Direito do Consumidor e o fenômeno do superendividamento

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04/02/2015 às 14:55
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5. CRÍTICAS À ATUALIZAÇÃO DO CDC QUANTO AO SUPERENDIVIDAMENTO

Alguns doutrinadores entendem que o atual Código de Defesa do consumidor é arma suficiente para a prevenção e tratamento do superendividamento do consumidor pessoa física. Defendem que a Lei 8.078/90 foi um dos mais importantes códigos brasileiros, não é uma mera lei, mas um microssistema responsável pela intermediação das relações consumeristas como um todo. Para Rizzatto Nunes (2011, s/p):

A lei 8.078/90 funciona muito bem e não precisa de alterações ou atualizações. Necessita sim de apoio para ser mais ainda compreendida e bem aplicada. Ela é de ordem pública e de interesse social, norma geral e principiológica, o que significa dizer que é prevalente sobre todas as demais normas especiais ou gerais que com ela colidirem. Ela inaugurou no sistema jurídico nacional um outro modo de produção legislativa: ingressou de modo a não necessariamente revogar leis anteriores. O que ela faz é tangenciar as relações jurídicas envolvendo consumidores e fornecedores estabelecidas com base em outras normas que continuam em vigor, tornando-as nulas ou inválidas no todo ou na parte que desrespeite seus princípios e regras.

Como se nota, o autor supracitado é radicalmente contrário à atualização do Código de Defesa do Consumidor e se posiciona no sentido de que o código de 1990 não está defasado, ao contrário permanece atual mesmo após muitos anos de vigência, para ele o que há é uma má compreensão e interpretação de seus dispositivos por parte dos operadores do direito em geral, tal posicionamento parte do princípio que o CDC é uma norma de cunho exemplificativo, de modo, que interpretado de maneira extensiva, é capaz de abarcar todas as relações consumeristas existentes, pois, assegura direitos, garantias e prerrogativas aos consumidores.

Segue na mesma linha de raciocínio José Geraldo Brito Filomeno (2011, s/p):

Sua maior e melhor implementação depende, isto sim, da atuação mais incisiva, porém, mas ponderada e objetiva, dos órgãos públicos e das entidades não governamentais de proteção e defesa do consumidor, bem como, e principalmente, dos operadores do direito, com especial ênfase dos órgãos do poder judiciário, não ainda, em grande parte, aptos e preparados para cuidarem dos direitos e interesses abrigados pelo referido código.

Sobre a inclusão da temática do superendividamento no Código de Defesa do consumidor também expõe o autor:

Esse fenômeno, de extensão mundial, responsável, aliás, pelo grande débâcle econômico de 2008, tem no nosso ordenamento jurídico instrumentos adequados tanto para usa prevenção, como para seu tratamento (v. arts. 30. a 33 e 52 do CDC e arts. 783. e ss. Do Código de Processo Civil). Além disso, alguns Tribunais de Justiça do país, como, por exemplo, dos Estados do Paraná e Rio Grande do Sul, instituíram mecanismos mais simples para a resolução de problemas que atingem os superendividados. (grifei)

O jurista enfatiza que o fenômeno do superendividamento possui no ordenamento jurídico brasileiro, em especial na legislação consumerista, mecanismos suficientes para sua prevenção e tratamento, e ainda que a inserção no Código de Defesa do Consumidor de alguns dispositivos, como no caso da prevenção do superendividamento com o acréscimo dos artigos. 54-A, B e C é uma alteração dispensável, vez que o atual artigo 52 cumpre bem esse papel. Vejamos:

A nosso ver cuida-se de dispositivo supérfluo, já que não apenas o art. 31. complementa a ordem de ideias do caput do art. 30, no que tange a informações de oferta e publicidade, tratando, inclusive, de sua forma, como art. 52. do CDC trata, especificamente, dos requisitos específicos no que diz respeito ao consumo de produtos ou serviços mediante outorga de crédito. Resta evidente, outrossim, que os dispositivos do CDC devem ser sempre analisados e interpretados em conjunto e de forma sistêmica, e não isoladamente. Ajunte-se a esses argumentos que o § 1º do art. 37. do mesmo CDC, ao cuidar da publicidade enganosa, no sentido genérico, igualmente prevê essa modalidade lesiva na forma comissiva (afirmação de circunstâncias falsas sobre produtos e serviços) e omissiva (ausência de informações reputadas relevantes).

Segundo Rizzatto Nunes não há a necessidade de atualizar o Código de Defesa do Consumidor a fim de tratar a questão do superendividamento, o Brasil carece de políticas públicas que tenham por objetivo a educação dos consumidores no mercado de consumo, é necessário à conscientização para que as pessoas adquiram produtos, serviços e contratem linhas de crédito, mas de maneira responsável:

E, a questão do superendividamento de um lado, tem a ver com a falta de políticas públicas capazes de educar o consumidor para a aquisição de produtos e serviços financiados ou não e, de outro, já encontra eco nos dispositivos do CDC, que contém regras que servem para a proteção dos consumidores endividados. O pior é que, os consumeristas – dentre os quais eu me encontro – duvidam muito que um tema que possa afetar ainda mais as instituições financeiras possa ser introduzido no CDC, sem que se lhe retirem "pedaços". Devo lembrar que o CDC não tem nada que impeça os bancos e demais agentes financeiros de ganharem muito dinheiro – como comprovam todos os números publicados – e ainda assim eles lutaram na Justiça contra o CDC por 16 anos seguidos em todas as instâncias, perdendo finalmente no STF com o julgamento da Adin dos bancos em 29/9/2006. Quem é que pode garantir que aberta a porta da "atualização" do CDC, não ingressarão por ela as normas atrasadas ou os cortes desejados por aqueles que lutam contra os direitos que estão assegurados?

Outra questão também que se discute quanto à inserção do instituto do superendividamento no Código de Defesa do Consumidor é o fato de que maus pagadores possam se valer da lei, uma vez que o projeto não deixa claro quais os consumidores beneficiados com o tratamento do superendividamento. Sobre o tema prescreve mais uma vez Filomeno:

Por outro lado, ao contrário do que dispõe lei francesa sobre essa questão, não se faz distinção entre o superenvididado passivo (em razão de circunstâncias alheias à sua vontade, como, por exemplo, desemprego, doença grave etc.) e o superenvididado ativo (aquele que se endivida, voluntária e conscientemente, muito além dos seus meios e capacidade de pagamento).

Em resumo, os juristas contrários à atualização do Código de Defesa do Consumidor, argumentam que a Lei 8.078/90 é um dos códigos de proteção do consumidor mais avançados de todo o mundo e, é suficiente, do jeito que está, para regular os problemas ocasionados pelo fenômeno do superendividamento. Criticam a possível atualização da legislação consumerista pátria defendendo que o CDC não precisa ser reformulado ou atualizado, mas sim, melhor interpretado e aplicado na prática pelos juristas, juízes e operadores do direito em geral. E ainda discutem a possibilidade de pessoas mal intencionadas (superendividados ativos) se beneficiarem da lei e continuarem se endividando de forma irresponsável, pois terão uma norma que os protege.


6. CASOS REAIS

Como explanado durante o trabalho monográfico, no Brasil não há legislação específica para a regulamentação do superendividamento do consumidor pessoa física. Como demonstrado também, foi realizada no Estado do Rio Grande do Sul, com a coordenação da professora da Universidade Federal gaúcha Cláudia Lima Marques, pesquisa empírica a fim de verificar a saúde financeira dos consumidores e cujo resultado serviria de base para a feitura do projeto que hoje tramita no Senado Federal como Projeto de Lei 283/2012 para a atualização do Código de Defesa Consumidor Brasileiro pertinente às questões do superendividamento.

Assim discorreu as idealizadoras do Projeto de Tratamento das Situações de Superendividamento do Consumidor (2010, p. 87):

Nos países onde há legislação regulando a matéria, diversas medidas podem ser impostas por um juiz ou terceiro imparcial quando da renegociação global das dívidas entre o consumidor/superendividado e seus credores. Exemplo disto situa-se o reparcelamento do débito, a redução ou o perdão dos juros, a moratória, o perdão total ou parcial da dívida, entre outras medidas.

O sistema jurídico brasileiro ainda não contempla legislação especial sobre o superendividamento, de modo que a conciliação e a mediação são ferramentas que devem ser utilizadas para possibilitar o acesso à Justiça de consumidores que buscam resolver ou minorar os problemas decorrentes do superendividamento.

Com os dados alarmantes encontrados na pesquisa, de que boa parte dos entrevistados estava em situação de extrema inadimplência, foi desenvolvido, em parceria da UFRGS e com as magistradas Larissa Costa de Lima e Káren Bertoncello, um projeto cujo objetivo era identificar consumidores em situação de superendividamento, o grau de superendividamento, os motivos que levaram essas pessoas a se endividarem e ainda buscar junto a todos os credores do superendividado a solução para cada caso. A seguir serão relatados alguns casos que passaram pelo projeto e tiveram resultado satisfatório.

6.1. ALGUNS CASOS NO BRASIL

O caso abaixo transcrito é típico do consumidor superendividado de boa-fé que sempre honrou suas dívidas, no entanto, por um infortúnio, se viu impossibilitado de quitá-las, incluindo nestas, as dívidas de primeira necessidade.

Perfil do Superendividado:

JOSÉ, 32 anos

Casado

4 dependentes

Cobrador

Renda individual mensal: R$ 600,00

Renda familiar mensal: R$ 800,00

Despesas mensais correntes (gastos de subsistência): luz R$ 80,00; água R$ 60,00; alimentação R$ 300,00; pensão alimentícia R$ 100,00; prestação da casa R$ 300,00Valor total da dívida com cada credor: rede de cosméticos nacional R$ 332,93; rede de lojas R$ 356,00; instituição financeira pública R$ 556,04. Caracterização do Caso: José endividou-se em razão de doença pessoal ou familiar. Não estava conseguindo renegociar suas dívidas sozinho (sem o auxílio de um terceiro mediador) com os credores, porque estes só aceitavam o valor à vista e com juros. O pior momento foi quando os cobradores começaram a “bater na porta de casa” e o superendividado recorreu ao Projeto como uma última tentativa de pagar suas dívidas.

Resultado: Na audiência de renegociação conseguiu parcelar com a rede de cosméticos nacional o valor total de R$ 330,00, em 5 parcelas mensais e sucessivas de R$ 66,00; com a rede de lojas o acordo foi firmado para pagamento total de R$ 356,26, sendo uma entrada de R$ 40,00 e 09 parcelas mensais e sucessivas de R$ 35,14. O primeiro credor comprometeu-se a excluir o nome do superendividado do SPC no prazo de 15 dias após o pagamento da primeira parcela; enquanto o segundo credor comprometeu-se a fazê-lo no prazo de 24 horas após o pagamento da entrada. Não conseguiu renegociar com a instituição financeira pública porque o valor proposto pelo banco (entrada de R$ 228,80 e 5 parcelas mensais de R$ 77,53) ainda era muito elevado para seu orçamento. De qualquer sorte, na entrevista realizada após a audiência, o superendividado revelou que sua vida estava melhor porque devia somente para um credor e estava cada vez mais próximo de “limpar o nome” e “andar de cabeça erguida”. Revelou ainda que aprendeu como lição: “pensar antes de fazer novas compras”, “olhar os juros”, “se puder, comprar só à vista”.

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Outro caso que devido o acometimento de doença a consumidora se viu em situação de extrema inadimplência e levado ao projeto gaúcho, diante da tentativa de conciliação restou em acordo:

Perfil do Superendividado:

MARIANA, 43 anos

Divorciada

2 dependentes

Metalúrgica

Renda individual mensal: R$ 1.400,00

Renda familiar mensal: R$ 1.400,00

Despesas mensais correntes (gastos de subsistência): luz R$ 75,00; água R$ 68,00; alimentação R$ 500,00; plano de saúde R$ 15,00; medicamentos R$ 700,00. Valor total da dívida com cada credor: rede internacional de supermercado, rede internacional de supermercado (II), banco privado, rede internacional de cartão de crédito, loja de roupas, instituição financeira pública, farmácia, loja de móveis, cartão de crédito de posto de gasolina, banco privado, banco estatal estadual, lojas de roupas. A consumidora não sabia informar o montante atual de cada dívida.

Caracterização do Caso: Mariana endividou-se em razão de doença pessoal, teve que baixar hospital e era a única pessoa em casa com renda. Não estava conseguindo renegociar suas dívidas sozinha (sem o auxílio de um terceiro mediador) com os credores.

Resultado: Na audiência de renegociação conseguiu devolver a cozinha para a loja de móveis com a respectiva extinção da dívida. Com a credora loja de roupas o acordo foi exitoso para pagamento do valor de R$ 900,00 em 18 parcelas fixas, mensais e sucessivas de R$ 50,00. A segunda credora comprometeu-se a excluir o nome da superendividada do cadastro de inadimplentes após o pagamento da quinta parcela. Com os demais credores, face à ausência dos mesmos, foi redesignada nova audiência de renegociação (o procedimento ainda está em tramitação).

No próximo caso, o consumidor se endividou em razão de doença, que comprometeu o seu orçamento e o impossibilitou de adimplir as dívidas contraídas antes da enfermidade. Procurou o projeto e conseguiu renegociar o débito que mantinha junto à instituição financeira, e ainda que seu nome fosse retirado do cadastro de inadimplentes.

Perfil do Superendividado:

JOSMAR, 68 anos

Divorciado

1 dependente

Funcionário público aposentado

Renda individual mensal: R$ 1.900,00

Renda familiar mensal: a mesma

Despesas mensais correntes: luz R$ 60,00; água R$ 30,00; telefone R$ 60,00; alimentação R$ 400,00; pensão alimentícia R$ 300,00; medicamentos R$ 168,00.Valor total da dívida com cada credor: rede internacional de supermercados R$ 5.900,00.

Caracterização do Caso: Josmar possuía 68 anos de idade, 2º Grau incompleto e estava endividado em virtude de doença e redução de renda. Havia tomado conhecimento do crédito pelo telefone. Não estava conseguindo renegociar suas dívidas sozinho (sem o auxílio de um terceiro mediador) com os credores. O consumidor possuía processo judicial no Juizado Especial Cível contra o credor.

Resultado: Na audiência de renegociação, o acordo foi exitoso mediante pagamento de 18 parcelas fixas, mensais e consecutivas de R$ 181,14. O credor comprometeu-se em retirar os dados do consumidor dos cadastros de inadimplentes após 7 dias contados do pagamento da primeira parcela.

O caso abaixo relata história de um consumidor que gastou mais do que ganha, o chamado endividado ativo inconsciente. Contratou financiamento, com juros altíssimos, e não estava conseguindo pagar as parcelas do empréstimo. Negociou com o credor e conseguiu quitar a dívida.

Perfil do Superendividado:

MARCO AURÉLIO

Viúvo

3 dependentes

Funcionário Público

Renda individual mensal: R$ 644,00

Renda familiar mensal: a mesma

Despesas mensais correntes: luz R$ 45,00; água R$ 38,00; telefone R$ 50,00; alimentação R$ 300,00; educação R$ 280,00.Valor total da dívida com cada credor: banco público R$ 286,17.

Caracterização do Caso: Marco Aurélio endividou-se porque gastou mais do que ganha. Não estava conseguindo renegociar sua dívida sozinho (sem o auxílio de um terceiro mediador) com o credor. Sua dívida já estava vencida, não havia recebido cópia do contrato, estava inscrito em cadastro de inadimplente. Declarou haver tomado conhecimento do crédito através de panfletagem.

Resultado: Na audiência de renegociação, o acordo foi exitoso mediante pagamento à vista de R$ 340,00 abrangendo as dívidas de Contrato Direto ao Consumidor, Cartão de Crédito e Conta-corrente. Após a quitação, as partes concordaram no encerramento na conta.

Verifica-se que os casos de superendividamento tratados no projeto gaúcho são compostos por pessoas que em um dado momento da vida se viram obrigados a deixar de pagar algumas dívidas por razões que não lhe eram previsíveis, como doença na família e desemprego, que na maior parte dos casos ocorria com o responsável pela manutenção do lar.

Com a aceitação do público e o sucesso do projeto, foi possível renegociar as dívidas dos consumidores superendividados, trazer-lhes paz de espírito e reinseri-los no mercado de consumo.

As idealizadoras do projeto defendem que, em sendo o superendividamento regulado pelo Código de Defesa do Consumidor as possibilidades de conciliação entre consumidores e fornecedores será um recurso bastante eficaz na solução para os problemas financeiros das famílias superendividadas e ainda tornará coercitiva a participação dos credores nas audiências de conciliação sejam elas realizadas extra ou judicialmente.

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Sobre a autora
Uilma da Silva Gomes

Graduada em Direito pelo Instituto de Educação Superior Unyahna de Bareiras/BA.<br>Advogada e concurseira.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Monografia apresentada ao Curso de Direito, do Instituto de Educação Superior Unyahna de Barreiras, Curso de graduação em Direito, como pré-requisito para a obtenção do grau de bacharel em Direito.

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