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Política pública como questão de orçamento: premissa ou paradigma para a evolução do liame individual para o coletivo?

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22/07/2017 às 16:17
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3.A EFETIVIDADE DOS DIREITOS CONSTITUCIONALMENTE PREVISTOS

3.1. Custos dos direitos

Primeiramente, cumpre ressaltar que, apesar dos direitos de liberdade ou direitos de primeira geração, que pressupõem uma não interferência do Estado na sociedade, ou uma prestação negativa estatal nos dê uma sensação de ausência de gastos públicos, que somente ocorreria na conduta comissiva estatal para efetividade dos direitos de segunda geração ou direitos sociais, tal raciocínio – também tido muitas vezes como premissa absoluta e irrefutável – é equivocado.

Parece-nos claro que os gastos para efetividade dos direitos sociais são consideravelmente maiores, se comparados com os gastos para efetividade de um direito de propriedade, por exemplo, mas se há gastos e se a premissa para a discussão do acesso individual aos direitos sociais é exatamente a insuficiência de recursos estatais, impossível tratar como gastos somente os direitos sociais.

Em outras palavras, se se pretende analisar os gastos públicos com idoneidade e isenção, imprescindível o exame de todos os gastos com os diversos direitos, sob pena de se imantar um direito – que nem social é – como se cláusula pétrea fosse. Resume-se: se há custo nos direitos, mister a análise dos custos de todos os direitos, para que se conclua qual deles deve ser momentanemante privilegiado em detrimento do outro, num exame eminentemente e isonomicamente axiológico.

3.2. A separação dos poderes

Obviamente, a novel ideia de separação dos Poderes constitucionalmente aceita é aquela que questiona a separação estanque, pois o contexto em que vivemos é de existência de um chamado “Estado teleológico”, um ente fictício cuja razão de existir se justifica unicamente como meio adequado ao atingimento dos objetivos da República.

Este é o paradigma utilizado para justificar a intervenção do Judiciário nas políticas públicas. A celeuma seria, logo, em se determinar quando (em que casos) e como (de que maneira) deveria ocorrer a atuação jurisdicional. Até porque, na prática atual, não se admite e nem se espera (justa expectativa ética) que o Judiciário possa admitir a não efetivação dos direitos sociais, ao menos o mínimo à garantia de uma vida digna dos jurisdicionados.

3.3. A legitimidade do poder judiciário para “intervir” em políticas públicas: dois exemplos

Inegavelmente, a decisão judicial em um processo judicial – individualizado ou coletivo – interfere na política pública orquestrada. Parece-nos um caminho irreversível e constitucionalmente justificado.

Ocorre que a justificativa constitucional é tênue e deve se limitar à interferência para garantir ao jurisdicionado a efetivação de um direito constitucionalmente previsto.

Dessa maneira, as ações coletivas com pedidos que, na prática, são de criação e direcionamento de políticas públicas, devem ter uma atuação cautelosa do Judiciário, sobretudo em refletir sobre sua legitimidade. A uma porque a análise demandará um prévio debruçar sobre todos os custos dos direitos e a duas porque se responsabilizaria, exigir-se-ia do Poder Judiciário a austeridade fiscal intrínseca e de competência do Executivo, além de ter prévio conhecimento de todas as receitas e todas as ações programadas do Executivo para gerar receita e propiciar incremento dos gastos nos direitos sociais.

Explica-se, utilizando-se de dois exemplos clássicos: em janeiro de 2012, ocorreu incêndio em diversos pátios de escolas de samba do Rio de Janeiro, ocasionando danos irreparáveis em carros alegóricos, sendo que só seria viável a recomposição do com alto e imediato investimento, o que foi proporcionado pelo Estado. Por óbvio que a atitude aparentemente irracional e desmedida do Executivo tem a sua justificativa: ora, se o carnaval ocorresse abaixo das expectativas, certamente o turismo e todas as receitas que o evento gera estariam prejudicados e prejudicado, por ricochete, o investimento nas políticas públicas.

Assim, a alocação urgente de recursos para financiar uma “festa” tem supedâneo lógico e organizacional do Executivo, ente que tem o dever de pensar e organizar a administração dos recursos públicos, sempre tendo como objetivo o interesse público, os próprios já citados objetivos da República.

De igual maneira, poderia se pensar, num primeiro momento, na inconstitucionalidade dos atos discricionários de gastos com obras para a Copa do Mundo, mais especificamente com a construção de estádios quando se observa a penúria e péssimas condições de vida de grande parte da população.

Todavia, novamente ressalto que a questão é resolvida com a legitimidade do Judiciário e a separação dos Poderes, pois o Judiciário não tem condições – e nem poderia ter – de analisar todo o processo político-administrativo do Executivo em prover receitas e despesas, ao passo que ao Judiciário cabe fazer valer, quando instado, os direitos sociais constitucionalmente previstos, sem quaisquer divagações acerca de possíveis gastos que sua decisão pode gerar, pois o ente público que deve se preocupar com a austeridade fiscal é o Executivo.

Questiona-se, propositadamente: teria o Judiciário legitimidade para analisar o planejamento, o plano de futuro do Executivo? A resposta deve ser negativa, mas tem o Judiciário obrigação de fazer valer os direitos sociais, como também o têm o Executivo e o Legislativo, estes, por meio – também – do orçamento e dos planos governamentais, pois o Executivo, repise-se, tem liberdade para planejar, “gastar” (mediante justificativa e motivação) e prever receitas (lucrar, administrar), mas está vinculado a cumprir determinações de execução dos direitos sociais no caso concreto.

Faz-se mister ressaltar, nesse ponto, que a indisponibilidade afeta somente o interesse público e não o dinheiro público como aparentemente poderia se concluir. Admite-se, hodiernamente, inclusive, a arbitragem em contratos administrativos, o que demonstra que os recursos públicos localizam-se na esfera do nútuo do Executivo, pois bens públicos desvinculados são diferentes de interesses públicos, somente esses vinculados e indisponíveis.

3.4. O judiciário como garantidor dos direitos constitucionalmente previstos

Como decorrência da análise da legitimidade do Poder Judiciário para tão-somente intervir, na prática, na política pública para garantir, processualmente, o direito social ao jurisdicionado, extrai-se o real dever do Judiciário: garantir a efetividade dos direitos constitucionalmente previstos.

Não se trata de ultima locus para a discussão da totalidade das políticas públicas, bem como não se trata de “terceiro tempo” para as discussões políticas das Casas Legislativas, como vem sendo observado cada vez mais em questões levadas ao Supremo Tribunal Federal.

3.5. A questão da “solidariedade” dos entes públicos e o porquê da recusa do cidadão – normas constitucionais onerativas de eficácia limitada

De tudo até aqui apresentado, urge lançar atenção sobre uma questão sempre suscitada e debatida em casos práticos de direitos sociais: a “solidariedade” dos Entes Públicos (Município, Estado-membro e União) em cumprir decisão que deu efetividade, por exemplo, ao direito à saúde.

De início, cumpre salientar na diferença de direcionamento do artigo 6º e do artigo 196 da Constituição da República. O primeiro é dirigido ao cidadão, enquanto que segundo é dirigido ao Estado, tem íntima relação com a obrigatoriedade da vinculação mínima de porcentagem do orçamento, pois quanto mais e melhor o Estado concretizar, menos ações individuais – e coletivas – existirão. Da análise dos dois artigos, extrai-se que o exercício do direito constitucionalmente previsto no art. 6º pode ser engatilhado contra quaisquer dos três Entes integrantes da Federação e não o contrário: condicionar a efetividade do direito do cidadão (previsto) à política pública do Estado já existente. Ou seja, uma não prejudica nem impede a outra, e são concomitantes transitoriamente, até que a política pública atinja a todos.

Então, na via contrária, por exemplo, quando a Constituição versa que é dever de todos zelar pelo meio ambiente, poderíamos todos responsabilizarmos pelo desmatamento na Amazônia? Creio que não e passo a, linhas gerais, tentar explicar o raciocínio, que parte daquilo que se tem por definição de Constituição cidadã e da diferença entre norma constitucional garantidora de eficácia limitada e norma constitucional onerativa de eficácia limitada.

Para se entender a dicotomia, alguns exemplos são valiosos: no primeiro caso, cito a garantia do direito à greve da coletividade dos trabalhadores do serviço público e, no segundo caso, o dever da coletividade em zelar pelo meio ambiente, com o paradigma do Supremo Tribunal Federal que, no primeiro caso, em sede de mandado de injunção reconheceu a mora do Poder Legislativo em promulgar a lei e, não mais admitindo tal premissa como justificativa para a não efetivação de um direito constitucionalmente previsto, aplicou, até a promulgação da lei, os mesmos parâmetros da greve no setor privado. Vê-se que privilegiou-se o cidadão e o direito constitucionalmente previsto

Já no segundo caso, cito a curiosa tentativa do Ministério Público Federal em Manaus, que propôs ação civil pública intentando obrigar eu e você a plantar árvore, cuja ação foi julgada improcedente em respeito ao princípio constitucional da legalidade expresso no art. 5º, inciso II, da Constituição da República, ou seja, o cidadão tem posição privilegiadíssima e de destaque, pois a seu favor tem o poder de exercitar o direito constitucionalmente previsto ainda não delineado na lei, enquanto que seu dever constitucionalmente previsto necessita de lei para lhe ser cobrado. Trata-se do conceito de norma constitucional onerativa de eficácia limitada.

Nesse ponto, acertou o Constituinte originário, não só porque inimaginável lei complementar criando dever solidário específico de plantar árvore quanto pelo tradicional marasmo e burocrático Congresso Nacional.

3.6. O abuso do direito e a teorização pelo teratológico

Busca-se a justificativa em tolher, gradativamente, o acesso individualizado aos direitos sociais em casos absurdos, tais como pedido de xampu para calvos, fraldas de certa marca, o que configura simples abuso de direito, não devendo servir de parâmetro para quaisquer conclusões.

Trata-se, novamente, de atitude do Poder Público para ridicularizar, fazer chicana com a determinação jurisdicional, sempre lembrando que o Estado é parte nestes processos e que, se há possibilidade de equívocos constantes em decisões judiciais, o que também é reconhecido pelo sistema, tal fato pode ser sanável pela via recursal.

Portanto, não nos parece válido, tampouco científico ambicionar qualquer conclusão utilizando-se, como premissa, exemplos de um ou outro caso que, por si só, já causa estranheza e crítica.


4.AS ALTERNATIVAS PROPOSTAS PELO PROCESSO COLETIVO

4.1. Diálogo forçado?

A primeira solução que o processo coletivo traria seria o debate institucional processual como um meio alternativo, algo como Diálogo dos Poderes a ser previsto em regulamento específico que, supostamente seria melhor para a decisão do “problema”.

Em uma leitura mais atenta, questiona-se: teria o Administrador Público o dever de dialogar? Seria “melhor” o diálogo? Para quem?

Veja-se que o Administrador tem o dever de cumprir ordem judicial, esta emanada do Poder Judiciário que, num caso concreto, verificou a inefetividade de um direito social constitucionalmente previsto, pois o bem jurídico tutelado pertence a um terceiro (jurisdicionado). Seria “melhor” ao jurisdicionado que se aguardasse a decisão coletiva após questionável “Diálogo dos Poderes”?

Daí por que, fiado nessa primeira premissa, afigura-se aprioristicamente prejudicial aos jurisdicionados a discussão dos direitos sociais somente na via coletiva.

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4.2. A sanção individual ou requisito para exercício de direito?

Encampa-se, aqui, a aparente inconstitucional sanção individual àquele que pretende, judicial, processual e individualmente, mesmo após quase 25 (vinte e cinco) anos de promulgação de nossa Constituição da República, demonstrar a flagrante lesão que a inefetividade dos direitos sociais lhe ocasionou.

Ora, o suposto “requisito” para exercício de direito fundamental afigura-se, ainda, como manifesto retrocesso, o que é vedado, levando em conta ser cláusula pétrea, “núcleo duro” da Constituição.

Logo, pouco importa se o direito social será garantido pela via individual ou coletiva, deve ser mantido o amplo acesso à Justiça para que se levem as lesões experimentadas no caso prático ao conhecimento do Judiciário.

4.3. O julgamento “pro-futuro”

Uma vez aceita a função do Poder Judiciário, de garantir a supremacia e efetividade da Constituição, como também desenhada a atuação do Executivo em dispor – quase que livremente - dos recursos financeiros para melhor administrar e gerar receitas para o atingimento dos objetivos da República, afastada deve ser a preocupação consequencialista do Juiz quando na análise de um caso concreto, seja coletivo ou individualizado.

Logo, o compromisso e dever do Poder Judiciário é, repita-se à exaustão, com a efetividade dos direitos sociais, sempre que a essa instituição a questão é levada, sem maiores divagações sobre possíveis impactos econômicos ao Poder Executivo que a sua decisão trará. Versar em sentido contrário colocaria, injustamente, em segundo plano, a ofensa aos direitos dos jurisdicionados em prol de uma discussão de provisionamento de custos, o que deve ser veementemente refutado.

4.4. O estranhamento recíproco entre Judiciário e população

Há, na prática, insofismável e lamentável situação de vida de grande parte da população. Por outro lado, não se pode culpar aquele que, individualmente, busca fazer valer seus direitos. Há, portanto, falta de conhecimento geral da quantidade de direitos prontamente exigíveis do Estado.

Nas imortais palavras de Flávia Piovesan:

Considerando os casos relativos à justiciabilidade dos direitos à saúde e à educação nas Cortes superiores brasileiras, conclui-se ainda ser reduzido o grau de provocação do Poder Judiciário para demandas relacionadas à implementação dos direitos sociais e econômicos. Observa-se também que as demandas judiciais são, em sua vasta maioria, de cunho individual.

[...] O incipiente grau de provocação do Poder Judiciário para demandas que envolvem a tutela dos direitos sociais e econômicos revela a apropriação ainda tímida pela sociedade civil dos direitos econômicos, sociais e culturais como verdadeiros direitos legais, acionáveis e justiciáveis

[...] O incipiente grau de provocação do Poder Judiciário para demandas que envolvem a tutela dos direitos sociais e econômicos no Brasil reflete ainda um ‘estranhamento recíproco’ entre a população e o Poder Judiciário, tendo em vista que ambos apontam o distanciamento como um dos maiores obstáculos para a prestação jurisdicional.[4]

Conclui-se, grosso modo, que deveria ser tomado caminho contrário à limitação do acesso à Justiça individualmente para a efetivação dos direitos sociais, sendo certo que fazer valer a Constituição – e, sobretudo, os objetivos da Constituição da República – é o desafio do século que se apresenta.

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Sobre a autora
André Santos Silva

Advogado. Graduado em Direito pela Universidade Estadual de Londrina - UEL (2011). Pós-graduado em Direito Constitucional Contemporâneo pelo Instituto de Direito Constitucional e Cidadania - IDCC (2012). Mestrando em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Pesquisador do NETI - Núcleo de Estudos em Tribunais e Cortes Internacionais da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Assistente de Direito Constitucional e de Direito Eleitoral da graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, André Santos. Política pública como questão de orçamento: premissa ou paradigma para a evolução do liame individual para o coletivo?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5134, 22 jul. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/36082. Acesso em: 26 abr. 2024.

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