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O tele-interrogatório no Brasil

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01/01/2003 às 00:00
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6. Nulidades: há?

Sabe-se que não há nulidade sem prejuízo. É a regra do art. 563 do CPP: "Nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa". Por sua vez, o art. 564, inciso III, alínea ´e´, determina a nulidade do processo em caso de falta de interrogatório. Vale dizer: o que anula a ação penal é a falta do interrogatório, e não a sua realização por meios tecnológicos. Pergunta-se objetivamente aos contrários: há algum real prejuízo para o réu com o tele-interrogatório? Não. Logo, não há qualquer justificativa jurídica, nos planos da razoabilidade e do garantismo, para tolher ou proibir tal forma de interrogatório, em que o comparecimento continua a ocorrer, sendo o réu conduzido à presença virtual do juiz da causa, sem prejuízo do contraditório efetivo.

Ainda no plano das nulidades, vale mencionar que o art. 564, inciso IV, do CPP, dispõe que haverá nulidade "por omissão de formalidade que constitua elemento essencial do ato". O comparecimento físico do réu diante do juiz para ser interrogado não é uma formalidade ad substantiam. Ademais, a realização do tele-interrogatório não acarreta omissão de formalidade alguma, mas substituição de um procedimento por outro. Mesmo que a forma aqui fosse elemento essencial do ato, a nulidade seria relativa, pois segundo o art. 572, inciso II, do mesmo código, as nulidades ali referidas consideram-se sanadas "se, praticado por outra forma, o ato tiver atingido o seu fim". Aqui se lança uma pá de cal sobre o assunto. Se a finalidade do ato é atingida, não há nulidade alguma a declarar. A regra aplica-se ainda às nulidades relativas previstas no art. 564, III, ´e´, segunda parte, e ´g´, do CPP.

Esta previsão é compatível com o sistema dos Juizados Especiais Criminais, porquanto o art. 65 da Lei n. 9.099/95 declara que "Os atos processuais serão válidos sempre que preencherem as finalidades para as quais foram realizados, atendidos os critérios indicados no art. 62 desta Lei". Ao seu tempo, este dispositivo preconiza um procedimento orientado pelos princípios da informalidade, da celeridade e da economia processual, todos compatíveis com o sistema de videoconferência.

Veja-se ainda que, pelo art. 65, §2º, da Lei n. 9.099/95, "A prática de atos processuais em outras comarcas poderá ser solicitada por qualquer meio hábil de comunicação", inclusive mídias eletrônicas, sendo que, na forma do §3º, do mesmo artigo, os atos realizados em audiência de instrução e julgamento - quando ocorre, nos Juizados Criminais, o interrogatório do réu (art. 81) -, "poderão ser gravados em fita magnética ou equivalente". Por "equivalente", pode-se muito bem entender um sistema de videoconferência, com gravação do ato em CD-Rom ou outro suporte.


7. Uma mais ampla defesa

É preciso notar também que o tele-interrogatório assegura ao réu, com muito maior amplitude, o acesso ao seu juiz natural. Pelo art. 5º, LIII, da CF "ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente". De fato, adotando-se o sistema às inteiras, não serão mais necessárias cartas precatórias ou rogatórias para interrogatório de denunciados ou ouvida de testemunhas. O próprio juiz da causa ouvirá diretamente o acusado, onde quer que ele esteja, encarcerado ou solto. Vale dizer: todos os atos processuais serão praticados pelo juiz natural do réu, o único competente para a causa.

A propósito, o art. 220 do CPP declara que "As pessoas impossibilitadas, por enfermidade ou por velhice, de comparecer para depor, serão inquiridas onde estiverem". Fortalecendo o princípio do juiz natural, com a videoconferência, o próprio juiz da causa poderá ouvir tais pessoas "onde estiverem".

As cartas de ordem podem se tornar desnecessárias ou menos comuns. O juiz natural nas ações penais originárias - as que tramitam perante os tribunais na forma da Lei n. 8.038/90 - poderá interrogar ele mesmo o réu e ouvir as testemunhas, sem necessidade de delegação a magistrados de instâncias inferiores. Todo o processo poderá ser conduzido pelo juiz da causa, diretamente, sem deslocamentos espaciais, por meio da teleconferência.

O novo método evita, outrossim, os julgamentos à revelia e dos fenômenos processuais a ela correlatos, nos casos de impossibilidade física de comparecimento do réu, seja por doença ou por incapacidade financeira. O interrogatório on-line reduzirá as hipóteses de aplicação do art. 366 do CPP: "Se o acusado, citado por edital, não comparecer, nem constituir advogado, ficarão suspensos o processo e o curso do prazo prescricional, podendo o juiz determinar a produção antecipada das provas consideradas urgentes e, se for o caso, decretar prisão preventiva, nos termos do disposto no art. 312". Ora, se o réu comparecer virtualmente ao processo não haverá porque suspender o andamento da ação penal e o curso do prazo prescricional. Nem haverá motivo para a decretação de prisão preventiva do acusado, que "não comparecer", o que é sem dúvida uma grande vantagem processual e material para o réu.

Quanto à impossibilidade econômica do réu, é certo que num país de dimensões continentais como o Brasil, muitas vezes ocorrem casos de acusados a quem faltam condições financeiras para deslocar-se até a sede do juízo processante, para defender-se de imputações, verossímeis ou não. Aí também a tecnologia de videoconferência pode-se prestar a reduzir os riscos de uma condenação injusta, ou limitar as situações de julgamento a revelia e certas formas de marginalização processual. Observe-se que nem sempre o réu deixa de comparecer porque quer. Há momentos em que o comparecimento pessoal é inviável, difícil ou muito oneroso. Sem dúvida, o tele-interrogatório amplia o direito constitucional de acesso à Justiça, edificado com base no art. 5º, inciso XXXV, da Constituição ("A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito"). Alarga-se também o direito de defesa, inserido no art. 5º, LV, da Carta de 1988, pois surge o direito de defesa à distância, especialmente para o réu que se livre solto.

Não é apenas isto. Um réu preso num Estado do norte do País dificilmente poderá ser conduzido, por requisição, a um Estado do Sul ou do Sudeste do Brasil, para ser ouvido em outros processos que por lá corram contra si. Nesta situação, o tele-interrogatório cresce em importância, acelerando o andamento das ações penais, inclusive em benefício do próprio acusaso, em favor de quem milita a presunção de não-culpabilidade até o trânsito em julgado de eventual sentença condenatória (art. 5º, LVII, CF). Estando o réu preso ou solto em outro país, o tele-interrogatório pode ser a única possibilidade efetiva conferida pela lei ao acusado para avistar-se com o juiz processante e com os demais sujeitos processuais.

Mesmo nos casos de réu preso na mesma comarca do processo, o tele-interrogatório contribui para o cumprimento das diretrizes do direito internacional humanitário que exigem o acesso imediato ao juiz da causa e o seu julgamento sem demora. Hoje, sem o interrogatório on-line tal apresentação, raramente acontece antes do recebimento da denúncia. As novas tecnologias da informação, por facilitarem a comunicação e por tornarem menos dispendiosos vários procedimentos processuais, viabilizam o acesso direto do acusado ao seu juiz em uma infinidade de situações, com rapidez e eficácia.


8. Efeitos sobre o princípio da publicidade geral

Assinalamos ainda uma outra vantagem do sistema de tele-interrogatório: a maior amplitude e efetividade do princípio da publicidade, previsto no art. 5º, LX, e no art. 93, IX, da CF. Quando os atos processuais (interrogatório e audiências) são realizados por videoconferência aberta, um número virtualmente infinito de pessoas pode tomar conhecimento do processo penal, inclusive pela Internet, assegurando-se deste modo o princípio da publicidade geral e o controle social sobre os atos do Poder Judiciário.

A potencialização do princípio da publicidade é considerável, porquanto pessoas as mais diversas, mesmo não estando no distrito da culpa, podem assistir aos atos processuais. Esta preocupação é cada vez maior na sociedade. Não é à-toa que o Supremo Tribunal Federal pôs no ar em setembro de 2002 a TV Justiça, destinada a se juntar às TV Câmara e TV Senado na tarefa de levar aos cidadãos informações precisas e atualizadas sobre os Poderes Legislativo e Judiciário, inclusive mediante a transmissão de sessões de julgamento ao vivo, via satélite.


9. Outras vantagens processuais para o réu

Assim, de modo algum as novas tecnologias, aqui enfocando o sistema de interrogatório on-line, podem ser tidas, em sua essência, como prejudiciais aos interesses do acusado. Ao contrário, ao propiciar maior celeridade ao processo penal e acesso efetivo e universal ao juiz da causa, o procedimento reduz as agruras a que o acusado é submetido durante a quase sempre interminável tramitação das ações penais.

Outra vantagem para o réu é assegurar de certo modo, também no processo penal, o princípio da identidade física do juiz. Ora, as audiências e os interrogatórios on-line podem ser gravados em meio digital, óptico ou equivalente. Esta facilidade permite ao julgador da causa, o mesmo que realizar o ato ou o que o suceder, aproximar-se fundamentalmente da prova então produzida, ao ver ou rever as gravações audiovisuais, permitindo inclusive a observação repetidas vezes dos mecanismos não-verbais de linguagem que comumente ocorrem numa audiência judicial. Os gestos, os movimentos corporais, a postura, as fácies do réu, vítimas e testemunhas, tudo enfim, pode ser captado pelas câmeras de vídeo e pelos aparatos microfônicos, e submetido à análise sistemática e apurada do julgador.


10. Menos dispêndios, mais segurança

Há ainda outros benefícios na implementação de meios de videoconferência processual. Ao lado da economia de recursos com o transporte de presos (o que implica gastos com veículos, combustível, armamentos, coletes, escoltas, diárias, alimentação) e a mobilização de policiais militares e agentes penitenciários, o tele-interrogatório permite maior segurança na custódia de réus, eliminando a necessidade de transferências mediante custosas escoltas policiais e o risco de fugas ou ações espetaculares de quadrilhas especializadas no resgate de presos. É cada vez mais comum, nas metrópoles e nas grandes cidades brasileiras, a atuação de grupos armados, que atacam guarnições policiais para libertar presos sob custódia ou para eliminá-los.

As transferências dos presídios e penitenciárias para os fóruns e vice-versa também importam riscos para os presos e para a coletividade, tendo em vista que em algumas situações o aparato policial envolvido concentra em suas mãos grande poder de fogo e reação a investidas das referidas organizações. De igual modo, o tele-interrogatório permite que os servidores dos órgãos de repressão criminal, especialmente da Polícia Militar, da Polícia Federal e dos departamentos penitenciários, sejam empregados em suas atividades mais importantes, de investigação, de policiamento ostensivo e de execução penal.

Além disso, no deslocamento de presos, não é raro que algumas audiências sejam adiadas por ausência de advogados, testemunhas ou do representante do Ministério Público, ou por alguma contingência do juízo. Então, terá havido verdadeiro desperdício de recursos públicos e real perda de tempo. A tele-audiência reduz substancialmente tais ônus e incômodos.

Some-se a isto a já referida eliminação da burocracia da expedição de cartas precatórias para a tomada de interrogatórios em outras comarcas (e de rogatórias a outros países), instrumentos de tramitação demorada e que não se coadunam com o moderno processo penal e com as necessidades de rápida resposta à criminalidade. É importante frisar que este argumento não segue a tendência law and order. Um processo penal mais célere é um direito reconhecido aos réus no direito internacional humanitário, em quadro inteiramente compatível com os ideais democráticos.

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11. O tele-interrogatório caso a caso

Não vemos razão nem mesmo para excepcionar, como pretende o projeto Fleury, o interrogatório do réu na sessão de julgamento perante o tribunal do júri, para impedir a realização do ato por videoconferência nestas hipóteses.

Nos crimes dolosos contra a vida inafiançáveis, é indispensável a presença do réu em plenário, sob pena de nulidade, à luz do art. 461, §1º, c/c o art. 564, III, ´d´, do CPP. Nos crimes afiançáveis de competência do tribunal popular, o julgamento pode ocorrer à revelia, se o não-comparecimento for injustificado. Mas o anteprojeto que modifica o procedimento do júri no CPP prevê a dispensa do comparecimento do réu ao seu próprio julgamento pelo tribunal popular, tendo em vista que este dispositivo processual tem contribuído para a impunidade e para a morosidade processual. Sendo assim, com maior razão é recomendável adotar o tele-interrogatório também no tribunal do júri, o que facilitará o exercício da ampla defesa pelo acusado e possibilitará aos jurados, os juízes naturais da causa, conhecer a personalidade e o comportamento do acusado, onde ele estiver.

Se mesmo em situações de real risco de vida (como a realização de cirurgias nas aplicações de telemedicina), já tem sido dispensada a presença física do operador, por que seriam necessárias maiores cautelas em relação à mera tomada de depoimentos de acusados, desde que preservados os seus direitos ao silêncio e à não auto-incriminação e o sistema de valoração probatória em que a confissão do réu tem valor relativo? O sistema de videoconferência permite uma conversação normal, em tempo real, como se as pessoas estivessem no mesmo espaço físico. Por isso, inevitavelmente será adotado.

O Tribunal de Justiça da Paraíba já pôs em funcionamento nas Vara das Excuções Penais de João Pessoa um sistema de teledepoimentos. O link entre as varas e a Penitenciária do Roger permite aos juízes das execuções realizar o interrogatório de condenados, por meio de videoconferência.

Na falta de legislação brasileira, o procedimento foi regulamentado pela Portaria n. 2.210/2002 da presidência do Tribunal, prevendo-se o respeito a todos os direitos assegurados aos acusados e sentenciados pela Constituição Federal. Para este fim, o interrogatório à distância somente se torna válido com a presença física de um oficial de Justiça e de um defensor público ao lado do réu ou condenado, na sala de videoconferência do presídio. O sistema implementado na Paraíba é de alta tecnologia, permitindo visões panorâmica e detalhada dos ambientes, e conta com um sensor de áudio, o que leva às câmeras de vídeo a localizar e focalizar automaticamente a fonte emissora do ruído.

Na Justiça Federal, o Tribunal Regional da 1ª Região com sede em Brasília, já faz uso eficiente das novas tecnologias aplicadas ao Direito. Uma das soluções de informática jurídica encontradas permite o acompanhamento on-line de todos os processos em tramitação na corte. É o sistema TRF-push, também empregado no STF e no STJ, onde desde setembro de 2002 já é publicada a Revista Eletrônica de Jurisprudência. No website do Tribunal Regional pode-se também ter acesso ao peticionamento eletrônico (e-proc) ou "Sistema de Transmissão Eletrônica de Atos Processuais da Justiça Federal da 1ª Região", regulamentado pela Portaria n. 258, de 16 de maio de 2002, bem como ao serviço de expedição de Documento de Arrecadação de Receitas Federais eletrônico ou e-DARF.

Outra inovação em estudo é a tele-sustentação, que permitirá aos advogados dos vários Estados da área de abrangência do TRF da 1ª Região (Acre, Amazonas, Amapá, Bahia, Distrito Federal, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Piauí e Rondônia, Roraima e Tocantins) realizar sustentações orais por videoconferência, sem deslocamento espacial, mas com presença real perante o tribunal. A novidade é extremamente relevante, pois um advogado em Macapá não precisará sair às pressas para Brasília (trajeto só realizado de avião ou por navio, com passagem por Belém), a fim de fazer uma sustentação recursal na capital federal.

Segunda a Revista Consultor Jurídico, de 3 de julho de 2002, em Cingapura, país do sudeste asiático, os tribunais já realizam desde meados de 2002 audiências de ouvida de testemunhas por videoconferência, em processos civis. Os advogados locais também podem utilizar videoconferência para apresentar alegações orais perante as cortes. O sistema, apelidado de Justice Online, funciona com base em conexões telemáticas de banda larga na espécie Symmetric Digital Subscriber Line (SDSL), de 512Kbps (quilobits por segundo). Em breve o mecanismo tecnológico será utilizado em processos criminais. Estações do Justice Online serão instaladas em penitenciárias, para permitir tele-interrogatórios pela Promotoria-Geral e pelo Judiciário.

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Sobre o autor
Vladimir Aras

Professor Assistente de Processo Penal da UFBA. Mestre em Direito Público (UFPE). Professor da Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU). Procurador da República na Bahia (MPF). Membro Fundador do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAS, Vladimir. O tele-interrogatório no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 61, 1 jan. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3632. Acesso em: 28 mar. 2024.

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