1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
Busca-se com este artigo entender as ideias trazidas por Neil MacCormick sobre os motivos determinantes da decisão ou, simplesmente, ratio decidendi, em face de uma decisão de força argumentativa vinculante ou meramente persuasiva.
Essencial será ainda delimitar o que vem a ser o ratio decidendi e até onde ela se estende em uma decisão, de modo a diferenciá-la das questões obiter dicta.
É de grande importância relacionar, ainda, a aplicabilidade destas ideias de MacCormick com a possível aplicabilidade da teoria da Transcendência dos motivos determinantes no controle concentrado de constitucionalidade realizado pelo Supremo Tribunal Federal.
2. A RATIO DECIDENDI SOB A ÓTICA DE NEIL MACCORMICK
Grande inquietude ocorre atualmente na discussão acerca da força e do valor dos precedentes judiciais, seja entre Advogados ou entre Magistrados. Para MacCormick, esta celeuma se resolve por pura razão de justiça, onde devem tratar casos iguais de forma igual e, do contrário, casos diferentes de formas de desiguais. Deste modo, casos semelhantes à casos iguais já julgados anteriormente devem ser julgados da mesma forma que estes[2].
Assim, muito mais do que uma questão de celeridade processual ou de unidade de sistema, a utilização dos precedentes judiciais se basearia em uma questão de justiça para os próprios jurisdicionados, além de passar uma maior ideia de segurança jurídica para estes.
Para MacCormick, uma das razões pela qual é interessante no uso dos precedentes reside no fato de acontecer uma “economia de esforços”, já que tanto magistrados quanto advogados não necessitariam realizar novos esforços argumentativos sobre as mesmas causas[3]. Deste modo, um caso resolvido uma vez deverá ser tratado como solucionado de uma vez por todas, ressalvados os casos que demonstre-se ter surgido algo que exija a reconsideração[4].
Ainda nesta linha, por ser uma questão de extrema importância, deve-se analisar no precedente quais elementos que devem ser, do ponto de vista, argumentativo, vinculantes ou meramente persuasivos[5].
Deste modo, o elemento persuasivo forte ou vinculante de uma decisão reside na ratio decidendi, que, nas palavras o próprio Neil MacCormick, consiste[6]:
“[...] é regra ou princípio para o qual um dado precedente empresta autoridade seja esta regra ou princípio tratado como vinculante ou como persuasivo em maior ou menor grau em relação às decisões posteriores de questões semelhantes”
Elucida ainda que a ratio decidendi consistiria de tal modo uma justificação formal feita por um juiz e bastante para decidir uma questão suscitada pelos argumentos das partes, onde a resolução era necessária para a justificação da decisão no caso.[7]
Importante não confundir a ratio decidendi ou motivos determinantes com as questões obter dicta, as quais consistem apenas em outras opiniões sobre o direito e valores, ligados à questão, indo além do necessário para fundamentar ou constituir razão determinante do julgado.
Conceituando, o que vem a ser a questão obter dicta, o já citado autor estabelece[8]:
“Argumentos sobre princípios jurídicos ou argumentos avaliando outros casos dotados de autoridade ou ainda as consequências da solução escolhida e das suas rivais pertencerão à classe das obter dicta. Isso é assim, mesmo que tais argumentos sejam necessários para justificar a solução dada, e mesmo que apenas os argumentos efetivamente aduzidos possam justificar tal solução. ”
MacCormick, brilhantemente, questiona se há realmente uma ratio decidendi dentro de uma decisão ou a ratio “é apenas uma proposição jurídica de uma decisão anterior que uma corte posterior considera conveniente destacar”[9].
Assim, poderia se justificar uma decisão posterior, ainda que a ratio torne necessário decidir de igual modo ao que a segunda decisão fora decidida.
MacCormick, citando Julius Stones, afirma que trata-se a ratio decidendi de uma “categoria de referência ilusória”, posto que transmitem uma ilusão de estabilidade e certeza, quando na realidade o que existe é um processo de mudança[10].
E até quando deve o juiz fundamentar a sua decisão? Qual é o limite da sua ratio decidendi?
Fato é o de que não exige-se do magistrado argumentem sobre tudo o quanto foi apresentado pelas partes, devendo, entretanto, discorrer tão somente para justificar a procedência ou não das reivindicações ou respostas das partes[11]. Para MacCormick “Quanto mais um julgamento vai além dos pontos efetivamente propostos, maior será o risco de que os argumentos sejam adotados sem a devida consideração de todas as circunstâncias relevantes e dos possíveis contra-argumentos”[12].
Passando a diante no debate, o multicitado autor rebate a crítica realizada por Lyons, que afirma ser a justificação essencialmente um conceito moral, onde a justificação precisaria ser primeiramente aceita em termos morais para depois aceita-la em termos jurídicos.[13] Para MacCormick, advogados são contratados para resolver questões jurídicas, em razão das suas habilidades jurídicas e argumentativas, não dispondo, assim como os juízes, de competência para a argumentação moral.[14]
Ademais, teria o advogado a responsabilidade moral de exercer a sua habilidade jurídica no interesse de seus clientes, porém jamais teria este de submeter todos os seus casos à sua ética pessoal.
Deste modo, uma ratio decidendi não pode basear-se pura e simplesmente na ética pessoal do julgador, mas esta deve estar presente sempre que o magistrado esteja no julgamento de uma questão jurídica.
3. A TERIA DA TRANSCENDÊNCIA DOS MOTIVOS DETERMINANTES
O efeito vinculante de uma Ação Direita de Inconstitucionalidade é restrita à parte dispositiva do julgado. Entretanto, por alguns julgados o próprio STF passou a aceitar em alguns de seus julgados que o efeito vinculante também deveria atingir a ratio decidendi, optando, assim, pela utilização da teoria da transcendência dos motivos determinantes, mas posterior passou a ser rejeitada pela suprema corte.
Esta teoria, com origem alemã, representa, na realidade, uma verdadeira característica do puro efeito vinculante (Bindungswirkung), mas que, como no Brasil este instituto foi acolhido de forma errônea, pode representar uma revolução nas decisões do Supremo Tribunal Federal em controle de constitucionalidade.
Preliminarmente, é importante passarmos a esclarecer alguns pontos fundamentais para compreensão do tema aqui proposto. Passemos a análise do efeito vinculante.
3.1 Efeito Vinculante
O efeito vinculante foi inserido no ordenamento jurídico Brasileiro em 1993, por meio da Emenda Constitucional nº3, que, ao acrescentar o §2 do Art. 102 da Constituição Federal, restringiu a sua aplicabilidade apenas às Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADC).
Entretanto, o entendimento adotado pelo Supremo Tribunal Federal já estendia estes efeitos também às Ações Declaratórias de Inconstitucionalidade (ADIn).
Porém, no ano de 1999 foi editada a Lei 6.868[15], estabelecendo expressamente em seu Art. 28 que os efeitos vinculantes seriam aplicáveis também à ADIn. Posteriormente, com o advento da Emenda Constitucional 45/2004[16], este efeito passou a se revestir de força constitucional.
É importante trazermos à baila o conceito de Efeito Vinculante constante no próprio projeto de Emenda Constitucional que deu origem à EC 9/93. Vejamos:
“Além de conferir eficácia erga omnes às decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle de constitucionalidade, a presente proposta de emenda constitucional introduz no direito brasileiro o conceito de efeito vinculante em relação aos órgãos e agentes públicos. Trata-se de instituto jurídico desenvolvido no Direito processual alemão, que tem por objetivo outorgar maior eficácia às decisões proferidas por aquela Corte Constitucional, assegurando força vinculante não apenas à parte dispositiva da decisão, mas também aos chamados fundamentos ou motivos determinantes (tragende Gründe).”
Este conceito demonstra que o real intuito do instituto do Efeito Vinculante é de ser extensível também à ratio decidendi e não apenas à parte dispositiva como está acontecendo no Brasil e veremos a seguir.
Para o Ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes[17]:
“Problema de inegável relevo diz respeito aos limites objetivos do efeito vinculante, isto é, à parte da decisão que tem efeito vinculante para os órgãos constitucionais, tribunais e autoridades administrativas. Em suma, indaga-se, tal c o m o em relação à coisa julgada e à força de lei, se o efeito vinculante está adstrito à parte dispositiva da decisão ou se ele se estende também aos chamados "fundamentos determinantes", ou, ainda, se o efeito vinculante abrange também as considerações marginais, as coisas ditas de passagem, isto é, os chamados obiter dicta.”
Concomitantemente, a aplicação do efeito vinculante na ratio decidendi (razão de decidir), e não apenas na parte dispositiva da decisão, vem por fortalecer cada vez mais o precedente judicial, o que pode ser muito benéfico para toda a sociedade diante da maior celeridade processual, o que denotaria de certo modo um maior acesso à justiça.
3.2 Transcendência dos Motivos Determinantes
No ordenamento jurídico brasileiro, durante muito tempo o efeito vinculante de uma decisão acerca da constitucionalidade de uma norma somente se aplicavam à parte dispositiva da decisão. No entanto, como já dito anteriormente, o Supremo Tribunal Federal aceitou, em alguns poucos julgados, que o efeito vinculante da decisão de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade incida também nos motivos determinantes (ratio decidendi) dos julgados. Posteriormente, a corte retornou ao entendimento pretérito e somente admite a vinculação da parte dispositiva da decisão, o que não quer dizer que esta seja, a nosso entender, a melhor solução.
Para Uadi Lammêgo Lulos[18] "[...] o efeito vinculante não se limita, apenas, à parte dispositiva da sentença. Alcança, também, os motivos ou fundamentos determinantes, para preservar a própria integridade hierárquica da Lex Mater".
Aplicação desta teoria seria de fundamental importância para a transformação do Supremo Tribunal Federal em uma verdadeira corte constitucional, para, assim, desempenhar seu papel principal, qual seja, o de interprete da Constituição.
Neste sentido, o próprio Uadi Lammêgo Lulos[19] leciona:
“O Supremo Tribunal Federal é o oráculo do Texto Maior (art. 102, caput). Seus vereditos, independentemente de quaisquer chancelas, devem lograr eficácia contra todos e efeito vinculante, tanto na via de ação como na de exceção. Por que não convertê-lo numa autêntica Corte Constitucional?”
Pedro Lenza[20] afirma que nesta hipótese, o STF vem entendendo que a ‘razão da decisão’ passa a vincular outros julgamentos.
Luís Roberto Barroso[21], analisando a teoria da transcendência dos motivos determinantes, leciona que:
"[...] por essa linha de entendimento, tem sido reconhecida eficácia vinculante não apenas à parte dispositiva do julgado, mas também aos próprios fundamentos que embasaram a decisão. Em outras palavras: juízes e tribunais devem acatamento não apenas à conclusão do acórdão, mas igualmente às razões de decidir" (in O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro.” 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 184).
Na visão do Ministro Gilmar Mendes[22]:
“Proferida a declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalidade de lei objeto da ação declaratória, ficam os Tribunais e órgãos do Poder Executivo obrigados a guardar-lhe plena obediência. Tal como acentuado, o caráter transcendente do efeito vinculante impõe que sejam considerados não apenas o conteúdo da parte dispositiva da decisão, mas a norma abstrata que dela se extrai, isto é, a proposição de que determinado tipo de situação, conduta ou regulação – e não apenas aquela objeto do pronunciamento jurisdicional – é constitucional ou inconstitucional e deve, por isso, ser preservado ou eliminado.”
Assim, os motivos determinantes da decisão, vinculariam todos os tribunais, de modo que passaria a ser utilizado também no controle difuso e não somente no controle concentrado. Deste modo, o controle de constitucionalidade difuso ou concreto estaria cada vez mais abstrativizando-se.
Nesta linha, Dirley da Cunha Júnior[23] leciona:
"A vinculação, todavia, não alcança apenas o dispositivo da decisão. O Supremo Tribunal Federal vem atribuindo, não raro, efeito vinculante também aos fundamentos determinantes da decisão, e os aplicando a outras ações, com o que consagrou a teoria da transcendência dos motivos determinantes, como expôs, com propriedade, Pedro Lenza. Com efeito, uma vez que os fundamentos resultantes da interpretação da Constituição, quando realizada pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle abstrato, devem ser observados por todos os tribunais e autoridades, contexto que contribui para a supremacia e desenvolvimento da ordem constitucional, nada mais justificável que se aplique, fora da ação direta, o que ficou nela consubstanciado a título de fundamentos determinantes que baseou a decisão."
Imaginemos a situação hipotética de um Estado ter editado uma lei manifestamente inconstitucional. Provocado, por meio de Ação Declaratória de Inconstitucionalidade, o Supremo Tribunal Federal declarou a referida lei inconstitucional.
Na parte dispositiva desta referida decisão constaria que tal Lei foi declarada Institucional, tendo, portanto, a inconstitucionalidade desta lei de ser respeitada por todos diante o seu efeito vinculante.
Contudo, caso fosse aplicável a Teoria dos Motivos Determinantes, não só o dispositivo da supracitada decisão da ADIn se revestiria de efeito vinculante, mas também os motivos determinantes que levaram à decisão.
Deste modo, ao albergar também o fundamento que levou ao julgamento da inconstitucionalidade da referida lei, o efeito vinculante deveria ser observado em face de todas as leis municipais, estatais ou federais que fossem editadas sobre a mesma ratio decidendi da mencionada ADIn.
Caso entenda-se pela não aceitação da supracitada teoria, deveria o Supremo Tribunal Federal se manifestar, por meio de ADIn, em todas as leis que fossem editas no mesmo sentido da Lei que exemplificamos, o que seria uma afronta aos princípios da celeridade processual, economia processual e acesso à justiça.
4. CONCLUSÃO
Analisando o instituto do Efeito Vinculante das decisões proferidas em sede de controle de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, observamos que o seu real intuito de ser introduzido no ordenamento jurídico pátrio foi o de se resolver inúmeras querelas com apenas um único pronunciamento da corte maior.
Ao que nos parece, reduzir o efeito vinculante à parte dispositiva do julgado é limitar, em certo modo, o acesso à justiça, vez que em nada ajuda criar a necessidade de novos pronunciamentos do STF em casos onde já tenha decidido sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade da matéria, posto que tratar-se-ia de mera formalidade.
Assim, havendo o Supremo Tribunal Federal de manifestar-se inúmeras vezes sobre a mesma matéria, a não aplicabilidade do efeito vinculante ao motivos determinantes da decisão, é uma afronta a realização da própria justiça, já que infere-se contra a celeridade e economia processual, além de inexistir segurança jurídica.
Deste modo, constitui a ratio decidendi a força máxima argumentativa e jurídica de uma decisão, devendo ela, e não somente a parte dispositiva da decisão em controle concentrado de constitucionalidade, ser albergada pela extensão dos efeitos vinculantes da decisão.
Igual força vinculante não devem ter as questões obter dictas[24], posto que tratam-se apenas de questões ditas de passagem no julgado, não dispondo, portanto, de qualquer caráter vinculante e, mesmo que possa vir a ter força persuasiva na argumentação ou mesmo função retórica.