociedade conjugal, tanto a separação judicial como o divórcio, sendo que este último terminaria também com o vínculo matrimonial.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 previu, no artigo 226, § 6º, a dissolubilidade do casamento pelo divórcio após prévia separação jurídica cumulada com o requisito temporal.

Essa regra, como não poderia deixar de ser, foi acolhida pelo Código Civil de 2002, que, em seu artigo 1.580, previu o sistema dual da separação jurídica como requisito para o divórcio.

Durante muito tempo, vigorou essa dualidade de procedimentos, inclusive com o advento da Lei n. 11.441/07, que possibilitou a realização da separação consensual e do divórcio consensual por via administrativa, não sendo necessário judicializar a questão, desde que presentes os requisitos legais.

Em 2010, o Congresso Nacional editou a Emenda Constitucional n. 66, alterando a redação do artigo 226, § 6º da Constituição da República, afirmando que o casamento civil poderia ser dissolvido pelo divórcio, sem tratar da separação judicial, que antes constava expressamente de seu texto.

Com base nisso, houve uma cisão na doutrina, parte dela sustentando a não recepção da separação judicial, tendo em vista o silêncio eloquente do constituinte reformador; outra parte advogando pela subsistência do instituto no ordenamento jurídico brasileiro.

  1. Comentários à Emenda Constitucional n. 66: Subsiste no ordenamento jurídico brasileiro o instituto da separação jurídica?

Em 13 de julho de 2010, com a entrada em vigor da Emenda Constitucional n. 66, houve, para muitos, a segunda revolução da instituição casamento: a possibilidade de dissolver o vínculo matrimonial através do divórcio sem a necessidade de separação judicial prévia.

A redação original do artigo 226, § 6º da Constituição da República tratava expressamente da separação jurídica, o que foi suprimido com a referida emenda, senão vejamos:

“Art. 226, § 6º. O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos previstos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de 2 anos”.

“Art. 226, § 6º. O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio”.

Percebe-se da redação atual que o constituinte reformador, intencionalmente, suprimiu o requisito de prévia separação judicial por mais de um ano ou de comprovada separação de fato por mais de dois anos.

Mas o constituinte foi além. Ao não fazer referência à separação jurídica no texto constitucional, acabou por extinguir o instituto do ordenamento jurídico brasileiro, não recepcionando a legislação infraconstitucional.

Essa é a premissa de parte significativa da doutrina, quiçá majoritária. Não são poucos os seus defensores e os fundamentos que amparam essa corrente.

A título de exemplo, cita-se um de seus maiores expoente, a ex-desembargadora Maria Berenice Dias, para quem a separação judicial:

 

“É um instituto que traz em suas entranhas a marca de conservadorismo atualmente injustificável. É quase um limbo: a pessoa não está mais casada, mas não pode casar de novo. Se, em um primeiro momento, para facilitar a aprovação da Lei do Divórcio, foi útil e, quiçá, necessária, hoje inexiste razão para mantê-la (…). Portanto, de todo o inútil, desgastante e oneroso, tanto para o casal, como para o próprio poder Judiciário, impor uma duplicidade de procedimentos para manter, durante o breve período de um ano, uma união que não mais existe, uma sociedade conjugal “finda”, mas não “extinta”[3].

De forma categórica, não deixando margem de dúvida sobre a extinção da separação judicial, Zeno Veloso complementa:

“A EC n. 66/2010 não quis tão somente, estabelecer que o divórcio, agora, pode ser obtido sem mais prazo algum, sem que se tenha de alegar alguma causa, nem apontar qualquer motivo, e sem ter de ser antecedido de uma separação de direito, ou de uma separação de corpos que tenha durado mais de dois anos. (...) Quis o legislador constitucional – e deliberadamente, confessadamente quis – que a dissolução da sociedade conjugal e a extinção do vínculo matrimonial ocorram pelo divórcio, que passou a ser, então, instituto jurídico único e bastante para resolver as questões matrimoniais que levam ao fim do relacionamento do casal. Sem dúvida, ocorreu a simplificação, a descomplicação do divórcio no Brasil”[4].

Em que pese a deliberada omissão do constituinte reformador, há vozes minoritárias em sentido contrário, afirmando que a ausência de previsão constitucional do instituto da separação jurídica não é suficiente para retirá-la do ordenamento jurídico.

Os partidários dessa corrente pretendem sustentar a existência da separação jurídica em, basicamente, três linhas de raciocínio, bastante simplistas e formalistas: quando a norma constitucional dispôs que o casamento pode ser desfeito pelo divórcio, o verbo “pode” não é capaz de excluir outras formas de dissolução da sociedade conjugal, como a separação judicial. Baseiam-se, ainda, na ausência de regulamentação da norma constitucional, bem como no fato de não ter havido a derrogação expressa da norma infraconstitucional que tratava do tema, o que, por consequência, não lhe retiraria a eficácia.

Ora, não é razoável exigir que o constituinte reformador esmiúce a matéria ao ponto de excluir, peremptoriamente, um instituto que não se mostra mais consentâneo com a sociedade atual. Assim, desmedido seria exigir que se ressalvasse que a separação judicial não mais dissolveria a sociedade conjugal. Afinal, para descobrir o alcance da norma, existe a interpretação. E ao interpretar o dispositivo constitucional fruto da reforma pela Emenda Constitucional n. 66, resta cristalino que, quando o constituinte excluiu a parte final do artigo 226, § 6º da Constituição da República, excluiu, deliberadamente, a separação jurídica. E o fez por diversas razões, senão vejamos:

 

“(...) Como foi mantido o verbo “pode” há quem sustente que não desapareceu o instituto da separação, persistindo a possibilidade de os cônjuges buscarem sua concessão pelo só fato de continuar na lei civil dispositivos regulando a separação (...). A conclusão é para lá de absurda, pois vai de encontro ao significativo avanço levado a efeito: afastou a interferência estatal que, de modo injustificado, impunha que as pessoas se mantivessem casadas. O instituto da separação foi eliminado. Todos os dispositivos da legislação infraconstitucional a ele referente restaram derrogados e não mais integram o sistema jurídico”[5].

Como é sabido, os dispositivos constitucionais tem eficácia normativa imediata, independentemente de regulamentação, produzindo efeitos imediatos, ao que se convencionou chamar de princípio da força normativa da constituição. Afirmar a manutenção da separação jurídica é o mesmo que negar eficácia à constituição, por colidir, frontalmente, com a o espírito do poder constituinte reformador[6].

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Nesse sentido, J. J. Canotilho:

 

Não se pode negar que “na solução dos problemas jurídico-constitucionais deve dar-se prevalência aos pontos de vista que, tendo em conta os pressupostos da constituição (normativa), contribuem para uma eficácia óptima da lei fundamental. Consequentemente deve dar-se primazia às soluções hermenêuticas que, compreendendo a historicidade das estruturas constitucionais, possibilitam a ‘actualização’ normativa, garantindo, do mesmo pé, a sua eficácia e permanência”[7].

Nota-se, assim, que não foi outra a vontade do legislador senão excluir do texto constitucional qualquer resquício de um sistema dualista ultrapassado, burocrático e anacrônico.

Junte-se a isso a questão da atualização normativa, traduzida pelo princípio da máxima efetividade[8]. A norma constitucional deve ser interpretada da forma mais ampla possível, atribuindo-lhe maior eficácia. Ora, manter a separação judicial no ordenamento jurídico seria apenas uma burocracia a mais a ser cumprida quando não mais existisse affectio maritalis entre o casal[9].

Maria Berenice Dias assim afirmou:

“A nova ordem constitucional veio para atender ao anseio de todos e acabar com uma excrescência que só se manteve durante anos pela histórica resistência à adoção do divórcio. Mas, passados mais de 30 anos nada, absolutamente nada justifica manter uma dupla via para assegurar o direito à felicidade, que nem sempre está na manutenção coacta de um casamento já roto”[10].

Cabe, inclusive, invocar o princípio da interpretação das leis em conformidade com a constituição[11], que impõe sejam as leis infraconstitucionais interpretadas de acordo com a Lei Maior. Sendo assim, o Código Civil deve ser interpretado a partir da nova ordem constitucional e não o contrário[12] [13], razão pela qual se defende a não recepção das normas infraconstitucionais contrárias à reforma.

Nesse sentido, Flávio Tartuce:

 

“Em conformidade com a CF/1988 não há mais sentido prático na manutenção da separação de direito, perdendo sustento constitucional as normas ordinárias que regulamentam o instituto. Sabe-se que a finalidade da separação de direito sempre foi a de pôr fim ao casamento, não se justificando a manutenção da categoria se a Norma Superior traz como conteúdo apenas o divórcio, sem maior burocracia ou prazo mínimo. Não se sustenta mais a exigência de uma primeira etapa de dissolução, se o Texto Maior trata apenas de uma outrora segunda etapa. A tese da manutenção da separação de direito remete a um Direito Civil burocrático, distante da Constituição Federal, muito formal e pouco material; muito teorético e pouco efetivo Ademais, há um alinhamento à forma de interpretar o Código Civil segundo ele mesmo, desprezando-se o caminho sem volta da visão civil-constitucional do sistema jurídico”[14].

A fim de rememorar a total inutilidade da separação judicial, invoca-se, ainda, o critério interpretativo histórico. As discussões travadas no Congresso sobre a Emenda Constitucional n. 66 eram no sentido da eliminação do procedimento de separação judicial do ordenamento jurídico pátrio.

Transcreve-se o trecho da justificativa do Deputado Sérgio Barradas Carneiro, anexa à proposta de emenda, chamada de PEC do Divórcio, que se converteu na Emenda Constitucional n. 66:

 

“Não mais se justifica a sobrevivência da separação judicial, em que se converteu o antigo desquite. Criou-se, desde 1977, com o advento da legislação do divórcio, uma duplicidade artificial entre dissolução da sociedade conjugal e dissolução do casamento, como solução de compromisso entre divorcistas e antidivorcistas, o que não mais se sustenta. Impõe-se a unificação do divórcio de todas as hipóteses de separação dos cônjuges, sejam litigiosos ou consensuais (...)”[15].

E nem haveria de ser diferente, sobretudo sob a égide do princípio da duração razoável do processo, que tem como corolário a economia e a celeridade processual. Seria de todo inútil a super inflação do Poder Judiciário com dois processos que poderiam ser resolvido de uma só vez, na ação de divórcio[16].

Ademais, na atual conjuntura, submeter os cônjuges, cuja vida em comum se tornou insuportável, a um duplo procedimento judicial não se mostra razoável. Além de prolongar o sofrimento do casal e de sua prole e escancarar a vida íntima, mostra-se ainda mais dispendioso financeiramente.

Apelando, ainda, aos critérios hermenêuticos, a interpretação sociológica demonstra que a aprovação do sistema dualista de procedimentos – entre separação, que poria fim a sociedade conjugal e seria requisito prévio para o segundo procedimento, o divórcio – se deu por razões morais e religiosas.

Havia, à época, forte divergência entre divorcistas e antidivorcistas que, para a aprovação da Lei n. 6.515/77, fizeram concessões recíprocas para atender os anseios sociais daquele contexto histórico[17].

Ocorre que, no atual Estado Democrático de Direito, não mais se justificam essas razões, sobretudo diante da laicidade do Estado Brasileiro, que não pode pretender se apoiar em questões religiosas. Até porque, o que a Constituição da República trata é da dissolução do casamento civil e não do casamento religioso, que permanece restrito à esfera da liberdade de culto e à vida privada do casal.

Corroborando esse entendimento, Carlos Roberto Gonçalves faz a seguinte reflexão:

“Ora, nada mais lógico e racional do que considerar que a Emenda Constitucional n. 66/2010 veio fechar o ciclo evolutivo iniciado com a Lei do Divórcio de 1977. Para que fosse aprovada, criou-se, mediante acordo entre divorcistas e antidivorcistas, os sistema dual de rompimento do vínculo legal do casamento. Verificou-se então, com o passar dos anos, que esse sistema, baseado em uma moral religiosa, não mais se justificava, pois a tendência observada nos ordenamentos jurídicos ocidentais é a de que o Estado deixe de interferir na vida privada e na intimidade dos cidadãos”[18].

Não há espaço para o argumento da doutrina minoritária que sustenta a manutenção da separação jurídica como forma de possibilitar ao casal em crise um período de reflexão. Apesar de a família possuir proteção constitucional, isso não é desnaturado pela existência do divórcio, tendo em vista que ainda subsiste a separação de fato e a separação de corpos.

Complementa Maria Berenice Dias: “E, ocorrendo a reconciliação tudo volta a ser como era antes. Sequer há a necessidade de ser extinta a separação de corpos. O único efeito - aliás, bastante salutar - é que bens adquiridos e as dívidas contraídas durante o período da separação é de cada um, a não ser que convencionem de modo diferente”[19].

Nota-se, assim, que a finalidade social da novel norma constitucional é a facilitação da dissolução do casamento, desburocratizando o instituto, sendo sua única causa o desejo dos cônjuges, no exercício de um direito potestativo. Destarte, não cabe ao Poder Judiciário adentrar na razão pela qual o casamento se desfez, se por culpa ou não de um dos cônjuges.

Evita-se, com isso, a violação da intimidade do casal e, em última análise, a interferência do Poder Públicos em questões de ordem privada[20].

Em esclarecedora lição, Roberto da Cunha Pereira:

“O sistema dual para romper o vínculo legal do casamento, como já se disse, tem suas raízes e justificativas principalmente em uma moral religiosa. Não se justifica mais em um Estado laico manter esta duplicidade de tratamento legal. A tendência evolutiva dos ordenamentos jurídicos ocidentais é que o Estado interfira cada vez menos na vida privada e na intimidade dos cidadãos. Se não há intervenção do Estado na forma e no modo de as pessoas se casarem, por que ele interfere tanto quando o casamento termina? Os ordenamentos jurídicos de países cuja interferência religiosa é menor não têm em seu corpo normativo a previsão deste sistema dual”[21].

Seguindo essa linha de raciocínio, é forçoso concluir que não mais subsiste o instituto da separação judicial, quer no texto constitucional, quer na legislação infraconstitucional, sendo certa que esta não foi recepcionada pela nova ordem constitucional[22].

  1. Conclusão

Após a análise da doutrina mais moderna no que tange ao tema tratado, conclui-se que, na atual evolução do Estado Democrático de Direito e numa sociedade calcada no princípio da dignidade da pessoa humana, não se mostra mais consentâneo a existência de um sistema dual de rompimento do vínculo matrimonial, baseado apenas numa hipócrita moral religiosa.

Isso porque uma suposta moral religiosa é extremamente nociva à progressão da sociedade, sobretudo diante de um Estado laico, como é o caso do Brasil. Não é admissível que institutos jurídicos, ontologicamente destinados ao uso técnico, fiquem impregnados e limitados por ideais filosóficos de uma parcela ortodoxa da sociedade.

Tampouco se mostra razoável a interferência do Poder Judiciário em questões tão caras à intimidade de um casal, como os motivos pelos quais se tornou insuportável a vida conjugal. Ora, se não há interferência estatal na escolha do cônjuge, quando e onde o vínculo matrimonial se formará, também não haverá de ter interferência na dissolução desse vínculo. Ao menos não em questões tão mesquinhas, como o motivo, a quem imputar a culpa, ou qualquer requisito temporal que limite esse direito.

Percebe-se, de tudo o exposto, que a extinção da separação judicial veio, a um só tempo, evitar ingerências na vida privada, bem como descomplicar a dissolução do vínculo matrimonial, através de um procedimento único, mais célere, menos burocrático e menos custoso.

Ademais, com a desburocratização do procedimento de rompimento do vínculo matrimonial, não são só os cônjuges e sua prole se beneficiam, mas toda a sociedade. Isso porque, ao invés de duas ações – uma para separação judicial e outra para o divórcio –, haverá apenas a última, em inegável e esperado benefício à Administração da Justiça, que já se mostra inflada com tantas demandas judiciais.

Se é assim, não se mostra razoável a manutenção de um instituto anacrônico como a separação judicial quando, ela própria, sequer servirá para ser convertida em divórcio.

Sintetizando, de forma magistral, a extinção do instituto da separação judicial, Rodrigo da Cunha Ferreira:

 

“É possível que haja resistência de alguns em entender que a separação judicial foi extinta de nossa organização jurídica. Mas, para estas possíveis resistências, basta lembrar os mais elementares preceitos que sustentam a ciência jurídica: a interpretação da norma deve estar contextualizada, inclusive historicamente. O argumento finalístico é que a Constituição da República extirpou totalmente de seu corpo normativo a única referência que se fazia à separação judicial. Portanto, ela não apenas retirou os prazos, mas também o requisito obrigatório ou voluntário da prévia separação judicial ao divórcio por conversão. Qual seria o objetivo de se manter vigente a separação judicial se ela não pode mais ser convertida em divórcio? Não há nenhuma razão prática e lógica para a sua manutenção. Se alguém insistir em se separar judicialmente, após a Emenda Constitucional nº 66/2010, não poderá transformar mais tal separação em divórcio, se o quiser, terá que propor o divórcio direto. Não podemos perder o contexto, a história e o fim social da anterior redação do § 6º do artigo 226: converter em divórcio a separação judicial. E, se não se pode mais convertê-la em divórcio, ela perde sua razão lógica de existência”[23].

Destarte, percebe-se, categoricamente, que não mais subsiste a separação judicial, seja na Constituição da República, seja na legislação, eis que o silêncio elouquente do constituinte reformador acabou por não recepcionar as normas infraconstitucionais que tratavam do assunto, fechando-se, assim, o ciclo evolutivo da dissolução do vínculo matrimonial.

  1. Referências

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. 3. reimpr. Coimbra: Almedina.

DIAS, Maria Berenice. EC 66/10 - e agora? Disponível em: http://www.mariaberenice.com.br/uploads/ec_66_-_e_agora.pdf. Acesso em 10.09.2013.

DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias, 5ª ed. revista e atualizada, São Paulo: RT, 2009.

GONÇALVES, Carlos Roberto, Direito civil brasileiro, vol. 6: direito de família, 8ª ed. rev. e atual., São Paulo: Saraiva, 2011.

LÔBO, Paulo. Divórcio: alteração constitucional e suas consequências. In: Portal IBDFAM. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br. Acesso em 15.08.2010

PEREIRA, Rodrigo da Cunha. A Emenda Constitucional nº 66/2010: Semelhanças, Diferenças e Inutilidades entre Separação e Divórcio e o Direito Intertemporal. Disponível em: http://www.rodrigodacunha.adv.br/index.php/a-emenda-constitucional-no-662010-semelhancas-diferencas-e-inutilidades-entre-separacao-e-divorcio-e-o-direito-intertemporal/. Acesso em 10.09.2013.

TARTUCE, Flávio. Argumentos constitucionais pelo fim da separação de direito. Disponível em: www.flaviotartuce.adv.br/.../201103281530230. Tartuce_fimsepar.doc. Acesso em 10.09.2013.

VELOSO, Zeno. O novo divórcio e o que restou do passado. In: Portal IBDFAM. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br. Acesso em 15.08.2010.

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Sobre a autora
Bruna de Paiva Canesin

[1] Graduada em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Pós-graduada em Direito Constitucional e Direito Processual Civil pela Universidade Cândido Mendes.

Informações sobre o texto

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