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A natureza da atividade notarial e de registro e a incidência do ISSQN

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É desnecessário fazer qualquer tipo de analogia entre a atividade notarial e registral e qualquer outra, vez que existe na legislação o enquadramento perfeito, que permite a tributação considerando alíquotas fixas.

SUMÁRIO:1. Introdução 2. Apontamentos sobre a natureza da atividade notarial e registral. 3. Aspectos relevantes do ISSQN para a atividade notarial e registral. 4. Base de cálculo incidente sobre os serviços notariais e registrais. 5. Conclusão. 6. Referências.


1 INTRODUÇÃO

Em 31 de julho de 2003 foi publicada a Lei Complementar n. 116 que considerou como fato gerador do imposto sobre serviços de qualquer natureza - ISSQN os “serviços de registros públicos, cartorários e notariais”[1]. Houve então uma discussão acerca do enquadramento de tais atividades para a finalidade de tributação, haja vista tratar-se de uma função pública, exercida por meio de delegação.

Assim, o primeiro aspecto a ser suscitado girou em torno da possibilidade de o Município tributar uma atividade própria do Estado, considerando as limitações constitucionais ao poder de tributar. Tal questão foi superada ao argumento de que a atividade é exercida em caráter privado, razão pela qual estaria configurada a incidência do citado imposto.

A tributação inicialmente foi realizada considerando quantias fixas, contudo, ultimamente têm sido feitas alterações nas legislações municipais determinando que a apuração seja realizada em percentuais sobre os valores recebidos a título de emolumentos. Esta modificação culminou com o surgimento de demandas judiciais e a diversidade de decisões acarreta grande insegurança jurídica. Considerando este contexto, o presente artigo tem como objetivo fazer uma análise da natureza dos serviços notariais e de registro e das formas possíveis de tributação pelo ISSQN para ao final, concluir por aquela que seja a mais adequada a tal atividade.


2 APONTAMENTOS SOBRE A NATUREZA DA ATIVIDADE NOTARIAL E REGISTRAL

A atividade desempenhada pelos notários e registradores encontra respaldo no artigo 236[2] da Constituição Federal de 1988, que prevê seu exercício em caráter privado por meio de delegação do Poder Público. A regulamentação do citado dispositivo legal ficou a cargo do legislador ordinário, a quem cumpria, nos termos do seu parágrafo 1º, disciplinar a atividade e a responsabilidade, bem como definir a fiscalização dos atos pelo Poder Judiciário.

Apenas em 18 de novembro de 1994 foi promulgada a Lei n. 8.935, conhecida como “Lei dos Notários e Registradores” ou simplesmente “Lei dos Cartórios”, que regulamentou o artigo 236 da carta constitucional e conceituou os serviços notariais e de registro como sendo aqueles de organização técnica e administrativa que possuem como finalidade garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos praticados pelos notários e registradores, ou perante eles[3].

A expressão “organização técnica e administrativa” é criticada pela doutrina por transparecer uma ideia de que o titular dos serviços não estaria desenvolvendo uma atividade jurídica, mas apenas técnica e administrativa. Neste sentido, Dip (2005, p. 563): 

a referência ao caráter técnico da organização atribuída às notas e aos registros [...] traz ínsita a negativa de independência jurídica: o técnico no direito não decide, faz; não age, fabrica; não interpreta, executa; não é livre, cumpre ordens; [...] não atua com liberdade jurídica, porque, ao fundo, está sujeito ao ilícito de hermenêutica: ou pensa como pensam seus maiores ou ... eis aí a falta pronta e grave![4]

Tal postulado, conforme se verifica não é verdadeiro, pois, o ingresso na atividade é feito por meio de concurso público[5] e um dos requisitos para a delegação é o diploma de bacharel em direito, assim, o notário ou tabelião e o oficial de registro ou registrador são, sobretudo, profissionais do direito. 

Antes de prosseguir neste estudo é imprescindível esclarecer que são tabeliães os titulares dos ofícios de notas e protesto de títulos; e registradores, os oficiais da serventia imobiliária, de títulos e documentos, civis das pessoas jurídicas, civis das pessoas naturais e de interdições e tutelas e de distribuição de títulos. E ainda, existem os tabeliães e oficiais de registro de contratos marítimos.

Quanto ao objetivo almejado com o desenvolvimento da atividade notarial e registral, temos, antes de adentrar especificamente em cada finalidade, o panorama traçado por Souza (2011, p. 23):

A publicidade dos atos é relevante porque a eles se atribui autenticidade; a segurança é dependente e fim da publicidade e da eficácia; a eficácia, por seu turno, só se atinge em razão da autenticidade e da publicidade. Várias outras relações podem se feitas entre os fins dos serviços notariais e registrais, importando assinalar que, em síntese, o que se almeja é a segurança jurídica[6].

Como se vê, os propósitos da atividade são conceitos que se interligam e se complementam.

A publicidade é o instrumento pelo qual os atos se tornam conhecidos e por isso, oponíveis em relação a terceiros. De acordo com Balbino Filho (1999, p. 9) “a publicidade é a alma dos registros públicos. É a oportunidade que o legislador quer dar ao povo de conhecer tudo que lhe interessa a respeito de determinados atos. Deixa a par de todo o movimento de pessoas e bens[7]”. No mesmo sentido, temos a preciosa lição de Loureiro (2011, p. 205): “pela publicidade registral se exteriorizam, de forma contínua e organizada, as situações jurídicas de natureza real, a fim de que seja assegurada a sua eficácia perante todos os demais membros da sociedade[8].”

Importante ressaltar que existem exceções à publicidade no registro civil das pessoas naturais nas questões atinentes ao nome[9] e no tabelionato de protestos, quanto aos títulos protestados e cancelados, só podendo suas certidões ser expedidas a pedido do devedor ou mediante ordem judicial[10] [11]. Na atividade notarial discute-se se a escritura de testamento, por ser instrumento público, pode ser obtida livremente antes do falecimento do testador. Entretanto, apesar de ser válido desde a sua elaboração, trata-se de um negócio jurídico com eficácia diferida, pois seus efeitos se dão apenas após a morte do testador, sendo até então, essencialmente revogável.

A autenticidade visa estabelecer uma presunção de verdade sobre o conteúdo do ato notarial ou registral[12]; trata-se de uma presunção relativa, juris tantum, emanada dos assentos, que não abrange o negócio que o originou ou lhe deu causa. Elucidando tal aspecto, ao estudar o registro de imóveis, Sarmento Filho (2013, p. 46), nos ensina que “não há garantia absoluta para o adquirente do imóvel, podendo o seu registro ser anulado por algum vício na formação do negócio”[13].   

A segurança, por seu turno, está relacionada à estabilidade conferida às relações jurídicas que decorrem dos atos notariais e registrais. Conforme ensinamentos de Amaral (2003, p. 18),  

segurança jurídica significa a paz, a ordem e a estabilidade e consiste na certeza de realização do direito. [...] O direito tem, por isso, como um de seus valores fundamentais, para muitos o primeiro na sua escala, a segurança, que consiste, precisamente, na certeza da ordem jurídica e na confiança de sua realização[14].

Sua consecução se dá por meio da observância de diversos princípios, dentre os quais a irretroatividade da lei, coisa julgada e respeito aos direitos adquiridos e visa, com a aplicação dos mesmos, salvaguardar os cidadãos de ações abusivas inclusive do próprio Estado.

A eficácia visa garantir a produção dos efeitos desejados quando da realização de um ato notarial e registral. Segundo Souza (2011, p. 23),

significa a garantia de que o ato notarial ou de registro produzirá sua consequência própria, o estar apto a produzir efeitos jurídicos que dele se espera. Por exemplo, o registro nas aquisições entre vivos é constitutivo, transmitindo a propriedade imóvel e permitindo ao proprietário, ainda, a oponibilidade de sua situação a terceiros, já que produz o registro efeitos erga omnes[15].

Esta finalidade guarda estreita relação com a publicidade dos atos, sem a qual se torna inócua.

Traçando um comparativo com o processo judicial em que seus efeitos são, em regra, restritos apenas às partes que participaram do mesmo, Rodrigues (2014, p. 10), sintetiza os objetivos da atividade ao estudar o sistema da publicidade registral, que considera possuir um “plus”, pois, irradia

publicidade ativa ao ato jurídico, de forma a que seja oponível perante terceiros (efeito erga omnes); dotando-o de autenticidade, que deriva do poder certificante – fé pública e presunção de verdade – inerente às atividades notarial e registral; promovendo e resguardando a segurança jurídica, valor axiológico perseguido pelo Direito Formal; e, por fim, mas não menos importante, atribuindo-lhe eficácia, vale dizer, a aptidão de produzir efeitos no mundo jurídico[16].

Feitas estas considerações iniciais, verifica-se que algumas peculiaridades podem ser facilmente constatadas em relação à atividade notarial e registral e são fundamentais para a compreensão de sua natureza. O primeiro aspecto a ser observado é que estamos diante de uma atividade estatal exercida de forma privada, por meio de delegação, que consiste no “trespasse da execução de serviços a particulares, mediante regulamentação e controle do Poder Público[17]” (MEIRELLES, 2001, p. 357).

Mesmo considerando a delegação a forma escolhida pelo Estado-membro de operacionalizar a atividade, restou definido pelo Supremo Tribunal Federal por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.089 que, sendo desenvolvida em caráter privado, não pode a atividade estar abarcada na hipótese de imunidade recíproca entre os entes, constitucionalmente previstas no artigo 150, VI, ‘a’[18].

Quanto à imunidade, conforme ensinamentos de Amaro (2008, p. 151),

A imunidade tributária é, assim, a qualidade da situação que não pode ser atingida pelo tributo, em razão de norma constitucional que, à vista de alguma especificidade pessoal ou material dessa situação, deixou-a fora do campo sobre que é autorizada a instituição do tributo[19].  

Como se pode depreender do exposto, a imunidade é uma definição constitucional de algumas situações que, mesmo estando no campo de competência de um ente para a instituição de determinado tributo, não serão tributadas. Exemplificando, é vedado ao Município no âmbito de sua competência, instituir impostos sobre o patrimônio, a renda ou os serviços tanto da União como dos Estados e do Distrito Federal. Em resumo temos a lição de Coêlho (2011, p. 254), segundo o qual “as pessoas políticas não possuem capacidade contributiva. Ao revés, são dotadas de competência para tributar, não porém umas às outras”[20].

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Para Carrazza (2010, p. 787) as imunidades das pessoas políticas decorrem do principio federativo porque, se uma pessoa política pudesse exigir impostos de outra, fatalmente acabaria por interferir em sua autonomia”[21].

Assim, embora seja uma atividade pública, típica do Estado, o fato dela ser desenvolvida em caráter privado por meio da delegação, exclui a possibilidade de a mesma estar acolhida pela imunidade mencionada acima. 

Ademais, a atividade é desenvolvida pessoalmente pelo titular que recebe a delegação quando é aprovado em concurso público de provas e títulos, não sendo vedada, portanto, a contratação em conformidade com a legislação do trabalho de funcionários, escreventes e auxiliares, para o desempenho das funções, sob o comando, orientações e responsabilidade do titular do serviço. Compete-lhe também o gerenciamento, que compreende dentre outros, o investimento em tecnologia, despesas com contratação e aperfeiçoamento, manutenção de imóvel para funcionamento.

Ainda, é do notário ou registrador a responsabilidade pelos danos causados no desempenho das atividades próprias de Serventia, pessoalmente ou por seus prepostos, a terceiros, sendo, entretanto, possível a ação de regresso no caso de dolo ou culpa dos mesmos. Uma única conduta pode gerar consequências em três esferas: administrativa, cível e criminal.

Cumpre elucidar que os cartórios indiscutivelmente não são pessoas jurídicas e o seu oficial não pode associar-se a outros com finalidade de melhor organizar a atividade. Tampouco constituem uma universalidade de bens, já que “perdendo o cargo, [...] os móveis e utensílios utilizados pelo tabelião nas instalações do cartório devem ser adquiridos ou indenizados pelo novo titular que o suceder”[22] (COÊLHO, DERZI, 2008, p. 25).

Ademais, conforme julgamento da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça restou afastada também a personalidade judiciária, processual ou aparente,

De fato, as pessoas formais, amparadas no art. 12 do Código de processo Civil constituem, no mínimo, uma universalidade de bens, como o espólio e as heranças jacente e vacante. No caso, o cartório não possui qualquer direito, dever ou bem capaz de ensejar a ocorrência de personalidade judiciária. [...] Desta forma, tanto as relações laborais [...], como os equipamentos e mesmo o aluguel do cartório são arcados diretamente pelo tabelião, que assume todas as obrigações e direitos pessoalmente.

Ao titular do tabelionato pertencem todos os bens ali existentes, que não são transmitidos no caso de extinção da delegação[23].   

Desta forma, a personalidade processual conferida a alguns entes despersonalizados, como o espólio, massa falida e as heranças jacente e vacante não foi atribuída às Serventias, como consequência pelo fato do “cartório” não configurar sequer uma universalidade de bens.

Sintetizam brilhantemente Coêlho e Derzi (2008 apud ALVES et al., 2002, p. 97),

serventia não tem capacidade processual, não tem patrimônio, não tem personalidade jurídica, a qual só se adquire com o registro dos atos constitutivos na Junta Comercial ou no Registro Civil das Pessoas Jurídicas, de acordo com o Código Civil[24].   

Como se pode depreender do exposto, a atividade notarial e registral é cercada de muitas peculiaridades que a torna especial e a difere das demais. São aspectos marcantes a outorga da delegação, a pessoalidade na prestação dos serviços, a responsabilidade do titular, sua autonomia no gerenciamento e a ausência de personalidade jurídica, judiciária ou processual.


3 ASPECTOS RELEVANTES DO ISSQN PARA A ATIVIDADE NOTARIAL E REGISTRAL

O imposto sobre serviços de qualquer natureza - ISSQN, ou imposto sobre serviços - ISS é de competência dos Municípios e do Distrito Federal conforme artigo 156, III da Constituição[25] e tem como fato gerador a prestação de serviços conforme estipulação em lei ordinária municipal, dentro dos limites definidos em Lei Complementar Federal. São excluídos de antemão, as operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior[26], pois nestes casos, haverá tributação por meio do ICMS (imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias) pelos Estados e Distrito Federal.

Os elementos que compõem o conceito de prestação de serviços são elucidados por Carvalho (2008, p. 5): “é necessário acontecer o exercício, por parte de alguém (prestador), de atuação que tenha por objeto produzir uma utilidade relativamente a outra pessoa (tomador), a qual remunera o prestador (preço do serviço)”[27].

Nem todas as prestações de serviço estão abarcadas nas hipóteses que, ocorrendo, gerarão a incidência do ISSQN, desta forma, não estão abrangidos,

(i) o serviço público, tendo em vista ser ele abrangido pela imunidade (art. 150, a, da Carta Fundamental); (ii) o trabalho realizado para si próprio, por ser despido de conteúdo econômico; e (iii) o trabalho efetuado em relação de subordinação, abrangido pelo vínculo empregatício (Carvalho, 2008, p. 5)[28].

Em 31 de julho de 2003 foi publicada a Lei Complementar n. 116 que considerou, em sua lista anexa no item 21, como fato gerador do ISSQN os “serviços de registros públicos, cartorários e notariais”[29]. À época, houve então uma discussão acerca do enquadramento de tais atividades para a finalidade de tributação, haja vista tratar-se de uma função pública.

O primeiro aspecto a ser questionado girou em torno da possibilidade do Município tributar uma atividade própria do Estado, considerando as limitações constitucionais ao poder de tributar. Tal questão, como já demonstrada, foi superada ao argumento de que a atividade é exercida em caráter privado, razão pela qual estaria configurada a incidência do citado imposto.

Entretanto, importante apresentar posicionamento contrário defendido por Meirelles (2001, p. 412), segundo o qual, “a incidência do ISS sobre serviços públicos é discutível. Nada justifica seja onerado o custo de serviços que atendem a necessidades essenciais da população e que, por isto mesmo, constituem encargo dos poderes públicos”[30].

Destaca-se ainda, que o contribuinte do imposto é o prestador dos serviços e as suas alíquotas devem estar limitadas entre 2% nos termos do artigo 88 do Ato das disposições constitucionais transitórias - ADCT[31] e 5% conforme preceitua o artigo 8º  da Lei Complementar n. 116[32].

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Sobre a autora
Andréa Cristina Correia de Souza Renault Baêta dos Santos

Oficial Substituta do 4º Ofício de Registro de Imóveis de Belo Horizonte. <br>Mestranda em Direito Empresarial e especialista em Direito Notarial e Registral pela Faculdade Milton Campos. Especialista em Registro Imobiliário e Mercantil Iberoamericano pela Universidade Autônoma de Madrid e Colégio de Registradores da Espanha. Pós graduanda em Direito Tributário pela PUC Minas. <br><br>

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Andréa Cristina Correia Souza Renault Baêta. A natureza da atividade notarial e de registro e a incidência do ISSQN. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4877, 7 nov. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/35889. Acesso em: 16 abr. 2024.

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