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Um ensaio sobre as limitações do judiciário como efetivador de direitos

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30/10/2016 às 12:32
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Entende-se que o Judiciário não pode ultrapassar a esfera jurídica, entrando em domínio político, ao efetivar direitos. A partir de duas leituras da decisão Brown II, demonstra-se que os limites entre esses dois domínios é mais tênue que se imagina.

1. Introdução

À primeira vista, a afirmação de que o Judiciário deve efetivar direitos não parece nada polêmica. Afinal, os conflitos clássicos envolvendo Caio e Tício[1] certamente devem ser resolvidos pelo Judiciário: se há uma dúvida quanto ao titular do direito de propriedade (ou de posse, ou quanto aos limites de quaisquer deles), ou quanto ao cumprimento de uma obrigação, cabe ao juiz definir “o direito” posto em dúvida e efetivá-lo forçosamente, se necessário.

Em situações que fogem dos exemplos clássicos de direito privado, entretanto, o papel do poder Judiciário já não parece tão certo e parece ser essencial limitar sua atuação em esferas menos tradicionais. Nessas, surgem preocupações sobre a (ausência de) legitimidade democrática, a carência de conhecimentos técnicos para a tomada de uma decisão ótima (por limitações institucionais), a falta de accountability e de transparência e acerca da invasão de um território que seria eminentemente político, ao invés de jurídico.

No Brasil, essas preocupações se tornaram bastante evidentes após as decisões que buscavam a efetivação dos direitos sociais previstos na Constituição. Os acadêmicos constitucionalistas primeiramente preocuparam-se em estabelecer a efetividade desses direitos,[2] e foram seguidos pelas cortes, que afirmaram esse entendimento. Logo em seguida, surgiram inquietações com a inversão de prioridades orçamentárias, com decisões irrazoáveis, com a invasão da esfera política. Era necessário limitar a atuação do Judiciário.

Os doutrinadores elaboraram dois construtos teóricos que serviram de limitações, embora cada um em um sentido diferente: a reserva do possível (um limite máximo: o máximo possível a ser concedido por uma decisão é determinado por limitações fáticas e econômicas) e o mínimo existencial (como o próprio nome indica, um limite mínimo: o mínimo necessário para uma existência digna. Na verdade, esse limite acaba funcionando também como um limite máximo, já que estabelece o máximo que o Judiciário pode intervir – só para garantir o mínimo. Todo o resto fica reservado à esfera política). À pergunta sobre como controlar as políticas públicas de efetivação desses direitos após o estabelecimento desses limites, os doutrinadores responderam apontando para o processo coletivo.

Por enquanto, o questionamento sobre os limites da atuação do Judiciário recebeu basicamente esse tratamento no Brasil. Esse ensaio, porém, parte de um episódio da história estadunidense em que esses limites foram certamente ultrapassados: a decisão de Brown v. Board of Education. É basicamente consensual a afirmação de que a Suprema Corte dos EUA interferiu na política do país ao decidir um conflito a eles apresentado como jurídico: para garantir o direito de jovens negros frequentarem escolas destinadas somente a brancos, a política de segregação racial nas escolas foi declarada inconstitucional.

A decisão, seus efeitos e a reação que ela provocou na sociedade (o famoso backlash) foram interpretadas de várias maneiras diferentes e duas dessas interpretações serão abordadas nesse trabalho. A primeira é a de Hannah Arendt, escolhida por ser provocativa e por partir de um ponto que foge do senso comum teórico: ao invés de considerar que a corte havia se imiscuído no político (o que não teria sido um problema para ela), ela defendeu que a decisão não tinha caráter político e representava uma invasão estatal na esfera social. A segunda interpretação é a de Bruce Ackerman, que dá um novo significado à atuação política da corte, caracterizando a decisão como parte de um dos momentos constitucionais da história estadunidense.

As duas interpretações darão novo significado à noção de limitações à atuação do poder jurisdicional. Com isso, será possível discutir a própria existência desses limites, ou a possibilidade de traçá-los aprioristicamente. Em que momento essas fronteiras se tornaram imprecisas?

2. Brown: efeitos concretos e backlash

A Suprema Corte dos Estados Unidos, em Brown v. Board of Education[3] (maio de 1954), decidiu que a segregação racial nas escolas do país era inconstitucional por violar a décima quarta emenda da constituição. O julgado tem importância histórica por ter colocado um fim à doutrina do “separate but equal” (separados mas iguais), que havia sido estabelecida pela própria corte, em 1896 (Plessy v. Ferguson,[4] decisão que foi expressamente cassada – overturned – por Brown) e afirmava a possibilidade de segregação desde que as condições dadas a brancos e negros fossem idênticas. Em Brown v. Board of Education, foi declarado que tal doutrina não era cabível a questões de educação pública, pois a segregação nas escolas era inerentemente desigual e produzia efeitos perniciosos nas crianças.[5]

Mas a corte não estabeleceu como as escolas deveriam ser de-segregadas:[6] prevendo que a decisão enfrentaria fortes objeções, requisitou a opinião dos general attorney dos estados com leis segregacionistas acerca de seus planos para o cumprimento da decisão. Em maio de 1955, em Brown II, a corte estabeleceu que a de-segregação seria comandada pelas cortes federais locais e deveria ser realizada o mais rápido possível.[7]

Os efeitos da decisão foram diferentes em cada estado: em alguns, a de-segregação foi significativa, em outros não. Entretanto, em grande parte deles os efeitos políticos da decisão foram muito radicais. O backlash foi caracterizado por uma resistência à alteração das leis de segregação, com uma guinada à direita conservadora e a repressão violenta das manifestações populares em favor dos civil rights e da igualdade racial. Mas Brown também foi indiretamente responsável pelas leis federais que garantiram essa igualdade em meados da década de 60 (os Civil Rights Acts da época[8]) justamente por ter desencadeado essa forte reação negativa.[9]

3. Hannah Arendt e Reflexions on Little Rock

As reflexões de Arendt acerca de Brown foram expostas em um artigo sobre um incidente ocorrido em Little Rock, Arkansas, e se desenvolvem ao redor de seu conceito de política e de esfera pública.

O incidente ocorreu em setembro de 1957 e foi provocado pela de-segregação da Central High School da cidade. Nove estudantes negros tentaram entrar no prédio da escola e foram impedidos por mais de mil pessoas protestando a favor da segregação racial. O exército dos EUA foi enviado pelo presidente e permaneceu na cidade por dois meses para controlar a situação.[10]

O artigo de Arendt foi publicado no final de 1959 e foi extremamente criticado.[11] A autora criticava a Suprema Corte por ter se imiscuído em um tema da esfera social, ao invés de circunscrever sua atuação à esfera pública.[12] A autora, em outros trabalhos, se vale da polis grega como mito de origem[13] para definir público e privado, pois nela as duas esferas estariam rigorosamente separadas: a satisfação das necessidades biológicas humanas deveria ocorrer no ambiente doméstico, na esfera privada. O lugar da ação, atividade humana por excelência, era a esfera pública. Para poder participar dessa esfera e desfrutar da verdadeira liberdade, somente alcançável através da atividade política, o homem deveria primeiro vencer a necessidade, tida como fenômeno pré-político, no âmbito privado.[14]

A ascensão do social é o principal elemento do diagnóstico de época arendtiano. A esfera social não é privada nem pública, e seu surgimento na era moderna borrou os limites entre as essas duas.[15] Os assuntos antes tidos como privados – acerca da manutenção das necessidades – tornaram-se uma preocupação coletiva,[16] e a política se transformou em mera “administração burocrática das necessidades sociais”.[17]

Assim, a “de-segregação” de Brown não poderia ir além de abolir as leis que segregavam: para a autora, é impossível forçar a igualdade e acabar com a discriminação dentro da esfera social. Só se pode garantir a igualdade dentro da esfera pública e no desempenho das atividades políticas.[18] A discriminação teria um papel a cumprir na sociedade, assim como a igualdade desempenha uma função importantíssima no espaço público. A grande questão não seria como eliminá-la, mas como mantê-la confinada à esfera social, onde é legítima, sem extravasar para o público ou o privado, nos quais ela revela seu caráter destrutivo.[19]

A descrição de Arendt da esfera pública e do político é particular, e muito diferente da definição corriqueira.[20] É difícil imaginar o que seria debatido nessa esfera pública hoje, em que os maiores problemas das democracias ocidentais parecem ser exatamente sociais. A curiosa perspectiva arendtiana – de um estado que não se ocupa da administração de problemas sociais, de uma política livre de questões sócio-econômicas, de uma democracia radical que tem efeitos libertadores somente para a opressão política mas não atinge de forma alguma a repressão social – parece ser inimaginável para a sociedade moderna.[21]

Ainda assim, a sua interpretação de Brown demonstra que a consideração de uma decisão como política ou jurídica depende essencialmente do conceito de política adotado. Por mais que juristas reclamem do caráter político de decisões judiciais, esse conceito não é unívoco e sua definição não pode ser simplesmente evitada. Entretanto, a escolha de um conceito específico pode revelar que as fronteiras entre jurídico e político são demasiadamente tênues.

4. Bruce Ackerman e momentos constitucionais[22]

A interpretação de Ackerman de eventos da história estadunidense re-significa esses momentos e dá uma solução coerente (e historicamente fundamentada) para a tensão entre constitucionalismo e democracia, além de afirmar que a Constituição está em construção e se adapta às novas realidades. O autor rejeita a narrativa jurídica tradicional dos momentos em que a Constituição dos EUA foi alterada (formalmente ou não) através de métodos não ortodoxos.

O primeiro desses momentos foi a própria ratificação da Constituição. Os Artigos da Confederação (documento que uniu as treze colônias em uma fraca confederação após a independência) estabeleciam que qualquer alteração do documento deveria ser ratificado pelo legislativo de cada um dos estados. A Constituição foi ratificada por convenções populares e trazia a previsão de que a aprovação em nove estados seria suficiente.[23] O segundo momento foi a Reconstrução, período em que foram aprovadas a 13a (abolindo a escravidão), 14a (afirmando que todos os nascidos nos EUA eram cidadãos e tinham direitos civis) e 15a (proibindo a negação do direito de voto em virtude de raça[24]) emendas. O artigo V da Constituição estabelece que emendas devem ser propostas por 2/3 do Congresso e aprovadas por 3/4 dos estados. A aprovação da 13a e 14a emendas se deu de maneira pouco ortodoxa, em violação ao artigo V.[25] O terceiro momento foi o New Deal:[26] a Suprema Corte considerou inconstitucional várias reformas propostas no primeiro mandato do Presidente Roosevelt. No segundo mandato, o Presidente ameaçou dispensar todos os membros da corte, e teve o apoio da maioria do Congresso. A corte então não impediu as reformas seguintes.[27]

A tese de Ackerman afirma que a Constituição cede à manifestação da vontade popular. Em momentos críticos (momentos constitucionais, de higher law making), a vontade do povo permite a alteração de pontos fundamentais do direito estadunidense. Nesses três casos, o povo apoiou as mudanças: ratificando a Constituição nas convenções, votando a favor de um congresso (republicano) que lutava pelo fim da escravidão, votando a favor de Roosevelt e de um congresso que apoiava o New Deal. Nesses dois últimos casos, um resultado diferente nas eleições teria impossibilitado as mudanças.[28]

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 Brown não é vista como um momento revolucionário, em que a corte se imiscui em território político e caminha adiante da sociedade estadunidense, e sim como uma forma de reinterpretar a Reconstrução (não completamente realizada) de acordo com os novos fundamentos do governo (mais ativista) do país estabelecidos após o New Deal: representa a síntese do segundo e do terceiro momento. Brown, considerada sozinha, não realizou as promessas de igualdade racial da Reconstrução. Mas ela desencadeou um processo que alcançou os resultados almejados: após ela, políticos mais conservadores foram eleitos nos estados sulistas, que promoveram uma repressão violenta aos negros que lutavam pelos civil rights (guinada à direita, já que a maioria da população era contra a de-segregação). Essa repressão chocou a população dos estados do norte, antes indiferente, que por sua vez pressionou por alterações no direito federal – e isso dá origem aos Civil Rights Acts.[29] Para Ackerman, o que vem depois de Brown é um momento constitucional, mas não exclusivamente pelas atitudes da corte[30] (que é tão criticada pelo excesso de ativismo judicial).[31] A análise do contexto histórico revela uma hipótese muito mais complexa, que conjuga o passado (a Reconstrução e o New Deal), a manifestação da vontade popular e a interação entre os três poderes - já que o presidente Lyndon Johnson teve importância fundamental na aprovação dos Civil Rights Acts. Sem eles, Brown teria sido muito pouco. 

5. Considerações “finais”: onde estão os limites?

Não há consenso sobre Brown, mas quase todos os intérpretes a consideram uma decisão excessivamente política e uma manifestação de ativismo judicial (que uns consideram benéfica e outros, não). As duas interpretações abordadas nesse ensaio apresentam visões diferentes. Pode-se perceber que: 1) a definição da invasão da esfera política pelo Judiciário depende essencialmente do conceito de político adotado; e 2) episódios consagrados de ativismo podem ser relidos, e essa releitura pode revelar a pequenez de seu papel em um contexto mais abrangente.

Em que momento os limites de político e jurídico começaram a se confundir? Teria sido com o ativismo em Brown, para os EUA? Parece que não. Teria sido com a efetivação de direitos sociais pela via de ações individuais no Brasil? Na verdade, alguns institutos anteriores a esses episódios revelam que as fronteiras são demasiado tênues. Considere-se o controle de constitucionalidade, ou judicial review: o poder do Judiciário de declarar uma lei inconstitucional (em concreto ou abstrato, mas mais evidentemente no segundo caso) revela a possibilidade de alteração de uma decisão política tomada pelo Legislativo. O estabelecimento de precedentes obrigatórios (a obrigação de respeitar decisões passadas ou de cortes superiores), tão discutido atualmente no Brasil, e o julgamento de recursos repetitivos pelo Superior Tribunal de Justiça, dão interpretação e desfecho uniformes a milhares de casos idênticos – o quão diferente é essa atuação do estabelecimento de um ato regulatório (que seria de competência da Administração)? A mesma indagação pode ser feita em relação aos processos coletivos.

De fato, limitações apriorísticas da esfera política e da esfera jurídica parecem ser ou ingênuas ou impossíveis.[32] Uma das principais manifestações políticas contemporâneas – a mais marcante delas – é a aprovação de um ato legislativo. Ato esse que é essencialmente parte da ordem jurídica, e que só adquire significado (deixa de ser texto e passa a ser norma) após interpretado e aplicado, seja pelo Judiciário, seja pelo Executivo. A crítica da atuação excessiva do Judiciário precisa, portanto, alçar novos vôos e galgar níveis mais altos. Bradar contra o ativismo a plenos pulmões, pela “evidente” intervenção da esfera política, não deveria ser tido como suficiente. Afinal, essa crítica não explica nada e nada propõe.

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Sobre a autora
Juliana Pondé Fonseca

Doutoranda em Direito na Universidade Federal do Paraná. Pesquisadora Visitante na Yale Law School em 2014 (EUA - Programa Doutorado Sanduíche no Exterior - CAPES). Bolsista da CAPES - PROEX. Possui graduação e mestrado em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Professora universitária e professora de cursos de Pós-Graduação em Curitiba.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FONSECA, Juliana Pondé. Um ensaio sobre as limitações do judiciário como efetivador de direitos . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4869, 30 out. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/35890. Acesso em: 26 abr. 2024.

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