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A responsabilidade penal por danos ao meio ambiente

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01/01/2003 às 00:00
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2. O bem jurídico tutelado nos crimes ambientais

2.1 Noções introdutórias sobre bem jurídico penal

A finalidade precípua do Direito Penal hodierno reside na proteção de bens jurídicos reconhecidos como essenciais não apenas ao indivíduo, mas também à toda a coletividade. O penalista português Jorge Figueiredo Dias explica que "num Estado de Direito material deve cabe ao Direito Penal uma função exclusiva de proteção dos bens fundamentais da comunidade, das condições sociais básicas necessárias à livre realização da personalidade de cada homem e cuja violação constitui o crime" Tem ainda uma "visão funcional, que o vê (ao bem jurídico) como unidade de aspectos ônticos e axiológicos através da qual se exprime o interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou integridade de um certo estado, objeto ou bem em si mesmo socialmente relevante e por isso valioso" [23].

Sobre de onde tirar os bens jurídicos, Em um Estado de Direito Democrático, conforme observa Luiz Regis Prado, "a determinação dos valores elementares da comunidade deve estar, em princípio delineada na Constituição", que há de ser, portanto, "o ponto jurídico-político de referência primeiro em tema de injusto penal – reduzido às margens da estrita necessidade – como afirmação do indispensável liame material entre o bem jurídico e os valores constitucionais, amplamente considerados" [24].

Desse modo, descabe a tutela penal se dissociada do pressuposto do bem jurídico, sendo considerada legítima, sob a ótica constitucional, quando socialmente necessária a identificação de bens jurídicos socialmente relevantes é condição exclusiva e imprescindível, dentro de um Estado Social e Democrático de Direito, de legitimação da intervenção do Direito penal. Isso leva à necessária elaboração de uma teoria do bem jurídico-penal, que deverá se fundar em princípios que lhe dêem harmonização a outras regras básicas de construção do sistema penal [25].

A tutela penal não pode se concretizar de forma assistemática, ignorando determinados critérios básicos que devem nortear a intervenção penal em qualquer esfera da vida humana. Faz-se mister balizá-la pelos princípios fundamentais do direito penal.

O princípio da lesividade

Diz respeito à exteriorização da conduta do Agente. Conforme Roxin, só pode ser castigado aquele comportamento que lesione direitos de outra pessoa e que não é simplesmente um comportamento pecaminoso ou imoral [26].

Assim, a legitimação do Direito Penal apenas se dará nos casos em que houver lesão efetiva ao bem jurídico. Assim, ressaltam-se as características da indispensabilidade e essncialidade.

Desse princípio, partem outros, quais sejam, o da dignidade penal do bem jurídico (somente devem ser objeto de tutela penal aqueles bens que são julgados indispensáveis para a convivência harmônica da sociedade e só será tutelada aquela lesão referente a bens jurídicos essenciais), o princípio da necessidade (onde o bem jurídico não carecer de tutela, o direito penal não deve intervir), o princípio da insignificância (só aqueles bens que sofram lesão significativa) e o princípio da carência da tutela penal (o direito penal só deverá intervir quando realmente existir carência dessa tutela penal querendo efetivamente não houver outros tipos de tutela).

O princípio da intervenção mínima.

De acordo com Francisco Muñoz Conde, "é lógico que se espera, de acordo com o princípio da intervenção mínima, que o legislador só utilize o Direito Penal para proteger bens jurídicos verdadeiramente importantes e tipifique aqueles comportamentos verdadeiramente lesivos ou perigosos para esses bens jurídicos. Mas isto é um desideratum que nem sempre é cumprido. Daí a necessidade de Ter sempre presente uma atitude crítica tanto frente aos bens jurídicos protegidos quanto à forma de protegê-los penalmente" [27].

Alberto Silva Franco, ensina que "o controle social penal deve estar predisposto, antes de tudo, à tutela dos bens de máxima importância para o indivíduo e para a comunidade". Assim, "o Direito Penal somente protege os bens jurídicos mais valiosos para a convivência, e o faz, além disso, exclusivamente, em face dos ataques mais intoleráveis de que possam ser objeto (natureza ‘fragmentária’ da intervenção penal) e quando não existam outros meios eficazes, de natureza não penal, para salvaguardá-los (natureza ‘subsidiária’ do Direito Penal). Se parte dessas considerações e do entendimento de que a pena é um mal irreversível, uma ‘amarga necessidade’, força é convir que se deve reduzir ao máximo o apelo ao Direito Penal. Num Estado Democrático de Direito, a intervenção penal não pode ter uma dimensão expansionista: deve ser necessariamente mínima, expressando, apenas e exclusivamente, a idéia de proteção de bens jurídicos vitais para a livre e plena realização da personalidade de cada ser humano e para a organização, conservação e desenvolvimento da comunidade social em que ele está inserido. Como então determinar tais bens? A estreita vinculação entre a ordem jurídica e a ordem social recomenda o exame da própria realidade social para a identificação dos bens jurídicos mais relevantes para o indivíduo e para a convivência societária" [29].

O princípio da fragmentariedade

O caráter fragmentário significa que o Direito penal não deve sancionar todas as condutas lesivas dos bens jurídicos que protege, mas apenas as modalidades de ataques mais perigosos para eles. Assim, como enfatiza Mir Puig (Derecho penal, p. 74. 2ª ed. Barcelona, PPU, 1985), nem todos os ataques a propriedade constituem delito, mas apenas certas modalidades especialmente perigosas, como o apoderamento subreptício, violento ou fraudulento.

O princípio da subsidiariedade

Para proteger os interesses sociais, o Estado deve esgotar os meios menos lesivos que o Direito penal, antes de recorrer a este que, nesse sentido, deve constituir-se numa arma subsidiária, uma ultima ratio. Deverá preferir-se antes de tudo a utilização dos meios desprovidos do caráter de sanção, como uma adequada Política Social. Seguirão, em continuação as sanções não penais. Somente quando nenhum dos meios anteriores for suficiente estará legitimado o recurso à pena ou à medida de segurança.

Aquele diploma traça, de forma inequívoca, os parâmetros a serem obrigatoriamente trilhados pelo legislador ordinário na tipificação de condutas que atentem contra bens jurídicos reconhecidamente essenciais, de acordo com os padrões e valores forjados em um certo momento histórico. Sustenta Bettiol, nesse sentido, que "o bem jurídico está intimamente ligado às concepções ético-políticas dominantes e portanto assume significado diverso e conteúdo diverso com a mudança do tempo e do ambiente. O direito penal, estreitamente jungido a valores de uma determinada época, encontra neles a sua razão de ser, como organismo de tutela" [30].

As diretivas agasalhadas explícita ou implicitamente na Carta Constitucional limitam, pois, a criação do injusto penal, de maneira que "a natureza constitucional do bem jurídico define, em última análise, a possibilidade ou não de sua tutela" Logo, tem-se que "a nenhuma norma infraconstitucional é facultado ignorar esse quadro axiológico e todas devem ser examinadas objetivando tornar possível sua real concreção" [31].

Figueiredo Dias afirma que "(s)e, num Estado de Direito material, toda a atividade estadual se submete à Constituição, então também a ordem dos bens há de constituir uma ordenação axiológica como aquela que preside à Constituição. Entre as duas ordens se verificará pois uma relação, que não é por certo de identidade, ou sequer de recíproca cobertura, mas de analogia substancial, fundada numa essencial correspondência de sentido; a permitir afirmar que a ordem de valores jurídio-constitucional constitui o quadro de referência e, simultaneamente, o critério regulativo do âmbito de uma aceitável e necessária atividade punitiva do Estado" [32].

O Direito Penal adequado ao Estado Democrático de Direito figura como um Direito Penal de mínima intervenção, em que este só atuará a fim de proteger os bens jurídicos fundamentais da sociedade; esta afirmação justifica-se em virtude da pesada carga punitiva do direito penal que sufocaria a convivência social se não fosse limitada a sua intervenção. No fundo desta concepção do controle social penal está a dignidade da pessoa humana, como centro da organização estatal; particularmente eu vejo aí uma concepção mecanicista de sociedade, que coloca o ser humano como fim último da organização social.

Nos delitos chamados não convencionais, que é o caso dos delitos ambientais, prevalece e se reafirma a idéia de que o Direito penal é a última instância de controle social e que cumpre uma função subsidiária e auxiliar, às normas não penais (civis, administrativas, contravencionais) e que são essas, passíveis de uma adequada política de conscientização, as que têm a tarefa de prevenir os danos ecológicos, reservando ao direito penal somente para os atentados mais graves, e quando os outros controles fracassarem.

A intervenção penal em matéria ambiental deve cingir-se, prima facie, a uma função subsidiária da disciplina administrativa. A sanção penal é a ultima ratio do ordenamento jurídico, o que significa que apenas as hipóteses de atentados graves ao bem jurídico devem ser tipificadas.

2.2 O bem jurídico tutelado nos delitos ambientais.

Desde a metade da década de 70 se tem aprofundado o estudo dos chamados bens jurídicos coletivos, colocando-se em relevo uma questão de política criminal que era a ausência de utilização do Direito Penal para a proteção de interesses de grande relevância social, mas que justamente refletem interesses antagônicos a interesses políticos e econômicos importantes e influentes em nossa sociedade (saúde pública, interesse dos trabalhadores), utilizando a expressão interesses difusos.

Todavia, como alerta Berdugo Gomes de la Torre "...la exigencia político-criminal de garantizar estos intereses no puede ni debe reducirse a la utilización del Derecho Penal, sino que debe abarcar la adopción de aquellas medidas más adecuadas para su garantía, lo que presupone la vigencia de principios como lo son los de la última retio, proporcionalidad e igualdad. Ni en sentido contrario, las dificultades que puede presentar el recurso al Derecho Penal frente a los más graves ataques de los mismos debe conducir a la afirmación de que por tanto, no debe en estos casos acudirse ao ordenamiento punitivo" [33].

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O ambiente ecologicamente equilibrado é, sem dúvida, um bem jurídico-penal portador de substantividade própria, erigido pelo texto constitucional como direito fundamental da pessoa humana (art. 225, CF). Estampado na Constituição Federal – ponto jurídico-político de referência obrigatória em tema de injusto penal – como valor digno de tutela, a efetiva proteção do ambiente exige a observância das linhas mestras já mencionadas, que figuram como limites infranqueáveis à atividade punitiva do Estado [34].

O bem jurídico ambiente impõe, para seu eficaz resguardo, a intervenção da tutela penal, posto que se reveste, indiscutivelmente, de significativa importância para o regular equilíbrio e sustentação da vida humana sobre a terra. Essa posição de relevo ocupada por tão importante bem jurídico encontra supedâneo no próprio texto constitucional, que reconhece expressamente o direito fundamental de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225).

Flávia Piovesan assinala que "só existirá sadia qualidade de vida se o meio ambiente for ecologicamente equilibrado, não degradado. Vale dizer, sem a proteção ambiental, não há como cogitar do direito à saúde, e, por sua vez, não há como cogitar do direito a uma vida digna" [35].

A determinação exata da noção de meio ambiente como bem jurídico-penal é questão tortuosa, sobretudo em virtude da variedade conceitual que encerra. Faz-se alusão, por ora, a três concepções defendidas pela doutrina que buscam fornecer, com a maior precisão possível, o real significado do bem jurídico ambiente.

Em uma posição de relativo equilíbrio no que respeita à noção do ambiente se encontra uma tendência intermediária, que postula uma elaboração conceitual calcada apenas na vertente naturalista daquele bem jurídico. Ou seja, tal concepção de ambiente coloca de lado "toda a problemática urbanística e territorial, sendo parte dele a natureza, com os elementos água, ar, solo, a fauna e a flora e o conteúdo da relação homem meio. Nesse diapasão, assevera a doutrina que "o bem tutelado é normalmente constituído pela limpeza e pureza da água, do ar e do solo", sendo que a esses componentes foram acrescidos outros, como resultado do desenvolvimento legislativo, passando também a merecer tutela "fatores essenciais ao equilíbrio natural, como aqueles climáticos ou biológicos, afora aqueles alusivos à contenção de ruídos ou à preservação do verde" [36].

Esse entendimento aparenta ser o mais coerente e apropriado na construção conceitual do ambiente como bem jurídico-penal. Uma posição globalista, com lastro em diretrizes genéricas, inclui em seu bojo aspectos que não integram o conceito de ambiente, tais como o espaço urbano fechado (edificações) e aberto (ruas, praças etc.). Se assim não fosse, nada restaria excluído daquele conceito, que acabaria por reunir todo e qualquer setor da vida (natural, artística ou cultural). De outro lado, uma noção assaz restritiva da concepção de ambiente consigna como seus elementos tão-somente alguns aspectos naturais, com ênfase conferida ao meio físico (ar e água), em detrimento do patrimônio florístico, por exemplo.

A proteção dispensada ao bem jurídico ambiente deve ter em conta que este apresenta substantividade própria, ou seja, possui caráter autônomo. É certo que a tutela dos fatores naturais que o compõem – flora, fauna, ar, água, solo – tem por escopo evitar que da alteração prejudicial dos mesmos derivem efeitos adversos ao equilíbrio da vida humana, vegetal e animal. Entretanto, o reconhecimento da validade dessa assertiva não implica a exclusão do "equilíbrio que é o próprio da flora e da fauna, embora sem ter uma incidência direta no desenvolvimento humano, tanto em seu aspecto biológico como social".

A idéia é de que o bem jurídico protegido é fundamentalmente o "meio ambiente", entendido como a manutenção das propriedades do solo, do ar e da água, assim como a fauna e a flora e as condições ambientais de desenvolvimento das espécies, de tal forma que o sistema ecológico se mantenha com seus sistemas subordinados e não sofra alterações prejudiciais. Quer dizer que não é necessário chegar a produzir o dano efetivamente à saúde de uma pessoa ou colocar em perigo sua vida; o âmbito de proteção se antecipa como totalidade ecológica.

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Sobre o autor
Rodrigo Alves da Silva

mestre e doutor em Direito. É pesquisador e parecerista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Advogado,regularmente inscrito na OAB/SP (204.358), docente da Escola Superior de Advocacia (ESA) e Professor Universitário.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Rodrigo Alves. A responsabilidade penal por danos ao meio ambiente. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 61, 1 jan. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3630. Acesso em: 16 abr. 2024.

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