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A responsabilidade penal por danos ao meio ambiente

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01/01/2003 às 00:00
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INTRODUÇÃO

A preocupação no âmbito jurídico penal pelo problema da proteção do meio ambiente, é recente. Foi a partir da década de 70, basicamente, que inúmeros países deixaram a crença no progresso ilimitado da ciência que impulsionou a ideologia positivista no século XIX até os dias atuais, cedendo à preocupação pelas conseqüências trazidas pelo progresso técnico e industrial.

A proteção do meio ambiente constitui um problema fundamental no mundo contemporâneo. A humanidade, orgulhosa de suas conquistas científicas e técnicas, do desenvolvimento da cultura e educação, encontra-se ante a ameaça de sua autodestruição. Surge a necessidade de se tomar medidas enérgicas para proteger a vida e sua qualidade contra aquele que a ameaça, resolvendo o eventual conflito entre desenvolvimento econômico e proteção do meio ambiente.

A nova relação que se estabeleceu entre o homem e a natureza, baseada no mútuo respeito e na mútua dependência, com a predominância do interesse coletivo sobre o individual, induziu a uma nova postura da sociedade para o meio ambiente, que requer um novo enfoque dos problemas existentes e uma adequação da ordem jurídica para as suas soluções, levando em consideração os novos valores emergentes e a responsabilidade comum de sua defesa.

A Constituição Federal de 1988, com a ampla tutela que faz do meio ambiente e a declaração de seus princípios fundamentais no art. 225, após reconhecer o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como "bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações", frisa, no seu § 1º,II, a necessidade de preservar a integridade do patrimônio genético do país, proteger a fauna e a flora, fazendo ainda uma declaração de domínio no § 4º: "a Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional e sua utilização far-se-á na forma da lei, dentro das condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto aos seus recursos naturais".

Para isso, também se espera que o direito penal contribua, como parte integrante da ordem jurídica, e como recurso extremo na proteção dos valores fundamentais da sociedade, através das sanções que lhe são próprias, sendo a violação dos mesmos intolerável, e inevitável de outra forma. Funcionará então o Direito penal como recurso necessário de defesa social, garantidor da coexistência pacífica entre os membros da coletividade, e instrumento de uma política que atenda aos anseios sociais sem descurar os do desenvolvimento econômico e as necessidades básicas da população.

Ressalta-se, então, a necessidade de realizar a compatibilização da Política criminal com as diretrizes da Política ambiental, dotando-se a legislação penal de instrumentos e normas adequadas à proteção dos valores ambientais, refazendo a tipologia, redimensionando as pena e forjando um sistema que, além de apropriado às finalidades visadas, possa atender melhor aos anseios e às exigências da nova ordem social, que pretende a harmonização dos interesses da comunidade com a necessidade de preservar a natureza, no interesse das gerações vindouras.

A maior parte da doutrina que admite a intervenção penal em matéria ambienta, matiza a postura ressaltando o critério de ultima ratio do direito penal. De nada serviria o direito penal se previamente não existe uma programação por parte da Administração pública de todas as atividades que podem supor um perigo para o meio ambiente, programação que deve vir acompanhada de uma tutela sancionadora extrapenal cronologicamente prévia à propriamente penal.

São as normas não penais as que devem assumir o papel primário através da programação de uma política preventiva e de um sistema sancionador no penal, reservando-se a sanção penal para os atentados mais graves ao meio ambiente. Somente assim se evitará o perigo de cair no defeito político criminal de ir até o direito penal criminalizando simbolicamente uma conduta ou um conjunto de condutas sem que tão aparentemente definitiva o tal solução tenha logo eficácia.

O meio ambiente é bem merecedor de tutela penal, já que se trata de um bem jurídico de especial transcendência cuja proteção resulta essencial para a própria existência do ser humano e em geral, da vida, e que se encontra seriamente ameaçado, pelo que sua conservação e manutenção justificam claramente o recurso às mais contundentes medidas de proteção que pode proporcionar o ordenamento jurídico.

Com tais premissas é que o presente trabalho objetiva realizar uma breve análise da nova Lei de proteção ambiental (Lei 9.605/98) que traz que regula tanto as sanções administrativas como as penais derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente.

Os aspectos mais importantes de discussão doutrinária sobre o tema crimes ambientais, relacionam-se à identificação do bem jurídico protegido, a real necessidade de uma intervenção penal nos problemas ecológicos, as novas técnicas legislativas adotadas (lei penal em branco), a autonomia das sanções de ordem administrativa em relação às de índole penal, a possibilidade de se responsabilizar pessoas jurídicas e a aplicação das penas alternativas.

O objetivo desse trabalho será, num primeiro momento, abordar brevemente essas questões, sem a pretensão de solucionar tais problemáticas, mas apenas de incitar o leitor ao indispensável debate. Posteriormente, serão tratados, de maneira mais detida, alguns dos tipos penais trazidos pela nova lei, numa abordagem que levará em consideração a análise doutrinária e jurisprudencial, no intuito de poder identificar o perfil da Lei 9.605/98.

Para a realização desses objetivos, a ciência do Direito Penal deverá ser visualizada sob uma perspectiva metodológica funcional-teleológica. Segundo o sistema teleológico funcional: o Direito Penal deve estar orientado para a função que ele deve cumprir no meio social. Ele deve ser perspectivado, particularmente no que se refere aos seus elementos, a partir da função que lhe incumbe ao direito penal, qual seja, a proteção indispensável de bens jurídicos essenciais.


1. Da necessidade da tutela penal do meio ambiente

1. 1 A intervenção penal em problemas ambientais

O Direito Penal adequado ao Estado Democrático de Direito figura como um Direito Penal de mínima intervenção, em que este só atuará a fim de proteger os bens jurídicos fundamentais da sociedade; esta afirmação justifica-se em virtude da pesada carga punitiva do Direito Penal que sufocaria a convivência social se não fosse limitada a sua intervenção. No fundo desta concepção do controle social penal está a dignidade da pessoa humana, como centro da organização estatal. Há nessa concepção uma concepção mecanicista de sociedade, que coloca o ser humano como fim último da organização social.

Ocorre que, principalmente a partir da década de 80, as relações sociais têm sofrido grandes mudanças, caracterizadas pelo incremento tecnológico, a globalização, as relações econômicas em âmbito internacional, as grandes empresas transnacionais que acabaram por deslocar, até certo ponto, o poder, o qual passa a ter âmbito mundial, não mais regional ou nacional.

Diante de tais transformações, há uma transformação nos fins da sociedade, a qual passa a organizar-se não mais em torno do indivíduo, mas no sentido de atingir os fins do capitalismo mundial, uma sociedade assim organizada ganha um tom organicista, onde o homem não é mais que um subsistema do sistema social e este sim deve ser preservado.

Junto destas transformações sociais cresce a criminalidade, com o surgimento de novas formas de delinqüência. O uso de máquinas nas indústrias, o inchaço da Administração pública, a proliferação de instituições financeiras que ganharam proeminência nas últimas décadas propiciaram um novo tipo de criminalidade, tais como crimes contra o meio ambiente, contra a ordem sócio econômica, contra a ordem tributária, informática, criminalidade organizada e daí por diante.

Diante deste quadro o Direito Penal é chamado a assumir outras funções que não a de proteção de bens jurídicos fundamentais. O capital mundial exigiu do Estado uma tomada de providências, um intervir a fim de combater a criminalidade organizada e este vai buscar no Direito Penal o remédio contra as organizações criminosas que afrontam a nova ordem sócio econômica [1].

Como bem assevera Alberto Silva Franco: "(a)tribui-se legitimação, nos tempos presentes, à atuação do Direito Penal não como tutela de bens jurídicos fundamentais da vida em sociedade, mas como ‘poderosos instrumentos de mudança social e de transformação da sociedade’. Trata-se de ‘um motor que dinamiza a ordem social e promove as mudanças estruturais necessárias’. O Direito penal não deve limitar-se apenas ao papel de mantenedor da ordem social, do status quo que lhe é subjacente, mas deve, direta e imediatamente, imiscuir-se, de modo ativo, nas relações tensionais que explodem na sociedade" [2].

Perde, com isso, espaço o Direito Penal voltado à proteção de bens jurídicos, para ganhar espaço um direito penal de máxima intervenção, destinado a produzir mudanças estruturais necessárias. É o chamado Direito Penal promocional [3].

O penalista espanhol Silva Sanchez, sobre o direito penal promocional, afirma que: "(n)ão creio encontrar-me demasiadamente distante do correto ao afirmar que a tipificação, na forma como foi feita na Espanha, de delitos como o delito fiscal ou do meio ambiente, respondeu, em não pouca medida, à vontade de gerar na coletividade, ou em determinados âmbitos dela, uma ; ética fiscal ou uma ética ecológica até então inexistente. Trata-se portanto, da função promocional do Direito penal, teoricamente criticada, mas bem recebida, na prática, pelo poder. Não obstante, o Estado carece de legitimação para promover através do Direito Penal, reforçando processos educativos já existentes ou iniciando-os" [4].

Concorre também com esta noção de Direito Penal o Direito Penal Simbólico, que não se volta tanto à proteção de bens jurídicos, mas sim em dar respostas tranqüilizadoras à opinião pública, de que o legislador está atento aos seus reclamos.

Hassemer, a propósito, acentua que: "Estamos perante um direito penal simbólico. O direito penal simbólico é identificável através de duas características: por um lado, não serve para a proteção efetiva de bens jurídicos; por outro lado, obedece a propósitos de pura jactância da classe política.(...) Esta suposta forma de garantir a proteção do ambiente, para além de custar pouco dinheiro ao Estado, apresenta ainda a vantagem de servir para acalmar contestações políticas. Com efeito, é assim que a classe política pode proclamar à opinião pública que está atenta aos problemas do mundo moderno e, mais ainda, que até se compromete com a tomada de medidas drásticas para os resolver" [5].

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A política criminal, a pretexto de proteger bens jurídicos, mas com fins decididamente preventivos, cria leis de proteção ao meio ambiente, à saúde pública, à ordem sócio econômica etc.., ou seja, bens jurídicos vagos, de difícil visualização, permitindo-se, com isto, qualquer cominação penal, perdendo-se, aos poucos, a incidência do princípio da proporcionalidade.

Algumas das característica deste Controle Social Penal intervencionista são o aumento do rigor sancionatório e a não preocupação em incriminar condutas que ofendem ou expõem a perigo bens jurídicos mas atos de infidelidade ao ordenamento jurídico, daí as penas aos crimes de mera conduta. Criam-se novos tipos penais. Agravam-se, desnecessariamente, as penalidades já existentes. Encurtam-se garantias processuais conquistadas após prolongadas lutas. Volta-se o mecanismo penal controlador contra determinados grupos de delinqüentes.

O objetivo de um Direito Penal Promocional seria o de aquietar a sociedade, em geral, e certos segmentos sociais, em particular. O resultado, no entanto, não é sempre satisfatório. A curto prazo, não provoca nenhuma conseqüência de relevo. A maior contundência do sistema penal implantado não produz o efeito pretendido e não restabelece o sentimento de segurança individual ou coletivo. A médio e longo prazo, o fracasso do mecanismo penal acarreta a perda de sua credibilidade [6].

Tanto a função promocional, como a função simbólica, são criticadas por representar graves distorções que distanciam o Direito Penal de sua verdadeira matiz: autorizam um Direito Penal de máxima intervenção. Na medida em que o mecanismo controlador penal perde sua condição de instrumento a serviço da convivência social e se torna um interventor precoce nos conflitos sociais ou atua, simbolicamente, apenas para efeito de transmitir falsa tranqüilidade à sociedade, sua legitimidade começa a ser posta em dúvida [7].

Tais críticas, que deslegitimam a constituição de um Direito Penal Ambiental, não podem ser totalmente afastadas. Todavia, num Estado Social Democrático de Direito, a tutela penal do ambiente constitui uma exigência irrenunciável de controle do progresso técnico, nascida do reconhecimento da situação de ameaça do ambiente e da conseqüente necessidade de uma melhor proteção das nossas condições de vida.

A proteção do meio ambiente revela-se, atualmente, condição essencial para a sobrevivência da própria espécie humana. A ordem constitucional revela a proteção do meio ambiente como bem jurídico fundamental.

O Direito Penal, no plano de um Estado Democrático de Direito, deve ser direcionado preferencialmente para o combate dos crimes que impedem a realização dos objetivos constitucionais do Estado. Ou seja, no Estado Democrático de Direito – instituído no art. 1º da CF/88 - devem ser combatidos os crimes que fomentam a injustiça social, o que significa afirmar que o direito penal deve ser reforçado naquilo que diz respeito aos crimes que promovem e/ou sustentam as desigualdades sociais". Nessa linha, estão os novos bens jurídicos fundamentais, entre eles, o meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Ao legislador "incumbe tentar encontrar o justo equilíbrio entre o progresso económico e social e o direito fundamental à manutenção e restauração de um ambiente são. O que poderá fazer apelando também à técnica e promovendo novos meios ou recursos que permitam o controlo daquelas actividades que podem causar danos ou pôr em perigo aquele interesse fundamental" [8].

1.2 Direito Penal Secundário

Uma vez admitida a tutela penal para os problemas ambientais, o problema que se põe, em seqüência, é o de saber em que termos deve verificar-se uma tal proteção. Ou melhor: deve se saber se ela deve encontrar assento nos Códigos Penais ou em legislação penal extravagante.

É sabido que as tendências são essencialmente duas: ou introduzir as disposições penais no Código Penal, ou reagrupá-las em legislação penal extravagante, numa lei penal autônoma sobre a proteção do ambiente. Essa questão, todavia, não se resume a uma simples questão formal ou de melhor arrumação sistemática. As razões são mais complexas.

Muitos vêem na incriminação dos comportamentos contra o ambiente em legislação penal extravagante um sinal de menor impacto ético-social, ou mesmo um sinal de que elas possam representar um ilícito eticamente indiferente. Na verdade, a distinção entre as incriminações que devem conter-se no Código Penal e as que devem constar antes de legislação penal extravagante vai buscar a sua legitimação última à dupla função – pessoal e comunitária – desempenhada pela personalidade do homem nos quadros do Estado de Direito Material. O que se funda e simultaneamente se traduz numa diferente ordenação jurídico-constitucional dos bens jurídicos, sendo expressão desta diferente ordenação as partes da Constituição em que se consignam os direitos, liberdades e garantias e os direitos sociais e a organização econômica. Tudo a dar fundamento a que se possa dizer que, "como concretização daqueles direitos, liberdades e garantia, surgem os bens jurídicos protegidos pelo CP; e, como concretização dos valores ligados aos direitos sociais e à organização econômica, surgem os protegidos por legislação penal extravagante" [9].

Duas objeções levantam-se contra a solução de se manter os delitos ambientais disciplinados em lei penal extravagante. A primeira refere-se ao grau de precisão da descrição típica e à delimitação das fronteiras da punibilidade que, diz-se – não fica plenamente assegurada senão no quadro do CP. Este argumento não tem nada por si. Aquele grau de precisão não depende da localização sistemática das respectivas matérias, mas antes do aspecto que se prende com a configuração que se prende com a configuração típica destes crimes.

A segunda objeção tem a ver com a menor eficácia da proteção dos bens jurídicos em causa. No direito extravagante prevalece o ponto de vista dos critérios e parâmetros da ‘técnica’ e, nesta lógica, os inconvenientes do progresso técnico devem ser pura e simplesmente suportados como riscos civilizacionais, sendo a proteção alcançada forçosamente menor do que fosse realizado no quadro do Código Penal, que tem uma vocação natural para a defesa de bens jurídicos tais como a vida ou saúde.

Aqui, todavia, encontra-se um equívoco. Nada justifica que no domínio da legislação penal extravagante nos curvemos perante os valores da ‘técnica’ em detrimento dos da ‘pessoa’. Como decorre do que se vem dizendo, não se consegue descortinar na base da existência deste direito penal extravagante o mínimo indício de ‘falta de consideração’ ético social da matéria em causa.

Assim, a posição mais plausível parece ser a que a proteção dos valores ambientais deve ser feita em legislação penal extravagante, de modo a "dar corpo ao chamado direito penal secundário, de todo o ponto diferente do direito de mera ordenação social: por um lado, aqueles valores contém-se formalmente na parte da Constituição dedicada aos direitos sociais; e, por outro lado, respeitam substancilmente à realização da personalidade comunitária do homem" [10].

Dentro de uma perspectiva funcional-teleológica do direito penal, uma harmonização entre o Direito Penal da Parte Especial do Código Penal e as Leis penais especiais, não seria funcional, de modo algum funcional. O conteúdo dos elementos estruturais dos delitos contidos no Código Penal e na lei penal extravagante é sobremaneira diverso. O Código Penal é norteado para a proteção de garantias individuais. A legislação extravagante sobre o meio ambiente, encontra-se estruturada para garantir bens que são no mínimo coletivos.

Sobre o que norteará, ou melhor, dará a consistência à todo sistema penal, ao admitir-se a existência de um Direito Penal secundário, será o fato de que tanto o Código Penal quanto as Leis Penais especiais estarão ligados à função de proteção de indispensáveis bens jurídicos, sendo esses bens previstos constitucionalmente. É a ordem constitucional, portanto, o ponto garantidor da existência de um direito penal secundário, ao lado do Direito Penal tradicional.

1.3 Autonomia do Direito Administrativo em relação ao Direito Penal: o reenvio e a norma penal em branco.

Não se nega a existência de dificuldades em face da relação de dependência mútua entre o direito penal e o direito administrativo. Se aquele se liga a este, o âmbito de proteção penal deixaria de ser delimitado pelo legislador penal para passar a sê-lo pelo legislador administrativo. O que significa dizer que os pressupostos de aplicação das normas penais se encontrariam nas mãos de órgão administrativo.

De acordo com Hassemer "a acessoriedade administrativa é absolutamente necessária para a configuração de qualquer direito ambiental que se preze. Na parte que diz respeito ao direito penal do ambiente, é forçoso, por muitas voltas que tentemos dar à questão, que acabemos por reconhecer que o juiz penal nunca teria condições para, nos casos concretos, definir o fato lesivo do ambiente, só com base na lei penal. (...) E é pela acessoriedade que o ilícito penal deixa de ser visível. Na prática, a matéria da ilicitude penal passa a ser objeto de negociação direta entre a administração e o potencial infrator. Com isto, o direito penal perde credibilidade para a generalidade dos cidadãos" [11].

Tal crítica parte do pressuposto de que os legisladores penais e administrativos são diferentes. Na verdade, o legislador é um só, com âmbito de competência estabelecido constitucionalmente. Ambos participam de uma tarefa comum e ligados a vínculos que não podem renunciar. O legislador não se encontra num espaço de atuação livre.

A complexidade dos temas ambientais, somada ao dinamismo das inovações tecnológicas em questões tais como a emissão de dejetos, de compostos químicos, o tratamento, manipulação e transporte de substâncias perigosas etc., faz indiscutível que na configuração do delito ambiental, recorra-se tanto à técnica dos chamados delitos de perigo como a do reenvio ou da lei penal em branco. O delito de perigo, por oposição ao de dano ou lesão não requer para a sua consumação que efetivamente se produza menoscabo ao objeto protegido, apenas basta com que seja ocorrido o perigo. Esse perigo pode ser concreto, quando o juiz deve verificar no caso individual, ou abstrato quando é a lei a que o presume.

Assim, a proteção do direito penal ambiental deve realizar-se em função de critérios administrativos. Segundo Anabela Miranda Rodrigues, "do ponto de vista da unidade da ordem jurídica, a técnica das normas penais em branco que reenviam para disposições não penais permite estabelecer a concordância perfeita entre as duas matérias (...). O preenchimento da norma penal dita ‘em branco’ por prescrições administrativas não é senão a conseqüência necessária da própria natureza móvel, alterável e específica do direito do ambiente e, deste modo, uma conditio sine qua non da eficácia – esta também legitimadora – da protecção do ambiente pela via penal" [12].

A ordem jurídico-administrativa é a que se encontra melhor colocada para responder ao objectivo de prevenção no domínio ambiental dizem respeito, desde logo, ao facto de esta ordem ser a que se encontra mais próximo e mais estreitamente ligada aos agentes poluidores mais perigosos.

Ademais, o legislador administrativo, pela facilidade de emitir normas, pela sua proximidade com os processos e os progressos tecnológicos, pela atenção que é obrigado já prestar aos avanços e às mudanças técnicas, possui uma mobilidade e uma plasticidade que não são possíveis nem seriam mesmo convenientes que existissem no legislador penal. Tudo isto vale para lembrar a verdade elementar que o direito administrativo é o campo por excelência do móbil e do alternável, enquanto que o direito penal deve ser tanto quanto possível, o domínio do que permanece e tem tendência para ser imodificável [13].

1.4 Responsabilização de pessoas jurídicas e coletivas

Não é necessário muitos argumentos para afirmar que o meio ambiente se vê mais em perigo por atividades coletivas que por atuações individuais. A questão da intervenção das pessoas invólucras em sociedades ou empresas industriais ou comerciais, nos confronta com o antigo princípio constitucional liberal de que somente as pessoas físicas podem delinqüir e não as sociedade ou pessoas jurídicas.

A dificuldade dogmática tradicional para imputar penalmente a criminalidade das pessoas jurídica reside no conteúdo das noções fundamentais do Direito Penal: ação, culpabilidade, capacidade penal. Na primeira vista, a ação no Direito Penal sempre está ligada ao comportamento humano, e a culpabilidade, ou culpa, parece significar uma reprovação ética ou moral que estaria excluída no caso das pessoas jurídicas, as quais, em exceção, não poderiam ser as destinatárias, ou sujeitos passivos, de penas criminais com sua finalidade preventiva e retributiva. Estas dificuldades são evidentemente muito menos graves quando não se aplicam verdadeiras penas às pessoas jurídicas, mas sim umas sanções meio ou quase penais podem ser flexibilizadas ou alargadas.

Tradicionalmente as pessoas jurídicas carecem de capacidade de ação e de capacidade de culpabilidade. Ademais, as pessoas jurídicas não podem ser sentadas no banco dos réus, nem ser enviada ao cárcere. Mas se pode impor outro tipo de pena ou sanção. Como seria possível atalhar à responsabilidade das pessoas coletivas, respeitando o caráter pessoal da responsabilidade criminal ?

Assinala René Ariel Dotti que: "(c)omo, porém, ‘medir’ a ‘culpabilidade’ da pessoa jurídica quando ela ‘participar’ do fato típico realizado pela pessoa física? Como saber a forma de participação (mandato, comando, conselho e ameaça) ou de cumplicidade (auxílio material)? Quem é quem na estrutura administrativa da sociedade por ações ou da pessoa jurídica de Direito Publico Interno para ser identificado como o prestador do serviço de informações? Quem poderá identificar a forma e o alcance da participação ou do auxílio? Em outras palavras: para quem o Delegado de Polícia (rectius: o escrivão) vai mandar a intimação?" [14]

Apesar das dificuldades, há uma tendência no direito comparado de se acolher a responsabilidade penal da pessoa jurídica. Em nenhuma legislação comparada se vê superadas as objeções tradicionais a responsabilidade penal das pessoas jurídicas relacionadas com os conceitos de ação e culpabilidade naqueles países cujo direito penal se vê condicionado por uma visão espiritualizada ou idealista do princípio da culpabilidade como princípio básico ou princípio de imputação jurídico-penal irrenunciável. A questão não é saber se a pessoa jurídica pode ser sujeito de imputação, mas se é legítimo resolver certos conflitos impondo uma pena as pessoas jurídicas que não têm capacidade de decidir por si mesmas nem se reconhece a elas alternativas de comportamento com respeito às decisões de seus órgão diretivos.

"Los estudios sobre criminalidad de la empresa demuestran que resulta difícil reconducir la lesión a una decisión individual. Más bien suele ser fruto de un processo de acumulación de un management defectuoso o de uma determinada actitud, ética o filosofía empresarial. De hecho las posiciones más recientes que propugnan la responsabilidad de las personas jurídicas insisten en que el fundamento de la ‘culpabilidad de la corporación’ reside precisamente en esta actitud, ética o filosofía empresarial criminógena. Há surgido la necesidad político-criminal de luchar contra un determinado tipo de dirección, actitud, ética o filosofía empresarial que pone en peligro bienes jurídicos de gran relevancia social" [15].

Anabella Miranda Rodrigues diz que: "não nos parece que esteja afastada, com a actual regulação, a possibilidade da consagração da responsabilidade criminal das pessoas coletivas em legislação extravagante, dando corpo ao já referido direito penal secundário" [16].

Bacigalupo Saggese conclui que "todo intento basado en la comparación entre el individuo y la persona jurídica para establecer similitudes se encuentra condenado desde el comienzo al fracaso. No sólo porque el individuo y la persona jurídica presentam dificuldades insuperables, sino fundamentalmente, porque todas las categorías del delito están elaboradas a partir del individuo y de sus capacidades personales". P. 201. La responsabilidad penal de las personas jurídicas, Barcelona, 1997. Apud. Bernardo.p. 32.

La única solución para evitar un inadecuado trato igualitario de estados de cosas esencialmente desiguales parece ser una construción alternativa de la culpabilidad penal. Pero esa propuesta todavía no existe como ya he señalado. No se trata de negar la pisibilidad de su existencia o su imposibilidad ontológica, sino simplemente de constatar que, por ahora, no hay alternativa. Por ello debemos buscar solución a ciertos problemas político-criminales com el instrumental clásico del Derecho Penal [17].

Parece que a solução por um novo conceito de culpabilidade instrumentalmente parece ser algo ainda algo remoto. Para a aplicação imediata e efetiva da responsabilidade da pessoa jurídica. Passar-se-á a comentar sobre o conceito atual de culpabilidade.

Para a ocorrência da culpabilidade, são necessários dois requisitos: a consciência da ilicitude e reprovação da conduta do agente. A culpabilidade é pressuposto fundamental para a aplicação da pena. Num direito penal perspectivado sobre sua função teleológica, deve atender primordialmente à prevenção geral positiva.

É assim o ensinamento de Jorge Figueiredo Dias. Segundo o penalista português, o sistema emergente parece comandado pela profunda convicção de que a construção do conceito de crime há de apresentar-se como teleológica, funcional e racional, possuindo a partir daqui os seus próprios postulados: a) a legitimidade da intervenção penal não pode hoje ser vista como advinda de qualquer ordem transcendente e absoluta de valores, mas unicamente de critérios funcionais de necessidade social. Por isso, a aplicação da pena não mais pode fundar-se em exigência de retribuição ou de expiação da culpa, mas apenas em propósitos preventivos de estabilização contrafática das expectativas comunitárias na validade da norma violada; assinalar à pena uma qualquer função retributiva significaria desligá-la por completo da função do direito penal como ordem de proteção de bens jurídicos. E, a função da culpa não mais residirá em fundamentar a aplicação da pena, mas unicamente em evitar – até por razões ligadas à desejável eficácia da prevenção – que uma tal aplicação possa ter lugar onde não exista culpa ou numa medida superior à suposta por esta. À luz, portanto, de uma concepção do direito penal como ordem de proteção de bens jurídicos – ligada, por sua vez, a uma ordem de legitimação da intervenção penal fundada na necessidade de prevenção das condições indispensáveis de livre realização de cada pessoa na comunidade -, a esta luz, as finalidades da pena só podem ser de natureza exclusivamente preventiva e não retributiva [18].

Dessa forma, pode-se argumentar sobre a culpabilidade da pessoa jurídica, primeiramente, deixando de lado o requisito da consciência da ilicitude, deixando cair o juízo da culpabilidade apenas sobre o critério da reprovação social da conduta da empresa. A pena aplicada à empresa, não terá função retributiva, ou de coação física. Sua função estará ligada apenas à prevenção geral, sendo esta consubstanciada na estabilização contrafática das expectativas comunitárias na validade da norma violada.

1.5 Sistema de Penas

1.5.1 As penas alternativas

O reconhecido fracasso da pena de prisão como modo de solução do conflito, levou a doutrina a propor as chamadas penas alternativas, que no caso do delito ambiental, cometido freqüentemente por conglomerados empresários poderiam ser: clausura provisória ou definitiva, obrigação de reparar danos e prejuízos às vítimas, proibição de operar em Bolsas, cancelamento de registros, suspensão de benefícios tributários ou subsídios, inabilitação para exportar ou importar etc. Somente para os casos mais graves, considera-se necessário seguir mantendo a pena de prisão.

Isso também porque a função da pena, atualmente, deve estar ligada à prevenção geral, conforme acabou-se de salientar anteriormente, sob a lição de Jorge Figueiredo Dias.

1.5.2 A transação penal e a suspensão condicional do processo

A Lei ambiental, em seu art. 27, determina que a transação penal, a ser realizada de acordo com o art. 76 da Lei 9.099/95, depende da prévia composição do dano ambiental, adequando-se desse modo à finalidade preventiva e reparatória que permeia toda a nova normação e apontando para a solução das controvérsias penais e civis no âmbito da Justiça Criminal [19].

O art. 28 da nova lei, por sua vez, determina a aplicação do art. 89 da Lei 9.099/95 – ou seja, da suspensão condicional do processo – "aos crimes de menor potencial ofensivo definidos nesta lei", com as modificações dos incs. I a V, que apontam para os mesmos objetivos reparatórios do dano ambiental.

Quanto ao primeiro dispositivo, fica clara a interpretação. Já a interpretação do art. 28 necessita de algumas considerações particulares.

O ilustre Antônio Scarance Fernandes [20], ao tratar do tema, considerou o dispositivo falho, pelo fato de parecer restringir a aplicação da suspensão condicional do processo às infrações penais de menor potencial ofensivo definidas pela Lei 9.099/95 (crimes e contravenções a que se comine pena máxima não superior a um ano). Por isso, descarta a sua interpretação literal, para escolher a finalística, sustentando que o art. 89 da Lei 9.099/95 se aplica integralmente aos crimes ambientais, "pois a intenção do legislador foi apenas a de modificar, com os incisos I a V, as normas sobre os requisitos para a concessão da suspensão ou sobre as condições de seu cumprimento, tendo havido erro na alusão aos crimes de menor potencial ofensivo". E argumenta com os objetivos da lei, que visam a tornar efetiva a reparação do dano ambiental, não se devendo dar ao dispositivo interpretação que diminua o âmbito da Justiça consensual (excluindo da suspensão condicional do processo as infrações penais a que se comina pena mínima de um ano) e que torne ineficaz a norma do art. 89 da Lei 9.099/95, pois no âmbito das infrações penais ambientais de menor potencial ofensivo caberia antes a transação penal, ficando prejudicada a suspensão condicional do processo (aplicação extensiva).

A prof. Ada Pellegrini Grinover, também aludindo ao dispositivo supra mencionado, propõe uma interpretação Essa interpretação respeita mais estritamente ainda os cânones finalísticos e valorativos do Direito, dando maior eficácia não só ao art. 28 da nova lei, como também aos arts. 76 e 89 da Lei n. 9.099/95.

Segundo ela, a Constituição Federal só alude às infrações penais de menor potencial ofensivo" no art. 98, I, deixando a tarefa de conceituá-las ao legislador. Este, na Lei n. 9.099/95, determinou que, para efeitos de Juizados Especiais, infração penal de menor potencial ofensivo é só aquela cuja pena máxima cominada seja igual ou inferior a um ano. Mas nada impede que, para outros efeitos, o legislador fixe critérios diversos para determinar a abrangência das infrações penais de menor potencial ofensivo.

Isso porque a Lei 9.099/95 não definiu de forma exclusiva e única o conceito de menor potencial ofensivo, mas o fez exclusivamente para os efeitos daquela lei, nada impedindo, portanto, o surgimento de outras hipóteses, previstas em leis diversas. Inclusive, como alerta o autor, com critérios outros que não o máximo da pena cominada em abstrato ou a inexistência de procedimento especial [21].

Segundo a lei ambiental, "as disposições do art. 89 da Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995, aplicam-se aos crimes de menor potencial ofensivo definidos nesta lei, com as seguintes modificações:..."

"Isto significa que o art. 28 da Lei n. 9.605/98 ampliou o conceito de infrações penais de menor potencial ofensivo, para efeito de caracterização dos crimes nela definidos, estendendo-a aos crimes em que a pena mínima cominada seja igual ou inferior a um ano (na prescrição do art. 89 da Lei n. 9.099/95, a que o art. 28 da nova lei faz referência expressa) [22]".

Dessa forma, as Infrações penais de menor potencial ofensivo, para efeitos da nova lei ambiental, são os crimes, por ela definidos, para os quais esteja cominada, em abstrato, pena mínima não superior a um ano (art. 28 da lei ambiental c/c art. 89 da Lei 9.099/95).

Aplica-se às referidas infrações tanto a suspensão condicional do processo (regulada pelo art. 89 da Lei 9.099/95, com as modificações dos incs. I a V do art. 28 da lei ambiental), como a transação penal, do art. 76 da Lei n. 9.099/95 (com o requisito da reparação do dano ambiental do art. 27 da lei ambiental), nos termos do art. 98, I, da Constituição, que expressmente se refere à transação, "nas hipóteses previstas em lei".

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Sobre o autor
Rodrigo Alves da Silva

mestre e doutor em Direito. É pesquisador e parecerista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Advogado,regularmente inscrito na OAB/SP (204.358), docente da Escola Superior de Advocacia (ESA) e Professor Universitário.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Rodrigo Alves. A responsabilidade penal por danos ao meio ambiente. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 61, 1 jan. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3630. Acesso em: 29 mar. 2024.

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