4. O SUPERENDIVIDAMENTO
O consumidor, como já vimos, é a parte mais vulnerável na relação consumerista, por tal motivo merece proteção especial do Estado, tutela conferida ao consumidor brasileiro pelo Código de Defesa do Consumidor. No entanto, com a massificação dos meios de produção e o aumento da oferta de produtos no mercado de consumo, o consumidor continua sendo desrespeitado pelos meios de propaganda apelativos e através de cláusulas abusivas, inseridas pelos fornecedores, propositalmente nos contratos de adesão.
Neste diapasão, com o avanço vertiginoso de produtos cada vez mais completos e repletos de tecnologia, o consumidor se vê obrigado a consumi-los com o propósito de se sentirem dentro de um status imposto, de certa forma, pela sociedade. Esse consumo, na maioria das vezes desenfreado e inconsciente, gera ao consumidor parcelas e mais parcelas que somadas o impossibilitam de adimpli-las.
E a partir do momento em que os consumidores não conseguem honrar as dívidas contraídas desencadeia um problema preocupante para a sociedade de consumo, o superendividamento do consumidor. Superendividamento é o novo conceito para endividamento, pois aquele segundo o Núcleo de Tratamento do Superendividamento do PROCON de São Paulo “é um endividamento superior ao normal e à capacidade do indivíduo em poder honrar com sua renda mensal. É um nível perigoso de endividamento”, o endividamento por sua vez “significa ter dívidas, ou seja, adquirir bens ou serviços parcelados que, no entanto, pode ser compatíveis com a renda, estarem previstas no orçamento doméstico e serem quitadas regularmente”.
Discorrem sobre o tema Cláudia Limas Marques, Clarissa Costa Lima e Káren Bertoncello (2010, p. 07, 08):
Embora seja inegável que o acesso ao crédito constitui ferramenta indispensável para o desenvolvimento das economias modernas, a grande complexidade dessas novas formas de contratação, que envolvem um conjunto intricado de riscos, custos e responsabilidades, acaba por prejudicar a compreensão do consumidor a respeito dos termos e condições do negócio e, consequentemente, dificultar sua avaliação sobre a adequação do contrato a suas necessidades, interesse e, acima de tudo, possibilidades econômicas. Assim, essa assimetria generalizada de informações e conhecimentos potencializa a vulnerabilidade do consumidor, pois, a mais permitir a formação de falsas expectativas sobre os produtos e serviços adquiridos, pode conduzi-lo a escolhas impróprias e de consequências perversas - e não apenas no que tange a seu patrimônio, mas também a sua qualidade de vida, dignidade, saúde e segurança.
E isso é precisamente o que ocorre no chamado superendividamento, vicissitude que afeta a coletividade à proporção que se universaliza a oferta de crédito: verifica-se um grupo expressivo de pessoas físicas que querem, mas se veem impossibilitados de remirem a totalidade de suas dívidas nos termos inicialmente convencionados. Trata-se de revés inevitável, que compõe o risco inerente à atividade financeira e constitui contraponto indissociável do desenvolvimento fundado no crédito. Portanto, não pode ser considerado um problema pontual, individual, e sim uma contingência de responsabilidade da sociedade em geral, um fato coletivo e que encontra causa e manifesta efeitos no mercado como um todo – e, exatamente por isso, não pode ser ignorado.
Além de ser um grande problema social, que condena um número de pessoas cada vez maior à exclusão e a uma existência indigna, cingida ao pagamento perpétuo de uma dívida insolúvel, o superendividamento é também nocivo à economia, por retirar o consumidor do mercado, minimizando seu poder de compra e vedando-lhe novos investimentos. Como se percebe, é um fenômeno bastante complexo e que exige respostas justas e efetivas por parte da sociedade e do Estado, especialmente por meio da instituição de ações de prevenção e tratamento: da segurança jurídica daí proveniente depende o funcionamento sustentável e otimizado do mercado, de forma a garantir ao mesmo tempo o respeito à dignidade da pessoa humana e o desenvolvimento econômico. (grifei)
A questão do superendividamento crônico do consumidor vem ganhando, ainda que timidamente, destaque nas discussões jurídicas sobre direitos do consumidor e a lei que os protege. Tanto é assim, que há no Senado Federal projeto de lei (283/2012) que pretende a atualização da Lei 8.078/90, o Código de Defesa do Consumidor, para inserir em seu contexto além de outros assuntos a proteção do consumidor de boa-fé do temido superendividamento. Como será visto adiante.
4.1. CONCEITO DE SUPERENDIVIDAMENTO
Não se sabe ao certo a origem do superendividamento, mas alguns defendem que sua gênese se deu no período imediatamente posterior a Revolução Industrial, onde as grandes fábricas passaram a produzir em larga escala e o incentivo ao consumo foi um a forma encontrada para escoar a produção fabril. Com o passar dos anos as formas de publicidade e propaganda se aperfeiçoaram - e se aperfeiçoam - tornando-se mais apelativas e influenciando, de forma negativa, o consumidor a adquirir produtos das mais variadas formas, inclusive, conseguindo transformar um bem supérfluo em necessário.
Escreve Sílvio Javier Batello (2006 ,p. 226, 227):
Na maioria dos casos, o superendividamento não se deve a uma única causa, já que o devedor deve fazer frente a um conjunto de obrigações derivadas de aquisição de bens e serviços de primeira necessidade, créditos hipotecários, carros, móveis e etc. e, inclusive, decorrentes do abusivo e incorreto uso do cartão de crédito. Soma-se ainda, causas não econômicas, tais como falta de informação e educação dos consumidores, rupturas familiares, acidentes ou enfermidades crônicas etc.
O que se observa em nosso modelo de sociedade predominantemente consumista é que a irresponsabilidade das instituições financeiras em conceder o crédito, sem averiguar com cautela a possibilidade do consumidor em honrar com o pagamento, associados à oferta desmedida de produtos e serviços, por intermédio das inúmeras ações de marketing, tem promovido à insolvência do consumidor.
Segundo (BERTOCELLO; LIMA, 2010, p. 53):
No Brasil, a penetração do crédito ao consumo ocorreu somente após 1994 com a edição do Plano Real e, mais acentuadamente, nos últimos 5 anos devido a estabilidade econômica e à descoberta de uma parcela da população que estava excluída do sistema formal de crédito. [...] Com efeito, é inegável que o crédito permite resolver o problema do acesso de muitas famílias a bens que são indicadores de qualidade de vida e até mesmo indispensáveis ao bem-estar mínimo das famílias. Não há economista no mundo que duvide da importância do crédito para gerar crescimento, pois ao propiciar o aumento do consumo, obriga as empresas a produzir em maior escala e a empregar mais, aumentando o poder de compra da população, com melhora no seu nível de vida.
Acontece que com o crescimento desmedido da oferta de produtos e serviços no mercado de consumo viu-se a necessidade do aumento da oferta de crédito, das mais diversas espécies como o crédito consignado, o cartão de crédito e o cheque especial. Tal necessidade decorreu do fato de que as famílias, em especial de média e baixa renda, não dispunham de recursos financeiros para a aquisição desses bens e precisavam de linhas de crédito para adquiri-los (quase sempre os financiamentos com juros altíssimos).
Nesse contexto surge o superendividamento, pois as famílias quase sempre não conseguem pagar as dívidas assumidas. Cláudia Lima Marques (2006, p. 211) percussora do tema no país discorre acerca do superendividamento:
O superendividamento do consumidor é, na atualidade, um dos temas mais instigantes e socialmente relevantes, no que respeita à proteção do consumidor. Trata-se de um fenômeno social que assola, por fatores diversos, muitas das sociedades ocidentais, que se caracterizam como sociedades de consumo massificado. Todavia, tratar do superendividamento é tratar de um tema tão antigo quanto o próprio direito.
O que se percebe é que este fenômeno global, não afeta apenas a família em situação de superendividamento, mas diretamente a coletividade, é um problema social. A sociedade acaba sendo fragmentada pelo superendividamento. Se há um grande número de pessoas em situação de inadimplência extrema, o consumo diminui e consequentemente a geração de emprego e renda, o que prejudica o desenvolvimento da sociedade como um todo. Pondera (LIMA; BERTONCELO, 2010, p. 54) que o superendividamento é visto como “fenômeno de massa capaz de desestabilizar a ordem política, econômica e social”.
Nessa esteira, Werlerson Miranda Pereira (2006, p. 163) assevera:
O tratamento do superendividamento se insere na política mais ampla de proteção jurídica do consumidor, e como tal adota igualmente seus métodos e sua lógica: trata-se de fenômenos da sociedade de massas, que afetam não só o interesse individual, mas igualmente o interesse coletivo dos consumidores, e enquanto tal exigem ao mesmo tempo medidas de caráter preventivo e medidas de caráter curativo.
Sabe-se então que o superendividamento é um fenômeno global, predominantemente dos países capitalistas, considerados sociedade de massas, onde o consumo é estimulado a todo o custo. Muito embora, a discussão sobre sua ocorrência seja relativamente recente, o superendividamento, passa longe de ser um problema atual. No entanto, de início, é importante definir o que vem a ser o superendividamento? A doutora Cláudia Lima Marques, (2010, p. 21) traz um conceito objetivo, porém sábio:
O superendividamento pode ser definido como impossibilidade global do devedor-pessoa física, consumidor, leigo e boa-fé, de pagar todas as suas dívidas atuais e futuras de consumo (excluídas as dívidas com o fisco, oriundas de delitos e de alimentos) em um tempo razoável com a sua capacidade atual de rendas e patrimônio. (grifo no original)
Portanto, o superendividamento ocorre quando a renda do consumidor se torna insuficiente para a manutenção básica de sua família e ainda o adimplemento das dívidas adquiridas quando da aquisição de bens. Cláudia Lima Marques complementa o significado de superendividamento discorrendo:
Esta minha definição destaca que o superendividamento é um estado de pessoa física leiga (o não profissional ou o não empresário, que pode falir), um devedor de crédito, que o contraiu de boa-fé, mas que agora encontra-se em uma situação de impossibilidade (subjetiva) global (universal e não passageira) de pagar todas as sua dívidas atuais (já exigíveis) e futuras (que vão vencer) de consumo com a sua renda e patrimônio (ativo) por um tempo razoável (a indicar que teria de fazer um esforço por longos anos, quase uma escravidão ou hipoteca do futuro para poder pagar as sua dívidas).
Por sua vez, Daniel Gomes Ramos (2012, p. 36) afirma que “o superendividamento caracteriza-se pelo endividamento crônico do consumidor, quando as dívidas vencidas e vincendas superam a sua capacidade de pagamento, incluindo seus rendimentos e todos os seus bens”.
Também sobre o tema, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2013, p. 245) lecionam que:
[...] o superendividamento representa a ruína e morte civil do consumidor. Trata-se da impossibilidade global de o devedor leigo e de boa-fé fazer frente ao conjunto de seus débitos atuais e futuros. A capacidade econômica do consumidor se torna inferior ao montante dos débitos atuais e futuros. A capacidade dos débitos, todos estes contraídos para atender às suas necessidades pessoais, entendendo como “necessidades” tudo aquilo que o mercado induziu o indivíduo a acreditar como essencial, mesmo em se tratando de bens supérfluos na maior parte das vezes. (grifo no original)
Nem toda pessoa em situação de inadimplência extrema, se encaixa no conceito de superendividamento delineado pela professora Cláudia Lima Marques e para efeito do tratamento pretendido com a atualização do Código de Defesa do Consumidor. Há várias espécies de superendividado e para que o consumidor nessa situação seja protegido pela lei, entre outros requisitos, é imprescindível que o superendividamento tenha se dado de boa-fé. É o que será explanado a seguir.
4.2. ESPÉCIES DE SUPERENDIVIDADO
Como visto, a lei 8.078/90 traz a definição de consumidor em seu artigo 2°, no entanto, para fins de superendividamento nem todo consumidor é “digno” de amparo. Existem consumidores de todos os tipos, há os conscientes que procuram adquirir apenas o que necessita e o que pode pagar e existem os desenfreados que saem comprando tudo o que veem pela frente e pior, em parcelas.
No próprio conceito de superendividamento dado por Cláudia Lima Marques há a delimitação de consumidor na seara do superendividamento. Com o intuito de esmiuçar a definição e se chegar à classificação dos superendividados, Heloísa Carpena e Rosângela Lunardelli Cavallazzi (2006, p. 329) dispõem:
O superendividado é sempre um consumidor, adotando-se para este fim um conceito ainda mais restrito do que o estabelecido pelo Código de Defesa do Consumidor, visto que não se concede a tutela à pessoa jurídica. Trata-se, portanto, da pessoa física que contrata a concessão de crédito, destinado à aquisição de produtos ou serviço que, por sua vez, visam atender a uma necessidade pessoal, nunca profissional do adquirente. A mais importante característica refere-se à condição pessoal do consumidor, que deve agir de boa-fé.
Percebe-se que apenas os consumidores pessoas físicas se encaixam no conceito que lhes resguardam em caso de superendividamento, as pessoas jurídicas são excluídas dessa proteção. Essa exclusão se dá pelo fato de vigorar no Brasil, a atual lei 11.101, de 2005 que tem por finalidade amparar a pessoa jurídica quando em situação de superendividamento, promovendo a sua recuperação judicial, ou em pior hipótese decretando a sua falência.
Há também o requisito da boa-fé, a chamada boa-fé objetiva que compreende o “estado de ânimo do sujeito, mas como comportamento leal, cooperativo, correto” (CARPENA; CAVALLAZZI, 2006, p. 329), não basta encontrar-se em situação de extremo endividamento é necessário que ele tenha sido ocasionado, de boa-fé, em outras palavras, por motivos alheios à vontade do devedor.
Cláudia Lima Marques (2010, p. 23) faz uma explanação a respeito dessa boa-fé:
Boa-fé: em regra, quando contrata-se o crédito ou adquire-se o produto ou o serviço em prestações o consumidor tem condições de honrar sua dívida. Trata-se de uma boa-fé contratual que é sempre presumida. Em todos os países que possuem leis sobre a prevenção e tratamento do superendividamento dos consumidores, aquele que é protegido é sempre o consumidor pessoa física de boa-fé contratual. A boa-fé é a base do combate ao superendividamento dos consumidores.
Então, quais são as espécies de superendividados? Existem duas modalidades. Os superendividados ativos e os superendividados passivos. Os consumidores superendividados passivos são aqueles que se endividaram por motivos alheios a sua vontade, como divórcio, doença e nascimento de filhos, no momento em que contraíram as dívidas podiam pagar, mas supervenientemente ocorreram fatos que o impossibilitaram de arcar com todas elas. Do outro lado existem ainda os superendividados ativos que são aqueles que compram tudo o que veem pela frente e desde sempre existe o animus de não quitar as suas dívidas.
Há quem entenda que os superendividados ativos ainda se subdividem em ativos conscientes, os quais “tinham plena consciência que não poderia fazer frente às dívidas que contraiu já com a intenção de não quitá-las e em ativos inconscientes que são aqueles que contraíram as dívidas acreditando que poderia saudá-las, ou seja, avaliou mal a sua capacidade de pagamento” (RAMOS, 2012, p. 36). Estes últimos, para os defensores da subdivisão retro mencionada, também merecem amparo frente ao superendividamento.
Clarissa Costa Lima e Káren Bertocello (2010, p. 43) explicam as diferenças entre os consumidores de boa e má-fé usando o direito comparado, vejamos:
Na doutrina estrangeira, encontramos a diferenciação entre o superendividado de boa-fé e o superendividado de má-fé. No primeiro caso estão aqueles consumidores que sofreram um “acidente da vida”, ou seja, que não deram causa ao seu endividamento decorrente de fatores imprevistos. Também estão os consumidores que, em virtude da sua inexperiência ou despreparo, não conseguiram fazer uma boa avaliação da sua capacidade de reembolso antes de assumir novas despesas. Superendividados de má-fé são apenas aqueles que deliberadamente contrataram ou assumiram novas despesas, que sabiam ser incompatíveis com a sua renda, com a intenção de não pagá-las. Os superendividados de má-fé não são admitidos nos procedimentos de tratamento existentes na legislação comparada.
Traçadas as linhas iniciais acerca do superendividamento, delineado a conceituação do instituto e as espécies de consumidores superendividados, passaremos a análise da lei francesa que há alguns anos regula o superendividamento na França e serviu de inspiração quando da feitura do anteprojeto brasileiro sobre a temática.
4.3. LEI FRANCESA QUE INSPIROU O PROJETO DE LEI BRASILEIRO SOBRE O SUPEREENDIVIDAMENTO
O superendividamento é regulamentado em várias partes do mundo, principalmente nos países europeus como a França que já dispõe a muito tempo de lei específica para a prevenção e tratamento do problema. O Código de Consumo Francês, foi criado no ano de 1989 e pela sua relevância e sucesso em sua aplicação, foi utilizada como base para a feitura do projeto de lei pátrio que versa sobre o tema.
A lei francesa, intitulada II Código de Consumo Francês: lei de tratamento das situações de superendividamento foi criada com o propósito de prevenir e também tratar dos casos dos consumidores pessoa física e de boa-fé que se superendividavam e eram de certa forma, excluídos da sociedade de consumo.
O progresso deslanchou no continente europeu junto com os acontecimentos oriundos da revolução industrial e o endividamento do consumidor pessoa física foi um tema de ganhou destaque primeiro no cenário internacional. A França país desenvolvido e de primeiro mundo, ao constatar que grande parte de sua população estava se endividando e ficando em situação de desespero financeiro, após intensos debates em seu parlamento, resolveu sancionar uma lei para tratar especificadamente dos casos de superendividamento.
Pondera Werlleson Miranda Pereira (2010, p. 164, 165) que os principais objetivos da lei em estudo quanto à proteção do consumidor eram “por um lado garantir um consentimento racional e refletido sobre a dimensão global do endividamento em que aquele se engajava; ao mesmo tempo, visava garantir a lealdade nas transações confortando a confiança dos consumidores”.
Ele cita ainda as principais medidas adotadas pela lei francesa com o intuito de prevenir o superendividamento do consumidor. Vejamos:
a) Forma escrita: a imposição de um formalismo contratual, mediante fornecimento de instrumento obrigatoriamente escrito (oferta preliminar) contendo as informações essenciais sobe a modalidade contratual, notadamente a TAEG (Taxa Efetiva Anual Global), vale dizer, uma cifra percentual indicando o valor global do custo da operação - que deve incluir os juros remuneratórios e todos os demais encargos - além das cláusulas gerais contratuais, entre outras; na França, a transgressão a tais normas implica perda do direito à cobrança dos juros convencionais;
- Oferta: mais protetora que a diretiva, a legislação francesa prevê a obrigatoriedade de manutenção da oferta durante pelo menos quinze dias (trinta dias para o crédito da habitação) após envio do instrumento de oferta preliminar, para conferir um prazo suficiente de reflexão acerca do endividamento eminente;
- Reflexão: a diretiva faculta aos estados-membros a estipulação de um prazo de arrependimento (desdito), durante o qual o consumidor pode “retirar-se” do contrato sem justificativa nem indenizações: a França adotou prazo mínimo de sete dias para o seu exercício, após a aceitação da oferta; nos contratos de crédito da habitação esse prazo, denominado “prazo de reflexão” é de dez dias, devendo obrigatoriamente preceder a aceitação do contrato;
- Interdependência contratual: a diretiva, embora sob numerosas condições, estabelece expressamente a interdependência entre o contrato de crédito e o contrato que este visa a financiar; além do mais determina aos estados-membros que disciplinem, nos contratos de “crédito afetado”, a forma de “recuperação” do bem, por exemplo, em caso de resolução do contrato principal por inadimplemento, de modo a evitar enriquecimento sem causa; por sua vez, o legislador francês estabeleceu e interdependência não só nos contratos de crédito ao consumidor, mas igualmente nos de crédito da habitação, e a jurisprudência se encarregou de que a sorte de um siga a mesma sorte do outro;
b) Publicidade: a fim de evitar um endividamento excessivo e garantir a lealdade nos contratos de crédito, procedeu o legislador à regulamentação específica da publicidade, mediante imposição, nos instrumentos publicitários contendo um mínimo de informações atrativas ao crédito, de apresentação do seu custo global representado pela TAEG; na França restringiu-se, ademais, mensagens publicitárias alusivas a “crédito gratuito”, implicando a transgressão a tais normas sanções penais e multa e, conforme o caso, de prisão;
- Juros: além da já mencionada obrigação de informação por escrito e anterior à conclusão contratual dos juros, a diretiva determina especialmente que, nos contratos de abertura de crédito em conta (limite em cheque especial), ou em casos de saque a descoberto, sejam informados por escrito o limite de crédito permitido e a taxa anual de juros sempre que houver alteração; homenageando a boa-fé, o legislador francês foi além das previsões comunitárias e impôs um teto do percentual para os juros, sancionando civil e penalmente a prática de usura;
- Reembolso antecipado: enfim, entre outras medidas, o direito de reembolso antecipado do montante do crédito, sem indenizações ou sob reduzido percentual regulamentar, caso o consumidor tenha interesse em extinguir suas dívidas antes mesmo do termo previsto, sobretudo em épocas de variação acentuada dos juros de mercado.
Há pontos na lei francesa que merecem maior destaque, entre eles estão: a obrigatoriedade do contrato escrito, que tem por base o direito de informação do consumidor. No contrato, deve estar explícito, por exemplo, a taxa total anual de juros e os todos os encargos oriundos do negócio. A oferta deve ter um prazo mínimo de vigência, para proporcionar ao consumidor um prazo para que este reflita acerca da necessidade da aquisição do bem e a sua possibilidade de pagamento, nos contratos de forma geral foi estabelecido um prazo mínimo de sete dias, enquanto para os contratos de habitação, para a aquisição de bens imóveis destinados a moradia, este prazo foi fixado em no mínimo dez dias.
Outro ponto importante da lei francesa que se assemelha ao mercado brasileiro é a regulamentação da publicidade para o consumo. O Código de Consumo Francês estabeleceu critérios para a propaganda de produtos e serviços. Além de outras medidas, foi imposta aos fornecedores a restrição de mensagens publicitárias que objetivavam ludibriam o consumidor, como, por exemplo, expressões que fizessem alusão a crédito gratuito e sem juros.
A lei francesa estabelece o dever de aconselhamento do fornecedor e Heloísa Carpena e Rosângela Lunardelli Cavallazzi (2006, p. 335, 336) discorrem sobre o tema:
[...] a doutrina francesa criou a figura do dever de aconselhamento, ou obrigação de conselho que implica no dever de revelar ao consumidor os prováveis problemas da operação de crédito a curto e longo prazos, prevenindo-o e sugerindo soluções possíveis. Trata-se de personalizar a informação, cabendo ao fornecedor considerar não as características do homem-médio, mas daquele consumidor determinado, transmitindo a ele, de forma mais simples e compreensível, os riscos e as variáveis que envolvem a operação de crédito ao consumo.
Com as medidas adotadas, percebe-se a preocupação do legislador francês, diante do aumento de casos de superendividamento dos consumidores, uma vez que, também estabeleceu sanções cíveis e criminais aos fornecedores, em especial os de crédito, que descumprissem o estabelecido na lei. E como visto adiante, a lei francesa em estudo, serviu de base e de inspiração para o desenvolvimento do projeto de lei brasileiro nº 283/2012, claro que com adaptações necessárias a realidade brasileira.
4.4. O ANTEPROJETO BRASILEIRO PARA ALTERAÇÃO DO CDC VISANDO A PROTEÇÃO DO SUPERENDIVIDADO
No Brasil apesar da discussão sobre o tema não ser recente, apenas há pouco tempo se cogitam a atualização do Código de Defesa do Consumidor para a regulamentação da prevenção e proteção ao superendividamento. Como não há no país legislação específica para o caso, o consumidor em situação de superendividamento recorre ao poder judiciário na tentativa de solução do seu problema financeiro, no entanto, quase sempre não obtém o retorno esperado. O judiciário está abarrotado de processos das mais diversas naturezas, e as ações versando sobre o endividamento das pessoas físicas contribuem para esse caos.
Segundo Clarissa Costa Lima e Káren Bertoncello (2010, p. 56):
Não obstante a tutela das normas imperativas do Código de Defesa do Consumidor que visam ao reequilíbrio do contrato, na prática, as operações financeiras e bancárias continuam sendo realizadas com juros remuneratórios superiores e, em muitos casos, extorsivos, se considerada a realidade brasileira. Além disso, a prática da novação, vulgarmente identificada como renegociação de dívida, implicava o aumento exorbitante da dívida com a inclusão de encargos abusivos que culminaram por agravar as situações de superendividamento do consumidor.
Neste cenário, os consumidores passaram, individualmente, a buscar solução no Poder Judiciário visando, especialmente, à redução dos juros a patamares razoáveis. Milhares de ações revisionais foram ajuizadas, [...].
No entanto, o recurso às ações revisionais revelou tratar-se de solução momentânea e paliativa[...].
Ademais, a revisão contratual é instrumento processual restrito à individualidade dos contratos e perante um dos credores, nos moldes que vem sendo utilizada judicialmente [...].
Para elas, as ações revisionais não surtem o efeito esperado, uma vez que “revelam um remédio paliativo, pois muitas vezes essas ações não obtêm sucesso e, quando o conseguem, estará o consumidor discutindo um a um seus contratos, ou seja, suas dívidas, de forma fragmentada e não global” (LIMA; BERTONCELLO, 2006. p. 201).
A principal doutrinadora do tema no Brasil, Cláudia Lima Marques, importante jurista e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, preocupada com o atual cenário nacional e percebendo a necessidade de estudos mais completos sobre o superendividamento, coordenou uma pesquisa empírica desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Direito da UFRGS em conjunto com o Núcleo Civil da Defensoria Pública gaúcha, onde constatou dados alarmantes, como bem citou (BERTOCELLO; LIMA, 2010, p. 57):
[...] preponderância da atuação do superendividado passivo no cenário regional, dada a prevalência de causas identificadas como “acidentes da vida” (“desemprego 36,2%, doenças e acidentes 19,5%, divórcio 7,9%, morte 5,1% e outros, como nascimento de filhos, 9,4%”); 46% dos entrevistados estavam na faixa etária entre 40 e 60 anos, sendo outros 11% idosos, acima de 60 anos de idade.
A pesquisa foi realizada com o propósito de oferecer dados ao Ministério da Justiça para a elaboração de um projeto de lei que tratasse do assunto, no entanto, levando em consideração o resultado obtido com o estudo, mesmo com a ausência de legislação específica, foi instaurado no Rio Grande do Sul, inicialmente nas comarcas de Charqueadas e Sapucaia do Sul, um projeto-piloto para tratar das questões do superendividamento.
Clarissa Costa Lima e Káren Bertoncello (2010, p. 58) expõem que:
No ordenamento jurídico nacional, o credor dispõe da previsão contida no Código de Processo Civil (artigos 748 a786), para a hipótese de insolvência civil do devedor pessoa física e não comerciante quando as dívidas excederem a importância dos bens do devedor. Todavia, não se trata de um sistema de tratamento de superendividamento, uma vez que configura uma modalidade de execução por quantia certa contra o devedor [...].
Nesta espécie de execução, as causas geradoras do superendividamento não são investigadas, seu principal objetivo é acertar e definir o estado patrimonial do devedor e declarar quais são os credores que participarão do resultado da execução coletiva. Em outras palavras, não há qualquer semelhança com os sistemas de alívio encontrados no Direito Comparado e sequer visa a prevenir os problemas sociais relacionados ao superendividamento. (grifei)
O projeto tem como objetivo mediar à renegociação das dívidas do consumidor superendividado com todos os seus credores, de forma amigável, de acordo com seu orçamento familiar, de modo a garantir a subsistência básica de sua família (mínimo vital).
O projeto consiste em várias etapas e a instauração do procedimento depende da iniciativa voluntária do consumidor, maior de idade e absolutamente capaz, e ainda é facultada a assistência de advogado. De início a renegociação da dívida ocorre de maneira extrajudicial, até mesmo com o fim de não levar a contenda ao poder judiciário, contribuindo assim para o seu desafogamento.
Basicamente o projeto inicia-se por iniciativa do próprio consumidor pessoa física que está superendividado, ele vai até o fórum preenche um formulário denominado de formulário- petição, onde expõe a sua situação social e econômica e também dispõe o rol de seus credores. Após, os credores são convidados para uma audiência de renegociação por meio de carta-convite.
Na data marcada reúnem-se todos os credores juntamente com o consumidor, “trata-se de audiência conjunta, na qual a mediação é realizada com todos os credores e o superendividado, na mesma oportunidade, a fim de preservar a agilidade do Projeto e a garantia da preservação do mínimo existencial do superendividado” (BERTOCELLO; LIMA, 2010, p. 66). Esta renegociação pode consistir no parcelamento, diminuição de encargos e até mesmo a remissão parcial ou total da dívida.
Após a audiência, extrajudicial ou judicial, e havendo êxito na renegociação, o acordo será homologado pelo Juiz de Direito que coordena o projeto e o acordo valerá como título executivo judicial. Ainda é importante citar as palavras de Clarissa Costa Lima e Káren Bertoncello (2010, p. 66, 67) a respeito do projeto:
A ata de audiência de renegociação é redigida em documento único, com a identificação de cada credor individualmente, valor da dívida, forma de pagamento, encargos para a hipótese de descumprimento. Na conciliação processual, é registrado na ata a suspensão ou extinção do processo pendente. No que diz com a competência para a execução do título executivo resultante do acordo ou quaisquer dúvidas dele advinda eleição do Foro do domicílio do consumidor como o competente, em respeito às normas de ordem pública e de interesse social destinadas às relações de consumo, artigo 1° e 101, inciso I, ambos do Código de Defesa do Consumidor.
Além disso, são registrados em ata alguns efeitos específicos que tiveram inspiração na legislação francesa, os quais reforçam a responsabilidade do superendividado no cumprimento do pactuado, sendo este advertido quanto à sua observância na mesma solenidade. São Eles: As dívidas vencerão antecipadamente caso o superendividado:
Preste dolosamente falsas declarações ou produza documentos inexatos com o objetivo de utilizar-se dos benefícios do procedimento de tratamento da situação de superendividamento; dissimule ou desvie a totalidade ou parte de seus bens com o objetivo de fraudar credores ou a execução; sem o acordo de seus credores, agrave a situação de endividamento mediante a obtenção de novos empréstimos ou pratique atos de disposição de seu patrimônio durante curso do procedimento de tratamento da situação de superendividamento.
Mas, não ocorrendo acordo entre os credores e o consumidor no procedimento paraprocessual, o superendividado é orientado a procurar as vias ordinárias, quais sejam a justiça comum estadual ou os juizados especiais cíveis, dependendo do seu grau de endividamento. Em não havendo êxito no acordo processual/judicial o processo prosseguirá os tramites normais do Código de Processo Civil.
O projeto-piloto obteve resultado satisfatório, chegando a índices surpreendentes de acordos entre os consumidores e seus credores, sendo por essa razão, agraciado com o Prêmio Innovare, prêmio que contempla projetos inovadores que contribuem com a melhoria da justiça brasileira. O projeto gaúcho deu tão certo que também foi implantado em outros estados do país como Paraná e Pernambuco. Inspirado no direito europeu, mais precisamente no Código de Consumo Francês, o projeto-piloto serviu também de base para a feitura do projeto de lei 283/2012 que tem por objetivo a atualização do Código de Defesa do Consumidor inserindo em seu bojo a figura do superendividamento.
Para a elaboração do projeto de lei, houve a contribuição de importantes juristas como Cláudia Lima Marques, Kazuo Watanabe e Roberto Augusto Pfeiffer e ainda o ministro do Superior Tribunal de Justiça Herman Benjamin. Em entrevista concedida a Revista Consultor Jurídico, Pfeiffer enfatizou que o superendividamento não é abordado pelo atual CDC. Até a década de 90 o acesso ao crédito era restrito às classes A e B e havia o problema da hiperinflação, hoje vivemos outra situação e há uma relação direta entre o acesso ao crédito e o fenômeno do superendividamento.
Entre os principais pontos do projeto de lei brasileiro merecem destaque: criar mecanismos de prevenção e tratamento tanto extrajudicial como judicial do superendividamento, como também a proteção do consumidor pessoa física, com o intuito de preservar o mínimo existencial e a dignidade humana das famílias superendividadas; o art. 54-A tem por finalidade a prevenção o superendividamento da pessoa física, a promoção do crédito responsável e à educação financeira do consumidor, tudo norteado pelos princípios da boa-fé, da função social do crédito e ainda o respeito à dignidade da pessoa humana.
O projeto de lei traz ainda, deveres aos fornecedores de crédito, que além de observarem o já disposto no artigo 52 da lei 8.078/90, devem ainda entregar ao consumidor cópia do contrato no qual deverá conter, entre outras, informações como:
I – o custo efetivo total e a descrição dos elementos que o compõem;
II – a taxa efetiva mensal de juros, a taxa dos juros de mora e o total de encargos, de qualquer natureza, previstos para o atraso no pagamento;
III – o montante das prestações e o prazo de validade da oferta, que deve ser no mínimo de dois dias;
IV – o nome e o endereço, inclusive o eletrônico, do fornecedor;
V – o direito do consumidor à liquidação antecipada do débito.
Tem-se constatado que muitas pessoas se endividam devido ao grande apelo de marketing utilizado pelos fornecedores, em especial de crédito. O consumidor, influenciado pelo bombardeio de “ofertas mascaradas”, não analisam se essa despesa cabe em seu orçamento, adquire o crédito ofertado e mais tarde descobre que não pode pagá-lo. O projeto de lei, como também prevê a lei francesa, vem regulamentar ainda essa questão. Em seu artigo 54-B § 4° dispõe que:
§ 4º É vedado, expressa ou implicitamente, na oferta de crédito ao consumidor, publicitária ou não:
I – formular preço para pagamento a prazo idêntico ao pagamento à vista;
II – fazer referência a crédito “sem juros”, “gratuito”, “sem acréscimo”, com “taxa zero” ou expressão de sentido ou entendimento semelhante;
III – indicar que uma operação de crédito poderá ser concluída sem consulta a serviços de proteção ao crédito ou sem avaliação da situação financeira do consumidor;
IV – ocultar, por qualquer forma, os ônus e riscos da contratação do crédito, dificultar sua compreensão ou estimular o endividamento do consumidor, em especial se idoso ou adolescente.
De acordo com a proposta, cabe ainda ao fornecedor de crédito orientar o consumidor sobre o produto ofertado, como também analisar com cautela se aquele consumidor dispõe de aparato financeiro para o pagamento do crédito adquirido, e em caso dos fornecedores não atenderem as exigências contidas na lei poderão ser punidos. Essas obrigações vêm elencadas no artigo 54-C, in verbis:
Art. 54-C. Sem prejuízo do disposto no art. 46, no fornecimento de crédito, previamente à contratação, o fornecedor ou o intermediário devem, entre outras condutas:
I – esclarecer, aconselhar e advertir adequadamente o consumidor sobre a natureza e a modalidade do crédito oferecido, assim como sobre as consequências genéricas e específicas do inadimplemento;
II – avaliar de forma responsável e leal as condições do consumidor de pagar a dívida contratada, mediante solicitação da documentação necessária e das informações disponíveis em bancos de dados de proteção ao crédito, observado o disposto neste Código e na legislação sobre proteção de dados;
III – informar a identidade do agente financiador e entregar ao consumidor, ao garante e a outros coobrigados uma cópia do contrato de crédito.
§ 1º A prova do cumprimento dos deveres previstos neste Código incumbe ao fornecedor e ao intermediário do crédito.
§ 2º O descumprimento de qualquer dos deveres previstos no caput deste artigo, no art. 52. e no art. 54-B, acarreta a inexigibilidade ou a redução dos juros, encargos, ou qualquer acréscimo ao principal, conforme a gravidade da conduta do fornecedor e as possibilidades financeiras do consumidor, sem prejuízo de outras sanções e da indenização por perdas e danos, patrimoniais e morais, ao consumidor.
Por fim, mas não menos importante, o projeto de lei 283/2012, propõe a inserção do capítulo V no CDC com o título “da conciliação no superendividamento”. Este capítulo traz o procedimento para o tratamento da situação de superendividamento do consumidor, este procedimento é semelhante ao adotado pelo projeto-piloto acima descrito.
Inicia-se com a iniciativa do consumidor, no entanto, diferentemente do projeto gaúcho, este seria instaurado pelo juiz de direito e marcada uma audiência de conciliação presidida pelo próprio magistrado ou por conciliador habilitado no juízo e caberá ao consumidor apresentar proposta para o pagamento de todos os seus credores, com prazo de pagamento não superior a cinco anos. Vejamos o trecho na íntegra:
Art. 104-A A requerimento do consumidor superendividado pessoa física, o juiz poderá instaurar processo de repactuação de dívidas, visando à realização de audiência conciliatória, presidida por ele ou por conciliador credenciado no juízo, com a presença de todos os credores, em que o consumidor apresentará proposta de plano de pagamento com prazo máximo de cinco anos, preservado o mínimo existencial.
§ 1º Entende-se por superendividamento o comprometimento de mais de trinta por cento da renda líquida mensal do consumidor com o pagamento do conjunto de suas dívidas não profissionais, exigíveis e vincendas, excluído o financiamento para a aquisição de casa para a moradia, e desde que inexistentes bens livres e suficientes para liquidação do total do passivo.
§ 2º O não comparecimento injustificado de qualquer credor, ou de seu procurador com poderes especiais e plenos para transigir, à audiência de conciliação de que trata o caput deste artigo acarretará a suspensão da exigibilidade do débito e a interrupção dos encargos da mora.
§ 3º No caso de conciliação, com qualquer credor, a sentença judicial que homologar o acordo descreverá o plano de pagamento da dívida, tendo eficácia de título executivo e força de coisa julgada.
§ 4º Constará do plano de pagamento:
I – referência quanto à suspensão ou extinção das ações judiciais em curso;
II – data a partir da qual será providenciada exclusão do consumidor de bancos de dados e cadastros de inadimplentes;
III – condicionamento de seus efeitos à abstenção, pelo consumidor, de condutas que importem no agravamento de sua situação de superendividamento.
§ 5º O pedido do consumidor a que se refere o caput deste artigo não importa em declaração de insolvência civil e poderá ser repetido somente após decorrido o prazo de dois anos, contados da liquidação das obrigações previstas no plano de pagamento homologado, sem prejuízo de eventual repactuação.
Os idosos, consumidores ainda mais vulneráveis, também são seduzidos pela grande oferta de empréstimos consignados, quando as parcelas já são descontadas diretamente no benefício, trazendo aos bancos e financeiras certeza de retorno do crédito emprestado, o chamado risco zero. No entanto, há idosos que possuem tantos empréstimos que não recebem o suficiente para a sua manutenção básica, sem contar que a aposentadoria deles, em muitas vezes, corresponde à única renda de toda a família.
Diante disso, o projeto de lei ainda prevê uma alteração na Lei 10.741/03, permitindo às concedentes de crédito que neguem empréstimo ao idoso se este estiver em situação de superendividamento. Esta previsão acrescenta ao Estatuto do Idoso, o parágrafo 3° ao artigo 96, que disporá: “§ 3° Não constitui crime a negativa de crédito motivada por superendividamento do idoso”.
Em síntese o projeto de lei 283/2012, visa à reinserção do consumidor superendividado na sociedade de consumo e até mesmo servirá para impedir a estagnação da economia brasileira, pois se há um grande número de pessoas em situação de inadimplência extrema, essas pessoas são excluídas do meio do consumo, sem consumo muitos outros ramos da sociedade enfraquecem, em especial a economia que é fator primordial para o desenvolvimento de um país capitalista como o nosso.
4.4.1. Justificativa para a sua criação
A principal justificativa para a atualização do Código de Defesa do Consumidor é sem dúvida a grande incidência do superendividamento no país e a falta de regulamentação do tema, que deixa o consumidor superendividado sem amparo legal específico até mesmo para ingressar com uma ação judicial objetivando retirar-se da situação de superendividamento, além disso, será de suma importância para aos magistrados que terão embasamento legal quando fundamentar as suas decisões em casos já existentes no judiciário, como as inúmeras ações revisionais propostas todos os anos no país. Destacando-se ainda a busca da prevenção e redução de sua ocorrência.
Nesta esteira, importante destacar alguns pontos da justificativa dada pelo Senador José Sarney, quando da apresentação do projeto de lei n° 283/2012:
O projeto de lei ora apresentado objetiva atualizar o Código de Defesa do Consumidor (CDC), incluindo normas principiológicas referentes ao importante tema da concessão de crédito ao consumidor – que é base das economias de consumo nos países industrializados e agora está em ascensão no Brasil – e ao consequente tema da prevenção do superendividamento dos consumidores, problema comum em todas as sociedades de consumo consolidadas e saudáveis.
Entre outras justificativas, o Senador José Sarney trouxe como objetivo do projeto de lei a atualização do CDC, inserindo o instituto do superendividamento, pois segundo ele, constitui problema crescente no Brasil, que merece ser tratado de forma mais específica e pontual pela legislação consumerista, a fim de se ter mecanismos de prevenção e diminuição deste fenômeno global. Argumenta também que a atualização da Lei 8.078/90, visa à proteção especial de consumidores mais vulneráveis, como os idosos e os analfabetos que quase sempre são enganados pelo fornecedor concedente de crédito. Ainda, traz regras para a preservação do mínimo existencial, quando os descontos oriundos de concessão de crédito forem negociados para desconto direto do salário do consumidor.
Cria também a figura do assédio de consumo, protegendo de forma especial os consumidores idosos e analfabetos, estabelecendo regras básicas para a publicidade de crédito, ao proibir a referência a crédito “sem juros”, “gratuito” e semelhantes, de forma que a publicidade não oculte os ônus da contratação a crédito.
[...] Garante a preservação de parte da remuneração do consumidor que represente o “mínimo existencial”, em especial se o pagamento do crédito envolver autorização prévia do consumidor pessoa física para débito direto em conta corrente, consignação em folha de pagamento, ou qualquer modo que implique reserva de parte da remuneração.
No dia 26 de março de 2014, foi aprovado por unanimidade o relatório final para a atualização do Código de Defesa do Consumidor, o autor Senador Ricardo Ferraço, destacou que seu relatório pede restrições à publicidade de crédito, limites à contratação de crédito consignado, limites à contratação de crédito e regras mais rígidas para a publicidade destinada às crianças. Defendeu ainda que o principal “objetivo da atualização do CDC é trazê-lo a nova realidade social, econômica e tecnológica, de forma a construir relações éticas e equilibradas entre quem compra e quem vende produtos e serviços de qualquer tipo”.
4.4.2. Importância da tipificação
No Brasil, os julgados que tratam sobre o superendividamento, em sua grande parte, procedem dos Tribunais do Rio Grande do Sul, Estado pioneiro na discussão do tema. Como exposto, partiu do Estado à iniciativa para pesquisa e desenvolvimento de projetos na área. Neste sentido um entendimento do TJRS:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. SERVIDOR PÚBLICO ESTADUAL. DESCONTO EM FOLHA DE PAGAMENTO. LIMITAÇÃO. SUPERENDIVIDAMENTO. PRESERVAÇÃO DO MÍNIMO EXISTENCIAL. Pedido formulado por servidor estadual de cancelamento dos descontos em folha de pagamento das parcelas relativas a empréstimos intermediados por associação de classe. Revisão da posição do relator, diante do novo entendimento jurisprudencial majoritário do 2º Grupo Cível, reconhecendo a validade da cláusula de autorização dos descontos direto em folha de pagamento, mas limitando a sua eficácia ao percentual máximo de 30% sobre os vencimentos brutos do servidor, aplicando analogicamente a legislação estadual acerca do tema. Preservação do mínimo existencial, evitando que o superendividamento coloque em risco a subsistência do servidor e de sua família, ferindo o princípio da dignidade da pessoa humana. Doutrina e jurisprudência. PROVERAM PARCIALMENTE O RECURSO POR MAIORIA. DECISÃO MODIFICADA.”
(Agravo 134 Caderno de Investigações Científicas de Instrumento Nº 70019038611, Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Paulo de Tarso Vieira Sanseverino, Julgado em 31/05/2007). (grifei)
Os poucos julgados sobre o tema, enfatizam a preservação do mínimo existencial, qual seja, a renda necessária para que o superendividado viva de maneira digna e consiga manter suas necessidades básicas, como alimentação e vestuário, garantindo desta forma, a sua dignidade humana. Outro julgado do TJRS deixa clarividente a indispensabilidade de se preservar o mínimo existencial e em consequência o resguardo do princípio da dignidade da pessoa humana:
DECISÃO MONOCRÁTICA. AGRAVO DE INSTRUMENTO. SERVIDOR PÚBLICO ESTADUAL. DESCONTO EM FOLHA DE PAGAMENTO. LIMITAÇÃO. SUPERENDIVIDAMENTO. PRESERVAÇÃO DO MÍNIMO EXISTENCIAL. Limitação das consignações facultativas e obrigatórias nos vencimentos dos servidores públicos estaduais em 70% da sua remuneração mensal bruta. Preservação do mínimo existencial em consonância com o princípio da dignidade humana. Aplicação do art. 15. do Decreto 43.337/2004 com a redação dada pelo art. 3º do Decreto n. 43.574/2005. Ocorrência de extravasamento no caso concreto. Antecipação de tutela concedida em caráter limitado, provimento do recurso para ampliar a antecipação, incluindo descontos já autorizados. RECURSO PROVIDO. DECISÃO MODIFICADA.
(Agravo de Instrumento Nº 70027698315, Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Paulo de Tarso Vieira Sanseverino, Julgado em 28/11/2008). (grifei)
No Estado do Rio de Janeiro, os julgados sobre o tema estão começando a dar ênfase à necessidade de se preservar o mínimo existencial ao superendividado para que este consiga renegociar e pagar as suas dívidas, saindo do rol de superendividados e ao mesmo tempo para que sobreviva de maneira digna:
APELAÇÕES CÍVEIS. SERVIÇO BANCÁRIO. RELAÇÃO DE CONSUMO. DESCONTO DE PARCELAS MENSAIS RELATIVAS A CRÉDITO CONSIGNADO E CHEQUE ESPECIAL. SUPERENDIVIDAMENTO. Sentença que determinou a limitação de descontos na conta bancária da autora consumidora a 30% de seus proventos mensais. Possibilidade de limitação. Preservação do mínimo existencial. Princípio constitucional da dignidade (art. 1°, inciso III CF/88). Boa-fé objetiva nas relações de consumo que impõe conduta de lealdade e cooperação com o hipossuficiente. Art. 4° III CDC. Dano Moral não configurado. Precedentes jurisprudenciais. Recursos a que negam provimento. (Apelação N° 0009873-64.2006.8.19.0210, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RJ, Des. Cristina Tereza Gaulia, Julgado em 12/04/2011).
O Supremo Tribunal Federal no Agravo de Instrumento n° 1.216.568-MG (2009/0150013-9), também entendeu ser indispensável garantir ao consumidor superendividado o mínimo existencial como requisito para a garantia da dignidade humana:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. CRÉDITO CONSIGNADO. CONTRATO DE MÚTUO. DESCONTO EM FOLHA DE PAGAMENTO. POSSIBILIDADE. LIMITAÇÃO DA MARGEM DE CONSIGNAÇÃO A 30% DA REMUNERAÇÃO DO DEVEDOR. SUPERENDIVIDAMENTO. PRESERVAÇÃO DO MÍNIMO EXISTENCIAL. VIOLAÇÃO AO ART. 535, II, DO CPC. INOCORRÊNCIA. 1. Ausência de maltrato ao art. 535, II do Código de Processo civil quando do acórdão recorrido, ainda que de forma sucinta, aprecia com clareza as questões essenciais ao julgamento da lide, não estando o magistrado obrigado a rebater, um a um, os argumentos deduzidos pelas partes. 2. Validade da cláusula autorizadora do desconto em folha de pagamento das prestações do contrato de empréstimo, não configurando ofensa ao art. 649. do Código de Processo civil. 3. Os descontos, todavia, não podem ultrapassar 30% (trinta por cento) da remuneração percebida pelo devedor. 4. Preservação do mínimo existencial, em consonância com o princípio da dignidade humana. 5. Precedentes específicos. AGRAVO DE INSTRUMENTO DESPROVIDO.
(Agravo de Instrumento n° 1.216.568-MG (2009/0150013-9), STJ, Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino) (grifei)
O problema do superendividamento é tão grave que no Brasil entrou em vigor no ano de 2005 a lei de recuperação judicial e falência das empresas, que surgiu da necessidade de ter no âmbito empresarial um mecanismo que permita a viabilidade da empresa em crise, ou em situação de superendividamento. Já quanto à falência, ou melhor, o estado de superendividamento das pessoas físicas não há lei específica que o regulamente. Portanto, é de urgente e extrema importância a sua tipificação no ordenamento jurídico brasileiro, assim, o Poder Judiciário terá instrumentos efetivos para a prevenção e tratamento de sua ocorrência.
Como não poderia deixar de ser, Cláudia Lima Marques (2010, p. 21) defensora ferrenha da tipificação do superendividamento, discorre acerca da inclusão do tema no Código de Defesa do Consumidor dando exemplo do que ocorreu no direito empresarial:
Este estado de superendividamento dos consumidores pessoas físicas de boa-fé é um fenômeno social e jurídico, a necessitar algum tipo de saída ou solução pelo Direito do Consumidor, a exemplo do que aconteceu com a falência e concordata no Direito da Empresa, seja o parcelamento, os prazos de graça, a redução dos montantes, dos juros, das taxas, e todas as demais soluções possíveis para que possa pagar ou adimplir todas ou quase todas as suas dívidas, frente a todos os credores, fortes e fracos, com garantias, privilégios, créditos consignados ou não. Em resumo, necessitamos de uma lei que tente prevenir o superendividamento dos consumidores e preveja algum “tratamento” ou remédios caso o consumidor (e sua família, pois acaba sempre sendo um problema familiar) caia em superendividamento. (grifei)
Geraldo de Faria Martins da Costa (2010, p. 242-244) defende piamente a necessidade da atualização do Código de Defesa do Consumidor no tocante a regulamentação do superendividamento. Não só isso sustenta também que esta atualização tenha por objetivo aprimorar o CDC quanto às operações de crédito, além das disposições que estão previstas de forma superficial na atual lei. Neste sentido, escreve:
No Brasil, a necessidade de tratar do consumidor superendividado já é uma realidade na doutrina e na jurisprudência, que se esforçam para interpretar e aplicar o Código de Defesa do Consumidor.
Todavia, o direito brasileiro carece ainda de uma legislação mais específica que possa enfrentar o problema social do superendividamento do consumidor [...].
1. É preciso que direito o brasileiro, a exemplo do direito comparado, adote medidas legislativas que tenham por objetivo específico a diminuição dos perigos que envolvem as operações de crédito, indo além daquelas já instituídas pelo Código de Defesa do Consumidor. 2. É preciso adotar medidas legislativas que previnam o superendividamento dos consumidores. 3. É preciso adotar medidas legislativas que instituam o tratamento dos consumidores em situação de superendividamento. 4. Que estas medidas sejam também adotadas no âmbito do Mercosul. (grifo no original)
Vislumbra-se ainda a importância da prevenção do superendividamento. Em verdade não será resolvido o problema, se simplesmente for colocado à disposição do consumidor, proteção quando este já se encontrar no estado de superendividamento, é necessário à busca da prevenção para que as pessoas não mais se superendividem e se tornem consumidores conscientes.
Escreve Silvio Javier Batello (2006, p. 227) que:
Nesse diapasão, a massificação da oferta do crédito para o consumo e o fato de que o superendividamento dos consumidores assume proporções cada vez maiores e mais preocupantes levam à necessidade de estabelecer um regime jurídico específico para a prevenção e tratamento do superendividamento do consumidor, tanto no plano teórico quanto no plano normativo, principalmente no caso de países em desenvolvimento como o Brasil.
A sociedade de consumo brasileira necessita de lei específica para a questão do superendividamento. O Código de Defesa do Consumidor não é suficiente para resguardar o consumidor dessa realidade preocupante.
Neste mesmo prisma, Marques apud Clarissa Costa de Lima e Káren Bertoncello (2010, p. 141) discorre:
[...] a expansão do crédito ao consumo sem uma legislação forte que acompanhasse essa massificação, a não ser o Código de Defesa do Consumidor e o princípio geral de boa-fé, criou uma profunda crise de solvência e confiança no País, não só na lasse média, como nas classes mais baixas, de um lado, aumentando fortemente o lucro dos bancos e promovendo a inclusão no sistema bancário de milhões de aposentados e consumidores de baixa renda, mas de outro multiplicando as ações individuais de pessoas físicas endividadas, em especial as revisionais no Judiciário, muitas sem sucesso, aumentando o risco e como um todo a conflitualidade e os abusos nas relações de crédito, multiplicando as reclamações nos órgãos de defesa dos consumidores e associações, e o sentimento de impunidade e de insatisfação com o sistema financeiro e com o direito do consumidor.
E em seguida concluem “a democratização e o apelo ao crédito na atual sociedade de endividamento requerem a imediata aprovação de uma lei especial para a prevenção e tratamento do superendividamento dos consumidores brasileiros”.
Em suma, o Brasil necessita urgentemente de norma legislativa que vise amparar o consumidor de boa-fé em situação de extrema inadimplência, lei que tenha por objetivo primordial retirar esses consumidores do poço da exclusão social, causada pelo superendividamento. E ainda que a regulamentação do instituto também verse a respeito de mecanismos de prevenção para que o consumidor se torne consciente quando da aquisição de crédito.