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Colaboração premiada: reflexões práticas

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24/07/2020 às 08:30
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9) Critérios para valoração da prova

A orientação doutrinária e jurisprudencial acerca dos critérios para a valoração da prova em regime de colaboração premiada é a de que o juiz não deve fundar a decisão condenatória unicamente na acusação do computado – proibição agora expressa no art. 4º, § 16, da lei nº 12.850/2013 –, mas num conjunto de fatores, tanto de ordem subjetiva, como objetiva.

O Tribunal Supremo da Espanha, em cujo ordenamento não há regras de reconhecimento do valor probatório das declarações prestadas por colaboradores - como a que contém o artigo 192.3 do CPP italiano (desde a sentença de 12 de maio de 1986), vem assentando um corpo de doutrina ajustado às teses italianas (espontaneidade, univocidade, coerência lógica e reiteração).

Entende aquele tribunal que, para que la implicación correal (chiamata in correi, como se diz na Itália) possa ser tomada em conta como verdadeira prova, deve-se atentar para duas notas: a) a subjetiva, derivada dos brocardos nemo tenetur se detegere y non edere contra se, eliminando a eficácia probatória se há finalidade da própria exculpação; b) a também subjetiva (e necessariamente objetivada) de que exista entre delator e delatado uma relação de inimizade ou ressentimento ou qualquer outra finalidade espúria"[34].

Esses critérios, valiosos sem dúvida, devem ser vistos apenas como possíveis motivos para a delação. O que se deve aferir é a existência, ou não, de outras provas além das declarações do agente colaborador, pois, do ponto de vista legal, no nosso direito, os motivos pessoais, egoísticos, de vingança etc., da delação não têm, por si, relevância para a higidez da prova.  Aliás, esses são precisamente os motivos que levam o partícipe de um crime ou integrante de OC a delatar alguém, como a experiência demonstra.

O processo penal rege-se pelo princípio da verdade real, em que todas as provas têm valor relativo, e o juiz forma sua convicção pela livre persuasão racional. A valoração da prova obtida em sede de colaboração premiada não difere, a nosso ver, da dos métodos tradicionais, cumprindo ao juiz averiguar o relato do colaborador e inseri-lo no contexto das demais versões apresentadas para, estabelecidos os pontos controversos, examinar se está, ou não, apoiado em outras provas, ao menos indiciárias, dados ou circunstâncias externas, que consolidem ou confirmem a coerência e a solidez das informações, numa visão de conjunto.

A coerência interna nas declarações do colaborador – as quais certamente terão passado pela crítica da defesa – pode ser aferida pela constância e uniformidade com que são expostas. Então, se o juiz se convenceu de que a versão encontra ressonância nas demais provas dos autos, a personalidade do colaborador, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do fato criminoso e a eficácia da colaboração (art. 4, § 1°) entram em cena posteriormente, como critérios de avaliação do benefício prometido ao colaborador.   

Por fim, deve-se lembrar que, ao contrário do que ocorre noutros sistemas onde o delator não tem o dever legal de dizer a verdade e, por isso, o risco de delações falsas é maior, em nosso direito o colaborador abre mão do direito ao silêncio e compromete-se a dizer a verdade, sob pena de perder os benefícios, reduzindo a problemática sobre a credibilidade de suas informações. 

A opção do nosso sistema, em conferir ao colaborador tratamento equiparado ao de testemunha, somada à desvinculação da delação como condição ao benefício, contribui para a racionalidade e a segurança da prova, praticamente afastando o interesse, por parte do colaborador, de delatar apenas com a finalidade da própria exculpação.    


10) As consequências do descumprimento do acordo       

A renúncia ao direito constitucional ao silêncio e o compromisso legal de dizer a verdade são, como visto, condições essenciais à colaboração premiada (art. 4º, § 14). Assim como pode ocorrer em qualquer contrato, não sendo cumprida a obrigação, entram em ação os mecanismos de coerção ou de sanção pela inexecução, o que levará, no caso, a ineficácia da cláusula de benefício prometido.

A verdade a que o colaborador se obriga a dizer é naturalmente aquela sobre fatos de seu conhecimento; o compromisso não incide sobre a verdade ontológica ou absoluta[35], eterna aporia do conhecimento.

É o desestímulo legal a tentativas de ludibriar as autoridades, pois a simples constatação de que o pretenso colaborador não disse toda a verdade que sabia – sejam lá quais forem os motivos - pode significar não apenas a perda dos benefícios legais e a sujeição às sanções do processo criminal, mas também a imputação pelo crime do art. 19 da Lei 12.850/2013, Imputar falsamente, sob pretexto de colaboração com a Justiça, a prática de infração penal a pessoa que sabe ser inocente, ou revelar informações sobre a estrutura de organização criminosa que sabe inverídicas.

O legislador, com essa exigência, procura eliminar o grave problema existente noutros sistemas onde o colaborador não assume o compromisso legal de dizer a verdade e, ao delatar falsamente alguém, não pode ser responsabilizado por falsa imputação.

Em verdade, antes mesmo da lei nº 12.850/2013, a lei 9.807/99 já conferia ao colaborador tratamento equiparado ao de testemunha, conforme veio a ser reconhecido e validado pelo STF no julgamento da AP 470, o caso Mensalão. Trata-se de acertada opção legislativa, constituindo elemento vital no sistema da colaboração premiada, sem o que grassariam os falsos colaboradores.       

A gravidade desse risco, a nosso ver, deve chamar a atenção das partes e do próprio Juiz de Direito, fazendo-se constar, ad cautelam, do termo de acordo de colaboração (art. 6º, III, da Lei) todas as advertências, a fim de se prevenir acordos irrefletidos, mal compreendidos ou mal orientados, e futuras arguições de desconhecimento ou falta de compreensão exata das consequências legais[36]. 


Conclusão:         

A colaboração premiada, dirigida ao descobrimento de crimes graves, à desestruturação das OC, à prevenção e à repressão de crimes graves, é instrumento de inestimável utilidade, que tem produzido resultados altamente significativos em vários países. O Brasil, após vários anos de experiência com a aplicação da chamada delação premiada, presente em diversas de suas leis, com a nova regulamentação promove significativo aperfeiçoamento do instituto; de um lado amplia-se o poder de transação penal do Estado, conferindo maior autonomia às autoridades encarregadas da investigação e da ação penal; e, de outro, se estabelece um controle judicial de legalidade estrita, visando melhor garantir os direitos fundamentais dos investigados e acusados.

Os integrantes do Sistema de Justiça Criminal passam a contar com o que há de mais atual na experiência doutrinaria e jurisprudencial sobre esse meio de produção de prova que, ao lado de outros instrumentos igualmente importantes, pode contribuir decisivamente para a aurora de novos tempos, em que as demandas sociais por legalidade e punição de criminosos de altas esferas econômicas, políticas e sociais, sejam finalmente respondidas com a seriedade que se espera num Estado de Direito responsável.

A opção legislativa, frente a alternativas extremas[37], orientou-se claramente pela busca de equilíbrio entre os interesses e direitos fundamentais em jogo, procurando assegurar a efetividade na investigação e a repressão dos crimes praticados por e em sede de OCs, com a preservação dos direitos fundamentais dos afetados, à luz do devido processo constitucional.

Não se percebe na lei restrições a garantias e a direitos processuais dos investigados/acusados na regulamentação do instituto da colaboração premiada. Ao contrário, o legislador cuidou de manter o standard de proteção vigente para os acusados por outros tipos de delitos graves.

A técnica de obtenção de prova por meio da colaboração do próprio investigado/acusado sob a exigência de renúncia ao direito ao silêncio é incensurável do ponto de vista constitucional. Assunção do compromisso com a verdade é uma condição para a realização prática dos fins do instituto; o investigado/acusado não tem qualquer obrigação ou dever de aceitação aos termos do acordo, e o fazendo de maneira livre e voluntária, devidamente assistido e orientado por seu defensor – afastada qualquer imposição ou coerção estatal –, não há violação ao princípio da não autoincriminação[38].

Na nova fase do enfrentamento do fenômeno do crime organizado no Brasil, onde a expansão da ilegalidade, com fraudes e ataques ao erário é alarmante e insuportável, o mecanismo, se aplicado com a necessária inteligência, sensibilidade, prudência e discernimento pelas autoridades, certamente contribuirá para o resgate do sentimento de respeito aos valores do direito e da Justiça, a exemplo do que ocorreu na experiência recente de outros povos.


Notas

[1]  A origem do Direito Penal Premial é muito antiga, remonta ao Direito Romano, a propósito dos delitos de lesa magestade (na Lex Cornelia de sicariis et veneficis), passando depois ao Direito Canônico e Comum medieval. Beccaria, em sua obra Dos Delitos e das Penas, se pronunciara contrariamente a premiação de delatores, prática comum no antigo regime dos procedimentos seguidos na Inquisição. Na literatura, uma das primeiras referências favoráveis a este tipo de instituição se acha na obra de J. Bentham, paradigma do pensamento utilitarista anglo-saxão aplicado ao âmbito jurídico-penal, quem, por entender preferível "a impunidade de um dos cúmplices que a de todos", se mostrava partidário das disposições premiais para o delator. (García de Paz, Isabel Sánchez, EL COIMPUTADO QUE COLABORA CON LA JUSTICIA PENAL: Con atención a las reformas introducidas en la regulación española por las Leyes Orgánicas 7/ y 15/2003, RECPC 07-05 (2005)). A delação premiada esteve presente no Brasil nas Ordenações Filipinas (1603-1830) e retornou com a lei 8.072/90.

[2] No direito comparado identifica-se o instituto nos principais países da Europa, como os da Grã-Bretanha, a chamada crown witness (“testemunha da Coroa”) que obtém imunidade (grant of immunity) em troca de seu testemunho, e as situações de transação penal (plea bargaining); no Direito Italiano,  para os denominados "collaboratori della giustizia" o "pentiti", que contribuíram decisivamente – no contexto da legislação excepcional dos anos 70 e 80 – contra o terrorismo e a máfia; na Espanha, França, Holanda, nos países de língua alemã (Alemanha, Suíça, Áustria), onde são conhecidas como Kronzeugenregelungen (regras de testemunha principal ou da Coroa). (ibidem).

[3] De agora em diante abreviadas como OCs.

[4] Pertenencia o intervención, apud Polaino-Orts, Miguel, in Derecho Penal Del Enemigo: fundamentos, potencial de sentido y limites de vigência, Bosch, Barcelona, 2009, p. 401.

[5] Ibidem.

[6] Conforme leciona Cezar Bitencourt, “Injusto é a forma de conduta antijurídica propriamente: a perturbação arbitrária da posse, o furto, a tentativa de homicídio etc. A antijuridicidade, por sua vez, é uma qualidade dessa forma de conduta, mais precisamente a contradição em que se encontra com o ordenamento jurídico”. (Tratado de Direito Penal- Parte Geral 1, 19ª Ed., Saraiva, São Paulo, 2013, p. 390).

[7] Enquanto no crime de associação criminosa do art. 288 do CP o bem jurídico tutelado é, segundo a doutrina majoritária, a perturbação da paz pública, os bens jurídicos protegidos no crime de OC são a paz pública e a segurança geral. Daí os elementos objetivos do tipo de um e de outro crime serem gradualmente distintos.

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[8] Polaino-Orts, Miguel, in Derecho Penal Del Enemigo: fundamentos, potencial de sentido y limites de vigência, Bosch, Barcelona, 2009, p. 402.

[9] Ante a crítica da doutrina, de que a OC como injusto sistêmico autônomo conforma um injusto por sua mera existência, vulnerando o princípio do fato, responde o autor que o combate a um grupo criminoso por sua própria existência, isto é, por ser um fator disfuncional para a sociedade, não significa em absoluto que se prescinda do princípio do fato; muito ao contrário, significa que a conformação da associação criminosa, isto é, a associação do sujeito a essa estrutura como fato objetivo imprescindível, colore ou tinge de caráter delitivo a pertinência e a associação com fins ilícitos. (ob. cit. p. 410)

[10] É certo que a tipificação da OC é adiantamento da punição, vista da perspectiva dos delitos fim. Mas é muito mais que isso, é uma instituição criminosa dinâmica, existente na sociedade e contrária a seus fins, uma empresa criminosa que se opõe sistematicamente, e com um perigo cuja latência e atualidade é especialmente desestabilizadora para a composição e estrutura social. Representa não só um conteúdo comunicativo ou simbólico, mas um perigo real. (Polaino-Orts, op. cit. p. 410.).

[11] Problemas de legitimidad de una respuesta excepcional frente a las organizaciones criminales, apud Polaino-Orts, Miguel, ob. cit. p. 411. Por ser um foco atual de desestabilização – e não só porque os sujeitos levam a cabo no futuro os delitos que pretendem cometer - prossegue Orts - que o legislador decidiu analisar a OC sob lupa, controlando-a com meios assecuratórios como a antecipação das barreiras de punibilidade. Se vierem a ser executados os propósitos criminais da OC ser-lhe-ão imputados aqueles delitos autônomos.

[12] O fato de se ter conferido prioridade a resultados não quer dizer que o colaborador deva substituir-se às autoridades. O princípio da oficialidade continua vigente em toda sua plenitude, de modo que incumbe ao Estado apurar a procedência das informações do colaborador, com a eficiência necessária, mesmo que não tenha ele confessado ou delatado alguém.     

[13] Convenção das Nações Unidas Sobre Crime Organizado de 12 de dezembro de 2000 (Resolução da Assembleia Geral 55/ 25) prevê a introdução de medidas que intensifiquem a cooperação com as autoridades encarregadas de fazer cumprir a lei, como a atenuação da pena em casos de cooperação substancial (art. 26. 1 e 2) ou até mesmo a imunidade judicial (art. 26. 3), e a necessidade de prever medidas de proteção para essas pessoas, semelhantes as das testemunhas (art. 26.4). Norma idêntica contém a Convenção da ONU, de 2003 (art. 37) contra a corrupção.

[14] A interpretação combinada das condições legais aponta o sentido da lei em priorizar o acordo de imunidade para integrantes de OCs que disponham de informações relevantes, se situem em posições estratégicas na estrutura operacional e possam contribuir efetivamente para o desmonte da empresa criminosa. A economia é a nota!

[15] A decisão de imunizar o criminoso é, em princípio, problemática, devendo ser fruto de ampla reflexão, que pondere sob todos os aspectos o interesse público na exclusão da responsabilidade penal de alguém que deveria ser submetido a processo criminal, em respeito ao princípio da igualdade. Vedando a lei acordo de imunidade em favor de líderes, deve-se priorizar acordos que envolvam reduções, substituição de pena, regime de cumprimento mais favorável e até perdão judicial, e só excepcionalmente optar-se pela exclusão da punibilidade, já que é sempre possível que o beneficiário exerça algum tipo de liderança na OC e isso venha a ser confirmado na instrução criminal. Por outro lado, a definição da liderança envolverá, muitas vezes, uma interpretação dependente do conceito e natureza da OC É possível que em algumas haja uma forte descentralização operacional com uma presença maior de líderes, que outras; nesse caso, parece possível o acordo de imunidade, se um pequeno líder dispõe de informações que levem aos líderes maiores.

[16] García de Paz, Isabel Sánchez, ob. cit.

[17] Mas não se deve esquecer que o colaborador não é, de fato, testemunha, mas alguém que dá testemunho sobre fatos que conhece por estar neles implicados. Por isso, se de um lado suas informações têm o valor próprio de quem participa ou realiza o fato probando, por experiência direta, sem intermediários, por outro lado têm o selo de origem de quem pode ser – e muitas vezes é – tão culpado quanto os que acusa. Daí a necessidade de cautelas maiores que as que devem ser adotadas em relação às testemunhas. Isso, contudo, não é questão ligada a juízo de legalidade, mas de credibilidade da prova. 

[18]  O Tribunal Europeu de Direitos Humanos – TEDH – nas sentenças de 20 de novembro de 1989 (caso Kostovski contra Países Baixos) e 27 de setembro de 1990 (caso Windisch contra Austria) (cfr. também a de 5 de junho de 1992, caso Lüdi contra Suiza) considerou contrária a Convenção Europeia de Direitos Humanos (art. 6. 3. d) a condenação baseada em testemunhos anônimos, entendendo por tais as declarações de pessoas cuja identidade é desconhecida pelo Tribunal, a defesa, ou ambos, pois isso supõe uma restrição dos direitos de defesa – ao impedir o contraditório ante o órgão judicial encarregado de decidir sobre a inocência ou culpabilidade –, de tal modo que considera tais declarações só indícios para levar a cabo uma investigação.

[19] É sempre casuística a decisão de oferecer acordo. Daí a necessidade de definição prévia de standards de orientação.

[20] O exame da personalidade do agente pode ser fator de prognóstico para aferir o grau de sua confiabilidade e o seu real interesse em colaborar para as investigações.  O requisito subjetivo isolado, todavia, não é o bastante.

[21] Se pensarmos que o réu teve todo o tempo disponível durante as investigações e o processo, e não quis colaborar para a apuração do crime, a premiação depois da condenação poderia parecer um contrasenso, especialmente quando outros colaboradores assumiram responsabilidades e expuseram-se a riscos graves. Mas a premiação é ainda possível porque, a partir da condenação, vêm as medidas executórias, entre as quais, as que dizem respeito à localização/recuperação de vítimas e valores públicos desviados, outros condenados etc., e se o condenado colabora para esse fim parece razoável que possa ter a pena reduzida até a metade ou obter a progressão de regime ainda que ausentes os requisitos objetivos. Se não se admitisse a premiação para atender a finalidades executórias, não faria sentido a própria ideia de efetividade do instituto, que não é a de obter apenas a condenação – um título executivo –, mas prevenir outros crimes, desestruturando a organização criminosa.

[22] Uma característica das OCs é a compartimentalização de informações para a “segurança dos negócios”. Algumas funções operacionais, ou sucursais, são isoladas e suas informações costumam ser restritas a poucos indivíduos. Outra característica é o segredo pela infusão do medo e ameaças aos integrantes e a seus familiares, especialmente quando estão em jogo os produtos do crime. Por isso, a decisão de colaborar depende de um nível de segurança psicológico nem sempre alcançável no início das investigações. O risco de condenação é poderoso fator de estímulo.  

[23] Fala-se potencialmente em oposição a situações nas quais se identifica a priori incongruências entre determinados resultados prometidos e o nível de conhecimento do suposto colaborador, a indicar falta de sinceridade e/ou simples adequação.  Questão distinta é se o juiz pode recusar a homologação por considerar desnecessário o acordo. Parece-nos que tal consideração implica juízo de valor incompatível com a lógica da lei, que não pretendeu criar um controle vertical quanto ao mérito do negócio jurídico.

[24]  HC 99.736, STF, Primeira Turma, Rel. Min. Carlos Brito, 20.05.2010.

[25] Tomando-se a classificação feita por Pontes de Miranda, quanto a carga de eficácia das sentenças, (declarativas, Constitutivas, de Condenação, Mandamentais e Executivas), para quem cada ação não tem apenas e exclusivamente uma carga de eficácia, é possível fazer uma aproximação à decisão proferida no pedido de homologação da colaboração premiada. As parte submetem a sua pretensão ao crivo do juiz que, homologando o acordo, declara-o conforme a lei e, desse modo, constitui uma situação jurídica definida em termos que não podem ser alterados ao arbítrio de outrem. Os efeitos jurídicos do negócio judicial devem ser concretizados no momento da sentença, e só poderão ser recusados caso a colaboração não tenha sido eficaz, em decisão fundamentada.

[26] Trata-se de um negócio jurídico cujos efeitos estão subordinados a condição suspensiva. Enquanto esta não se verificar (a colaboração efetiva que leve aos resultados prometidos), o colaborador não tem assegurado nenhum direito (art. 125 do Código Civil). Teria aplicação aqui a clausula rebus sic stantibus. Se, p. ex., a instrução mostra que o colaborador cometeu outros crimes além dos confessados, obviamente que deverá ser processado por eles. 

[27]  Um comportamento meramente passivo do acusado, que resolvesse confessar e/ou apontar integrantes ou partícipes já conhecidos não deve ser substancialmente valorizado. Para essa postura processual normal a lei penal prevê atenuantes e fatores outros de diminuição de pena.

[28]  É claro que é possível fazer um prognóstico dos benefícios conforme os resultados prometidos, mas não se sabendo a priori o grau de conhecimento e a quantidade e qualidade das informações, a cláusula genérica é mais indicada. E nos parece claro que o descumprimento das clausulas por parte do beneficiário deve levar a continuidade da persecução penal, a semelhança do que se dá no caso de descumprimento dos termos da transação penal (Súmula 35-STF).

[29] STF, HC 97553 / PR, Rel. Min. Dias Toffoli, Primeira Turma, 16.06.2010.

[30] P. ex. Jueces Estrellas na Espanha, Juízes e Promotores midiáticos ou vedetes no Brasil.

[31] O problema talvez pudesse ser evitado se, aplicando-se as regras da lei 12.694/2012, que criou o juízo colegiado em primeiro grau em crimes praticados por organizações criminosas, se distribuísse funções pré-processuais a juiz diferente do juiz da instrução e julgamento. Isso compatibilizaria as exigências de imparcialidade e de garantia a direitos.

[32] Esse direito – que não é apenas prerrogativa do defensor - é sumamente relevante ao direito fundamental de liberdade, potencializando a regra contida no art. 188 do CPP - que prevê o contato entre o defensor e o acusado antes do interrogatório- permitindo que o advogado, conhecendo previamente o teor das provas documentadas e os termos do acordo de colaboração premiada, adote as estratégias de defesa dos interesses de seu constituinte.

[33] A suspensão do prazo prevista no § 3o do art. 4º logicamente só se aplica ao colaborador, não aos demais investigados ou acusados.

[34] (SSTS de 29 de outubro de 1990 -RJ 1990, 8365-, 28 de maio de 1991 -RJ 1991, 5022-, 4 de dezembro de 1991 -RJ 1991, 8970-, 15 de abril de 1992 -RJ 1992, 3059-, 6 de julho de 1992 -RJ 1992, 6125- e 17 de novembro de 1992 -RJ 1992, 9353-, García de Paz, Isabel Sánchez, ob. cit.).

[35] Conforme ensina Ada Pelegrine Grinover, “O conceito de verdade, como já dito, não é ontológico ou absoluto. No processo penal ou civil que seja, o juiz só pode buscar uma verdade processual, que nada mais é do que o estágio mais próximo possível da certeza...” (O processo: Estudos e Pareceres, 2ª Ed., DPJ, São Paulo, 2009, p. 339).

[36] Nesse ponto é curial que o acordo preveja a proibição do colaborador modificar, alterar, retificar informações substanciais que tenha livremente prestado, com base nas quais se tenha feito imputação criminal a outrem, por se tratar de comportamento desleal, que pode trazer graves consequências processuais.  

[37] As alternativas extremas poderiam ser: 1) ignorar as OCs como se se tratasse de um crime comum de quadrilha ou bando e 2) buscar a eficácia total na persecução penal das OCs à custa do sacrifício dos direitos e garantias fundamentais do Direito penal e do processo penal. O equilíbrio assenta-se precisamente no reconhecimento, feito pela lei, da existência jurídica do crime, que afeta gravemente o interesse social, a paz e a segurança pública, e, consequentemente, a regulamentação desse importante mecanismo de desconstrução ou desmonte do engenho criminoso, de um lado, e a busca pela manutenção do compromisso constitucional de respeito a um núcleo duro de valores de direito penal liberal: princípios da legalidade, do fato, da culpabilidade, da ampla defesa, da lealdade, boa fé e da proporcionalidade, de outro lado.     

[38] O STF, no HC 78.708, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 16.4.99, entendeu que o direito à informação oportuna da faculdade de permanecer em silêncio tem por escopo assegurar ao acusado a escolha entre permanecer em silêncio e a intervenção ativa. A escolha desta última – naquele caso, no curso do processo – importara renúncia do direito de manter-se em silêncio e das consequências da falta de informação oportuna a respeito.

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Sobre o autor
Mauro Viveiros

Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de Mato Grosso, Mestre em Direito pela UNESP e Doutor em Direito Constitucional pela Universidad Complutense de Madrid. Professor dos Cursos de Especialização da Escola Superior do Ministério Público.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIVEIROS, Mauro. Colaboração premiada: reflexões práticas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6232, 24 jul. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/36040. Acesso em: 26 abr. 2024.

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