Direito do Consumidor e o fenômeno do superendividamento

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04/02/2015 às 14:55
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3. A TEORIA DA IMPREVISÃO E A TEORIA DA ONEROSIDADE EXCESSIVA NOS CONTRATOS REGIDOS PELO CÓDIGO CIVIL

A vida é regida por contratos, sejam verbais ou escritos. Ao comprar uma bola de sorvete, vender um imóvel, contratar um bufê para uma festa infantil ou até mesmo ao deixarmos um carro em um estacionamento particular entabulamos contratos. Mas o que vem a ser um contrato? O atual Código Civil, como defende Mônica Queiroz (2010, p. 195), não trouxe em seu bojo a conceituação do instituto, deixando tal encargo para a doutrina.

Para QUEIROZ (2010, p. 196): “podemos conceituar o contrato como sendo o negócio jurídico bilateral ou plurilateral que visa à criação, modificação ou extinção de direitos e deveres com conteúdo patrimonial, em perfeita colaboração recíproca das partes contratantes”.

Cézar Fiuza apud Mônica Queiroz (2010, p. 196) prescreve:

Contrato é ato jurídico lícito, de repercussão pessoal e socioeconômica, que cria, modifica ou extingue relações convencionais dinâmicas, de caráter patrimonial, entre duas ou mais pessoas, que, em regime de cooperação, visam atender as necessidades individuais ou coletivas, em busca da satisfação pessoal, assim promovendo a dignidade da pessoa humana.

Outros doutrinadores também conceituam contrato, no entanto, alguns defendem que ele é firmado entre dois ou mais sujeitos e não entre duas ou mais pessoas, uma vez que de um lado da relação contratual pode haver mais de uma pessoa, como exemplo temos o contrato de compra e venda de um imóvel, que obrigatoriamente é necessário a outorga uxória ou marital em caso de o vendedor ser casado.

É com sapiência impar que (DONIZETTI; QUINTELLA, 2013, p. 445,446) discorrem:

Contrato é o negócio jurídico de direito privado, por meio do qual dois ou mais sujeitos se vinculam para regular interesses concernentes a objetos economicamente apreciáveis, buscando a satisfação das necessidades, em que criam, resguardam transferem, conservam, modificam ou extinguem direitos e deveres.

Extrai-se do conceito supracitado que o contrato vincula as partes ao cumprimento do pactuado. Neste sentido, nas relações contratuais, por muito tempo, vigeu a famosa máxima do pacta sun servanda, expressão latina que ao pé da letra significa das coisas como estão, estando assim as coisas, ou melhor, o contrato faz lei entre as partes. Esse brocardo obrigava os contratantes ao cumprimento integral do contrato pactuado independentemente de acontecimentos futuros que pudessem alterar as circunstâncias do negócio, seja com os contratantes, ou mesmo com o objeto do contrato. Isso em muitas vezes acabava prejudicando uma das partes que sofria prejuízos em decorrência de fatos não previstos.

Pensando nisso foram criadas teorias que buscavam o equilíbrio contratual entre os partícipes do negócio jurídico, entre elas a teoria da imprevisão (de origem francesa) e a teoria da onerosidade excessiva (com inspiração italiana). Com o advento do Código Civil de 2002, a regra baseada no princípio da obrigatoriedade contratual, não foi extinta, mas relativizada, abrindo exceções para a sua imposição, como nos casos do estado de perigo (art.156 do CC), da lesão (art. 157) e da teoria da imprevisão, que terá destaque neste capítulo.

Alguns doutrinadores como Flávio Tartuce (2012, p. 570), defende que a atual lei 10.406/02, adotou a teoria da imprevisão. No entanto, ele afirma que com o novo Código Civil surgiram duas correntes, a primeira a qual é filiado “que parece ser majoritária, pois predomina na prática a análise do fato imprevisível a possibilitar a revisão por fato superveniente” e a segunda denominada de onerosidade excessiva que foi inspirada no Código Civil Italiano de 1942.

A teoria da imprevisão teve o auge do seu desenvolvimento na França, onde entrelaçada com a cláusula rebus sic stantibus, que segundo (STOZE e GLAGIANO, 2010, p. 308), “é aquela a qual o contrato somente seria exigível se as condições econômicas do tempo de sua execução fossem semelhantes às do tempo de sua celebração”, permitiu aos contratantes modificar as cláusulas contratuais argumentando o aparecimento de fatos supervenientes a contratação em que tornava o pactuado demasiadamente oneroso para umas das partes.

Segundo as palavras de Elpídio Donizetti e Filipe Quintella (2013, p. 526, 527), a teoria da imprevisão foi primeiro denominada de revisão contratual por fato imprevisível e foi trabalhada entre nós por Arnaldo Medeiros da Fonseca, que posteriormente a batizou pelo nome que conhecemos hoje. Mais uma vez, com brilhantismo, leciona que

“Segundo a teoria da imprevisão, a execução dos contratos que não sejam de execução imediata, e que por isso mesmo acaba sujeita a mudanças imprevisíveis das condições futuras, deve sempre levar em conta as condições determinantes vigentes no momento da contratação”.

Carlos Roberto Gonçalves (2013, p. 52) discorre que

“A teoria da imprevisão consiste, portanto, na possibilidade de desfazimento ou revisão forçada do contrato quando, por eventos imprevisíveis e extraordinários, a prestação de uma das partes torna-se exageradamente onerosa [...]”.

O Código Civil de 2002 consagrou a teoria supramencionada em seu artigo 317, in verbis:

Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação. (grifei)

Percebe-se que o artigo 317 é explícito ao afirmar que para a parte requerer a revisão ou resolução contratual em juízo é necessário a existência do fator imprevisibilidade. Não basta apenas que haja um desequilíbrio contratual, mas também que esse desequilíbrio tenha sido gerado em decorrência de um evento imprevisível, que ao tempo da celebração do contrato não era esperado por nenhuma das partes, mas posteriormente veio a gerar um prejuízo em demasia para um dos sujeitos da relação negocial.

A doutrina enumera requisitos intrínsecos ao pedido de revisão contratual baseado na teoria da imprevisão, (QUINTELLA; DONIZETTI, 2013, p. 528, 529) traz esses requisitos:

[...] 1 que se trate de contrato comutativo de execução diferia ou continuada; 2 que, quando da execução, tenha havido alteração das circunstâncias fáticas vigentes à época da contratação; 3 que essa alteração fosse inesperada e imprevisível quando da celebração do contrato; 4 por fim, que a alteração tenha promovido desequilíbrio entre as prestações.

Expostos os requisitos exigidos para o pedido de revisão contratual com base na teoria da imprevisão, que como visto, decorre de um fato imprevisível que trouxe ao contrato desequilíbrio entre as prestações, Mônica Queiroz (2010, p. 279, 280) vai mais a fundo e conceitua os requisitos inerentes a teoria estudada, vejamos:

1. Contrato de execução futura continuada e diferida. Esse contrato é aquele em que a sua execução irá se protrair ao longo do tempo, seja por meio de pagamento de parcelas (execução continuada) ou de uma só vez no futuro (execução diferida). [...] 2. Acontecimento de evento extraordinário e superveniente que coloque uma das partes em situação de onerosidade excessiva, isto é, que conduza uma das partes à ruina. [...] Na medida e que o evento extraordinário e superveniente conduz uma das partes a uma situação de penúria, manifesta-se o desequilíbrio contratual, tornando assim a execução do contrato inviável economicamente. [...] 3. Que esse acontecimento extraordinário e superveniente seja imprevisível. [...] é importante, para que a teoria encontre eficácia, que a imprevisibilidade do evento não seja apurada do ponto de vista do mercado, mas sim sob a ótica da parte. Isso porque se aplicarmos o instituto voltados para a imprevisibilidade aventada pelo mercado, quase nada será imprevisível, o que dificultará sobremaneira, a aplicação da teoria. [...] 4. Que gere extrema desvantagem para uma das partes. Tal fato se traduz no aumento patrimonial expressivo da outra parte contratante.

A teoria da imprevisão trouxe um certo apaziguamento ao direito civil, pois permitiu aos contratantes o direito a revisão de cláusulas que ao tempo da celebração eram proporcionais, mais que posteriormente, no decorrer do contrato, celebrado com o fim de ser executado de forma diferida ou continuada, tornou-se em demasia oneroso para uma das partes, impossibilitando seu cumprimento.

A segunda teoria adotada pelo Código Civil foi a, para uns, teoria da onerosidade excessiva e para outros a teoria da quebra da base objetiva do negócio jurídico ou ainda teoria da base do negócio jurídico. Inspirada no direito italiano, mas precisamente o Código Civil Italiano de 1942, a teoria da onerosidade excessiva, a qual para (DONIZETTI; QUINTELLA, 2013, p. 527) “é a possibilidade de resolução do contrato comutativo de execução continuada em razão de superveniente onerosidade excessiva decorrente de fato imprevisível” foi, segundo a doutrina, introduzida no direito brasileiro pelo art. 6°, V, do Código de Defesa do Consumidor, que dispõe que “são direitos básicos do consumidor a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas”.

Explica Cristiano Chaves de Freitas e Nelson Rosenvald (2013, p. 573) que:

No Código de Defesa do Consumidor (art. 6°, V), a revisão contratual é regra, não exceção. A necessidade de proteção da parte vulnerável, mediante imposição de normas de ordem pública, requer rígida intervenção do sistema com o objetivo de resgate da comutatividade originária da relação de consumo. Ademais, a norma dispensa a imprevisibilidade e a inevitabilidade como qualificativos do fato superveniente, sendo suficiente a quebra objetiva da base do negócio jurídico pelo débâcle da relação de equivalência para se consumar a onerosidade excessiva em detrimento do consumidor. (grifos no original)

No Código de Defesa do Consumidor para que ocorra a revisão do contrato, não há a necessidade de previsibilidade quanto os possíveis acontecimentos futuros, basta que no futuro aconteça fatos que impossibilitem o consumidor de adimplir com o pactuado à época da celebração.

Mais tarde, o Código Civil Brasileiro de 2002 a inseriu em seu bojo nos artigos 478 a 480, in verbis:

Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.

Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato.

Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva.

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Enquanto o artigo 317 do Código Civil versa a respeito da teoria da imprevisão, onde se exige o fator imprevisibilidade para o requerimento da resolução contratual, o artigo 478 do mesmo diploma legal trata sobre a teoria da onerosidade excessiva. Discorrendo sobre o artigo 478 e a teoria supramencionada, escreve Maria Helena Diniz (2005, p. 443):

A onerosidade excessiva, oriunda de acontecimento extraordinário e imprevisível, que dificulta extremamente o adimplemento da obrigação de uma das partes, é, agora, motivo legal se resolução contratual, por se considerar subentendida a cláusula rebus sic stantibus, que corresponde à formula de que, nos contratos de trato sucessivo ou a termo, ao atestado de fato vigente à época de sua estipulação. A parte lesada no contrato por aqueles eventos supervenientes, que alteram profundamente a economia contratual, desequilibrando as prestações recíprocas, poderá, para evitar enriquecimento sem causa ou abuso de direito por desvio de finalidade econômico-social, sob a falsa aparência de legalidade, desligar-se de sua obrigação, pedindo a rescisão do contrato […].

Na III Jornada de Direito Civil, evento organizado pelo Conselho da Justiça Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça realizado em Brasília em 2004, foi aprovado o Enunciado 176 acerca da onerosidade excessiva: “Em atenção ao princípio da conservação dos negócios jurídicos, o art. 478. do Código Civil de 2002 deverá conduzir, sempre que possível, à revisão judicial dos contratos e não à resolução contratual”.

Percebe-se pela simples leitura do enunciado, por mais que muitos doutrinadores defendam a forma literal do artigo 478 do CC que disciplina apenas a possibilidade da parte prejudicada requerer a resolução do contrato atingido pela onerosidade excessiva, outros doutrinadores, majoritariamente, defendem, com base no princípio da função social do contrato, que antes de tudo é necessário procurar a possibilidade da revisão judicial do contrato, levando-o a sua resolução apenas em última hipótese.

Para Elpídio Donizetti e Filipe Quintella (2013, p. 525) a teoria da onerosidade excessiva “trata-se de uma particularização da teoria da imprevisão, que a admite apenas nos casos em que a alteração das circunstâncias gerar extrema desvantagem para uma parte em detrimento de grande prejuízo para a outra”.

Sobre o tema, consoante às palavras de (ARAUJO NETO, 2011, s/p):

A Teoria da Base do Negócio Jurídico foi formulada pelo alemão Paul Oertmann. A base do negócio seria formada pelas representações mentais, comuns a ambas as partes, ou pela representação de uma delas (desde que reconhecida e não contestada pela outra), acerca da existência (no pretérito ou no presente) de determinado fato ou acerca da verificação futura de certas circunstâncias, nas quais se funda a decisão de contratar.

Os requisitos para a revisão contratual por aplicação da teoria da onerosidade excessiva são basicamente os mesmos exigidos para a revisão baseada no princípio da imprevisão, com o acréscimo de dois: que haja “uma situação de grande desvantagem para um contratante, e, em contrapartida, uma situação de onerosidade excessiva para outro.” (QUINTELLA; DONIZETTI, 2013, p. 529).

Findando a discussão acerca da teoria adotada ou não pelo Código Civil Brasileiro de 2002, ensina (TARTUCE, 2012, p. 570):

Deve ficar bem claro que a questão referente à teoria adotada pelo atual Código Civil no que toca a revisão contratual por fato superveniente é demais controvertida, sendo certo que, tanto na III Jornada (2004) quanto na IV Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal (2006), não se chegou a um consenso a respeito do tema. Filia-se à primeira das visões pelo costume doutrinário e jurisprudencial, sendo certo que, de fato, o art. 478. do nosso Código Civil equivale ao art. 1.467. do Código Italiano.

Todavia, a lei brasileira traz o art. 317, dispositivo que cuida mais adequadamente da matéria e não tem correspondente naquela codificação estrangeira. Essa é a fundamental diferença entre os sistemas. A partir dessas constatações, entendemos ser interessante dizer que, até afastando qualquer discussão acadêmica mais profunda quanto à teoria adotada, o Código Civil de 2002 consagra a revisão contratual por fato superveniente diante de uma imprevisibilidade somada a uma onerosidade excessiva. (grifos no original)

Defende Flávio Tartuce que o atual Código Civil adotou a teoria da imprevisão quanto os fatos supervenientes ensejadores da modificação das cláusulas contratuais, no entanto, reconhece o grande debate em torno do tema e prefere mesclar as teorias dominantes com o intuito de se chegar a um denominador comum.

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Sobre a autora
Uilma da Silva Gomes

Graduada em Direito pelo Instituto de Educação Superior Unyahna de Bareiras/BA.<br>Advogada e concurseira.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Monografia apresentada ao Curso de Direito, do Instituto de Educação Superior Unyahna de Barreiras, Curso de graduação em Direito, como pré-requisito para a obtenção do grau de bacharel em Direito.

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