Quando se fala em responsabilidade do Estado, está-se cogitando dos três tipos de funções pelas quais se reparte o poder estatal: a administrativa, a jurisdicional e a legislativa. Fala-se, no entanto, com mais frequência, de responsabilidade resultante de comportamentos da Administração Pública aqui entendida como poder de execução, já que, com relação aos Poderes Legislativo e Judiciário, essa responsabilidade incide em casos excepcionais.
Exsurgindo dano resultante de comportamento do Executivo, do Legislativo ou do Judiciário, a responsabilidade é do Estado, pessoa jurídica; por isso, alerta Maria Sylvia Zanella Di Pietro[1] que é um equívoco falar em responsabilidade da Administração Pública, já que esta não tem personalidade jurídica, não é titular de direitos e obrigações na ordem civil. A capacidade é do Estado e das pessoas jurídicas públicas ou privadas que o representam no exercício de parcela de atribuições estatais. Vale dizer, nesse diapasão, que a responsabilidade estatal é sempre de ordem civil, jamais penal, visto que o direito de punir está exclusivamente em suas mãos (ius puniendi). Não se pode cogitar, a toda evidência, punir a si mesmo.
O Estado, como se sabe, é ente abstrato, criado pelo direito. É realidade jurídica, não fática[2]. Então, a quem deve ser imputado o fato danoso? Quando o Direito trata da responsabilidade, induz de imediato à circunstância de que alguém, o responsável, deve responder perante a ordem jurídica em virtude de algum fato precedente. E essa responsabilidade decorre da alteração do mundo fático mediante uma lesão, que constitui o fato danoso.
Aponta o administrativista José dos Santos Carvalho Filho:
Esses dois pontos – o fato e sua imputabilidade a alguém – constituem pressupostos inafastáveis do instituto da responsabilidade. De um lado, a ocorrência do fato é indispensável, seja ele de caráter comissivo ou omissivo, por ser ele o verdadeiro gerador dessa situação jurídica. Não pode haver responsabilidade sem que haja um elemento impulsionador prévio. De outro, é necessário que o indivíduo a que se impute responsabilidade tenha a aptidão jurídica de efetivamente responder perante a ordem jurídica pela ocorrência do fato[3].
Oportuno salientar, nessa seara, que a responsabilidade estatal não está atrelada ao aspecto da licitude ou ilicitude. Como regra, segundo lições de direito privado, o fato ilícito é que acarreta a responsabilidade, mas, em ocasiões especiais, previu o legislador, há a possibilidade de nascer a responsabilidade até mesmo de fatos lícitos. Destarte, a caracterização do fato como gerador da responsabilidade obedece ao que a lei estabelecer a respeito. Isso se deve, principalmente, à verificação de que os comportamentos dos entes estatais, via de regra, conforme se verá adiante, causam a pessoas determinadas ônus maior do que o imposto aos demais membros da coletividade.
Então, retomando o questionamento precedente, a quem se deve a conduta que engendra a responsabilidade? Em decorrência da própria natureza jurídica do Estado, por constituir pessoa pública e política (pessoa moral), ele é incapaz de agir; apenas manifesta ação ou omissão por intermédio de pessoas físicas; são seus agentes que, concretamente, incorrem nos danos imputáveis à ação administrativa[4]. A Administração Pública só pode realizar as atividades que lhe são próprias por meio de agentes ou órgãos vivos (servidores), de tal modo que a ação da Administração Pública, como ação do Estado, se traduz em atos de seus funcionários.
Assim, José dos Santos Carvalho Filho afirma que “o Estado, por si só, não pode causar danos a ninguém. Somente se faz presente no mundo jurídico por meio de seus agentes, pessoas físicas cuja conduta a ele é imputada”[5].
Na mesma linha de raciocínio, Celso Antônio Bandeira de Mello leciona:
O querer e o agir destes sujeitos é que são, pelo Direito, diretamente imputados ao Estado (manifestando-se por seus órgãos), de tal sorte que, enquanto atuam nesta qualidade de agentes, seu querer e seu agir são recebidos como o querer e o agir dos órgãos componentes do Estado; logo, do próprio Estado. Em suma, a vontade e a ação do Estado (manifestada por seus órgãos, repita-se) são constituídas na e pela vontade e ação dos agentes; ou seja, o Estado e órgãos que compõem se exprimem através dos agentes, na medida em que ditas pessoas físicas atuam nesta posição de veículos de expressão do Estado[6].
Traçado esse panorama, podemos afirmar que, em outras palavras, no âmbito do Direito Público, a responsabilidade civil do Estado evidencia-se na obrigação que tem o Estado de indenizar os danos patrimoniais ou morais que seus agentes, atuando em seu nome, ou seja, na qualidade de agentes públicos, causem à esfera juridicamente tutelada dos particulares. Traduz-se, pois, na obrigação de reparar economicamente danos patrimoniais ou extrapatrimoniais, e com tal reparação se exaure.
Cabe aqui um adendo para notificar a não confusão da responsabilidade civil com as responsabilidades administrativa e penal, sendo essas três esferas de responsabilização, em regra[7], independentes entre si, podendo as sanções correspondentes ser aplicadas separada ou cumulativamente conforme as circunstâncias de cada caso[8]. Necessário, ainda, apartar a responsabilidade civil contratual da extracontratual. A primeira decorre de um negócio jurídico celebrado entre duas pessoas, em que há constituição de direitos e deveres, e a segunda, por seu turno, decorre da lei.
Sobre as diferenças mais marcantes, colha-se a lição de Marçal Justen Filho:
A distinção é essencial porque o regime próprio dos contratos administrativos protege o particular contra certos eventos imprevisíveis, gerando garantias que não se verificam no restante das hipóteses. É assegurado ao particular o direito à intangibilidade da equação econômico-financeira, do que deriva a proteção jurídica em face de caso fortuito, força maior ou fato do príncipe[9]. Tutela similar não se verifica no âmbito da atividade administrativa extracontratual. [...] Abrange apenas os efeitos danosos de ações e omissões imputáveis a pessoas jurídicas de direito público (ou particulares prestadores de serviços públicos), relativas a condutas que configurem infração a um dever jurídico de origem não contratual[10].
Neste trabalho monográfico, trataremos da responsabilidade extracontratual, haja vista que o dano a encarcerados/detentos não se encontra resguardado por nenhum contrato ou qualquer outro negócio jurídico genérico. Incide, na hipótese, a responsabilização ex lege (decorrente da lei).
1. evolução
No estudo da responsabilidade civil do Estado, é prudente que façamos uma incursão histórica na evolução de sua responsabilidade para melhor noção da matéria. O tema tem recebido tratamento diferenciado no tempo e no espaço; inúmeras teorias têm sido elaboradas, inexistindo dentro de um mesmo Direito uniformidade de regime que abranja todas as hipóteses. Em alguns sistemas, como o anglo-saxão, prevalecem os princípios de direito privado; em outros, como o europeu-continental, adota-se o regime publicístico.
Houve uma longa e lenta evolução até chegar ao estágio atual, o qual, conforme veremos, encontra-se no campo do risco administrativo.
Para sintetizar o abordado nos tópicos seguintes, podemos anotar o esboço de Yussef Said Cahali, em citação ao mestre francês Paul Duez, in verbis:
Numa primeira fase, a questão inexistia; a irresponsabilidade aparece como axioma, e a existência de uma responsabilidade pecuniária da Administração é considerada como entrave perigoso à execução dos seus serviços; na ordem patrimonial, os administrados têm à sua disposição apenas uma ação de responsabilidade civil contra o funcionário; b) numa segunda fase, a questão se põe parcialmente no plano civilístico: para a dedução da responsabilidade pecuniária do Poder Público, faz-se apelo às teorias do Código Civil, relativas aos atos dos prepostos e mandatários; c) numa terceira fase, a questão se desabrocha e se desenvolve no plano próprio do direito público; uma concepção original, desapegada do direito civil, forma-se progressivamente no quadro jurídico da faute e do risco administrativo[11].
Em linhas gerais, esse é o panorama histórico. Vamos estudar individualmente cada fase nos pontos a seguir.
1.2 Irresponsabilidade do Estado
A teoria da não responsabilização do Estado ante os atos de seus agentes que fossem lesivos aos particulares assumiu sua maior notoriedade sob os regimes absolutistas. Baseava-se esta teoria na ideia de que não era possível ao Estado, literalmente personificado na figura do rei, lesar seus súditos, uma vez que o rei não cometia erros[12], tese consubstanciada na parêmia “the king[13] can do no wrong” (O rei não pode errar), conforme os ingleses, ou “le roi ne peut mal faire”, segundo os franceses. O cidadão, à mercê dos atos estatais - imunes de responsabilidade -, apenas possuía ação contra o próprio funcionário causador do dano, jamais contra o Estado, que se mantinha distante do problema. E referida empreitada quase sempre era frustrada, dada a recorrência de insolvabilidade dos agentes públicos.
Os argumentos que emolduraram a teoria são os citados por CAHALI:
[...] a) quando o Estado exige a obediência de seus súditos, não o faz para fins próprios, mas, justamente, para o bem dos mesmos; logo, de semelhante ato não lhe pode advir qualquer responsabilidade; b) não se justifica a fixação de que os funcionários administrativos sejam órgãos imediatos do Estado e que, em consequência, os atos destes devam ser tidos como atos do Estado; este só é representado pelo chefe do governo; c) as relações jurídicas do mandato não podem ser aplicadas por analogia aos servidores do Estado, como se tem pretendido; d) a obrigação de indenizar tira, em regra, a sua razão de ser de uma culpa; ora, da escolha do funcionário só pode caber culpa ao Estado quando a pessoa nomeada for, sabidamente, indigna ou incapaz; semelhante culpa não pode ser absolutamente derivada do caráter representativo que tem o funcionário em relação ao Estado; Estado e funcionário são sujeitos diferentes, e por isso a culpa do funcionário não é culpa do Estado; e) o funcionário, seja agindo fora dos limites de seus poderes, ou sem a forma legal imposta à sua ação, ou mesmo abusando dela, não obriga com seu ato o Estado, porque não o representa; f) o Estado não pode prestar contra a sua própria autoridade[14].
Podemos balizar a teoria da irresponsabilidade absoluta da Administração Pública, portanto, em três pilares: (i) na soberania do Estado, que, por natureza irredutível, proíbe ou nega sua igualdade ao súdito, em qualquer nível de relação; a responsabilidade do soberano perante o súdito é impossível de ser reconhecida, pois envolveria uma contradição nos termos da equação; (ii) segue-se que, representando o Estado soberano o direito organizado, não pode aquele aparecer como violador desse mesmo direito; (iii) daí, os atos contrários à lei praticados pelos funcionários jamais podem ser considerados atos do Estado, devendo ser atribuídos pessoalmente àqueles como praticados nomine proprio.
Os agentes públicos, como representantes do próprio rei, não poderiam, por conseguinte, ser responsabilizados por seus atos, ou melhor, seus atos, na qualidade de atos do rei, não poderiam ser considerados lesivos aos súditos.
Desnecessário comentar que esta doutrina somente possui valor histórico, encontrando-se atualmente inteiramente superada, mesmo na Inglaterra e nos Estados Unidos, últimos países a abandoná-la[15], haja vista que adotá-la é privilegiar clamorosa injustiça, resolvendo-se na própria negação do direito. A razão de ser é simples: se o Estado se constituiu para a tutela do direito, não havia sentido que ele próprio o violasse impunemente; o Estado, como sujeito dotado de personalidade, é capaz de direitos e obrigações como os demais entes, nada justificando a sua irresponsabilidade.
1.3 Responsabilidade com culpa civil comum do Estado
Esta doutrina, influenciada pelo individualismo característico do liberalismo, pretendeu equiparar o Estado ao indivíduo, sendo, portanto, obrigado a indenizar os danos causados aos particulares nas mesmas hipóteses em que existe tal obrigação aos particulares.
Assim, como o Estado atua por meio de seus agentes, somente existia obrigação de indenizar quando estes, os agentes, tivessem agido com culpa ou dolo, cabendo, evidentemente, ao particular prejudicado o ônus de demonstrar a existência desses elementos subjetivos. Passou-se a fundar a responsabilidade na culpa do funcionário e nos princípios da responsabilidade por fato de terceiro (patrão, preponente, mandante ou representante).
A princípio, distinguia-se, nessa seara, para fins de responsabilidade, os atos de império e os atos de gestão. Acerca da diferenciação dos dois provimentos administrativos, confira-se o magistério de DI PIETRO:
Os primeiros seriam os praticados pela Administração com todas as prerrogativas e privilégios de autoridade e impostos unilateral e coercitivamente ao particular independentemente de autorização judicial, sendo regidos por um direito especial, exorbitante do direito comum, porque os particulares não podem praticar atos semelhantes; os segundos seriam praticados pela Administração em situação de igualdade com os particulares, para a conservação do patrimônio público e para a gestão de seus serviços; como não difere a posição da Administração e a do particular, aplica-se a ambos o direito comum[16].
Em condições tais, agindo o Estado no exercício de sua soberania, na qualidade de poder supremo, supraindividual, os atos praticados nessa qualidade, atos jure imperii, restariam incólumes a qualquer julgamento e, mesmo quando danosos para os súditos, seriam insuscetíveis de gerar direito à reparação.
Todavia, na prática de atos jure gestionis (atos de gestão), o Estado equipara-se ao particular, podendo ter sua responsabilidade civil reconhecida, nas mesmas condições de uma empresa privada, pelos atos de seus representantes ou prepostos lesivos ao direito de terceiros; distinguia-se, então, conforme houvesse ou não culpa do funcionário: havendo culpa, a indenização seria devida; sem culpa, não haveria ressarcimento do dano.
Essa dicotomia teve a pretensão de abrandar a tese de irresponsabilidade estatal, pois com a firmação dos dois polos passou-se a distinguir a pessoa do rei (insuscetível de errar – “the king can do no wrong”), que praticaria os atos de império, da pessoa do Estado, que praticaria atos de gestão, por meio de seus prepostos.[17]
A teoria em tela serviu de inspiração ao artigo 15[18] do antigo Código Civil Brasileiro, de 1916, que possuía a seguinte redação:
As pessoas jurídicas de direito público são civilmente responsáveis por atos de seus representantes que nessa qualidade causem danos a terceiros, procedendo de modo contrário ao direito ou faltando a dever prescrito por lei, salvo o direito regressivo contra os causadores do dano[19].
Conforme se extrai da leitura do dispositivo, o trecho “procedendo de modo contrário ao direito ou faltando a dever prescrito por lei” atrai inequivocadamente o posicionamento da teoria da culpa civil comum do Estado, ao passo que condiciona a responsabilidade estatal à verificação de culpa lato sensu (culpa ou dolo). Revela, no entanto, certo atraso em relação à norma constitucional, conforme veremos no capítulo seguinte, porquanto não faz referência às pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público – erro já solvido no Código Civil de 2002.
Para arrematar o tópico, cite-se ensinamento de Hely Lopes Meirelles, em crítica à teoria civilista:
[...] não se pode equiparar o Estado, com seu poder e seus privilégios administrativos, ao particular, despido de autoridade e de prerrogativas públicas. Tornaram-se, por isso, inaplicáveis em sua pureza os princípios subjetivos da culpa civil para a responsabilização da Administração pelos danos causados aos administrados. Princípios de direito público é que devem nortear a fixação dessa responsabilidade[20].
O mestre administrativista tinha razão ao sustentar a fraqueza da tese de culpa civil comum na responsabilidade do Estado. O constituinte originário de 1988 adotou o seu posicionamento (art. 37, §6º, da CF), conforme se verá adiante.
1.4 Teoria da culpa administrativa
A teoria da culpa administrativa ou culpa anônima representou o primeiro estágio da transição entre a doutrina subjetiva da culpa civil e a responsabilidade objetiva atualmente adotada pela maioria dos países ocidentais.
De acordo com essa nova concepção, a culpa anônima ou falta do serviço público, geradora de responsabilidade do Estado, não está necessariamente ligada à ideia de falta (desvio de conduta) de algum agente determinado, sendo dispensável a prova de que funcionários nominalmente especificados tenham incorrido em culpa[21]. Basta que fique constatado um mau agenciador geral, anônimo, impessoal, na defeituosa condução do serviço, à qual o dano possa ser imputado.
Nessa trilha, a culpa administrativa pode decorrer de uma das três formas possíveis de falta do serviço: inexistência do serviço, mau fornecimento do serviço ou retardamento do serviço. Cabe sempre ao particular prejudicado pela falta comprovar sua ocorrência para fazer jus à indenização.
Em sua célebre obra “Programa de Responsabilidade Civil”, Sérgio Cavalieri Filho, em referência a Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, pontua:
Alguns autores não fazem distinção entre a culpa anônima e a responsabilidade objetiva, chegando, mesmo, a afirmar que são a mesma coisa. Estamos, neste ponto, com o professor Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, ao advertir que a responsabilidade por falta de serviço, falha do serviço ou culpa do serviço, seja qual for a tradução que se dê à fórmula francesa faute du service, não é, de modo algum, modalidade de responsabilidade objetiva, mas subjetiva, porque baseada na culpa do serviço diluída na sua organização, assumindo feição anônima ou impessoal. Responsabilidade com base na culpa, enfatiza o Mestre, é culpa do próprio Estado, do serviço que lhe incumbe prestar, não individualizável em determinado agente público, insuscetível de ser atribuída a certo agente público, porém no funcionamento ou não funcionamento do serviço, por falta na sua organização. Cabe, neste caso, conclui o professor, à vítima comprovar a não prestação do serviço ou sua prestação retardada ou má prestação, a fim de ficar configurada a culpa do serviço, e, consequentemente, a responsabilidade do Estado, a quem incumbe prestá-lo[22].
Em suma, segundo o entendimento lançado por essa teoria, a responsabilidade estatal aflorar-se-ia quando houvesse culpa no serviço público, culpa aqui interpretada quando: (i) o serviço não funcionou (omissão), (ii) funcionou atrasado ou (iii) funcionou mal. Em qualquer dessas três hipóteses, ocorre a culpa (faute) do serviço ou acidente administrativo, incidindo a responsabilidade do Estado independentemente de qualquer apreciação de culpa do funcionário, residindo a perquirição unicamente de conduta falha do Estado, sob a ótica de suas atividades próprias.
É mister consignar, por oportuno, que a responsabilidade por falta do serviço, falha do serviço ou culpa do serviço (faute du service, ou seja qual for a tradução que se lhe dê) não é, de modo algum, modalidade de responsabilidade objetiva, ao contrário do que se propaga entre boa parte da doutrina. É responsabilidade subjetiva, porque baseada na culpa ou dolo[23], elementos da conduta na teoria geral da responsabilidade, embora seja esse animus genérico.
1.5 Teoria do risco administrativo
Chegamos à fase em que se descarta qualquer indagação em torno da culpa do funcionário causador do dano, ou mesmo sobre a falta do serviço ou culpa anônima da Administração. Responde o Estado porque causou dano ao seu administrado, simplesmente porque há relação de causalidade entre a atividade administrativa e o dano sofrido pelo particular.
A teoria em destaque pode ser resumida da seguinte maneira: a Administração Pública gera riscos para os administrados, entendendo-se como tal a possibilidade de dano que os membros da comunidade podem sofrer em decorrência da normal ou anormal atividade do Estado. Tendo em vista que essa atividade é exercida em favor de todos, seus ônus devem ser também suportados por todos, e não por alguns. Consequentemente, deve o Estado, que a todos representa, suportar os ônus de sua atividade, independentemente de culpa dos seus agentes.
Sintetiza Sérgio Cavalieri Filho:
[...] A teoria do risco administrativo importa atribuir ao Estado a responsabilidade pelo risco criado pela sua atividade administrativa. Esta teoria, como se vê, surge como expressão concreta do princípio da igualdade dos indivíduos diante dos encargos públicos. É a forma democrática de repartir os ônus e encargos sociais por todos aqueles que são beneficiados pela atividade da Administração Pública. Toda lesão sofrida pelo particular deve ser ressarcida, independentemente de culpa do agente público que a causou. O que se tem que verificar é, apenas, a relação de causalidade entre a ação administrativa e o dano sofrido pelo administrado[24].
Ratificando o postulado acima, leciona a Professora Maria Sylvia Di Pietro:
Essa doutrina baseia-se no princípio da igualdade de todos perante os encargos sociais e encontra raízes no artigo 13 da Declaração dos Direitos do Homem, de 1789, segundo o qual ‘para a manutenção da força pública e para as despesas de administração é indispensável uma contribuição comum que deve ser dividida entre os cidadãos de acordo com as suas possibilidades’. O princípio significa que, assim como os benefícios decorrentes da atuação estatal repartem-se por todos, também os prejuízos sofridos por alguns membros da sociedade devem ser repartidos. Quando uma pessoa sofre um ônus maior do que o suportado pelas demais, rompe-se o equilíbrio que necessariamente deve haver entre os encargos sociais; para restabelecer esse equilíbrio, o Estado deve indenizar o prejudicado, utilizando recursos do erário público[25].
Em resumo, existindo o fato do serviço e o nexo direto de causalidade entre o fato e o dano ocorrido, presume-se a culpa da Administração. Compete a esta, para se eximir da obrigação de indenizar, comprovar, se for o caso, existência de culpa exclusiva do particular ou, se comprovar culpa concorrente, terá atenuada sua obrigação. O que importa, em qualquer caso, é que o ônus da prova da culpa do particular, se existente, cabe sempre à Administração[26].
Conforme veremos no capítulo II do presente trabalho, é lastreada nesta teoria que se encontra a responsabilidade civil estatal prevista no ordenamento jurídico brasileiro (art. 37, §6º, da Constituição Federal).
1.6 Teoria do risco integral
Esta teoria nada mais é que a versão extremada da teoria do risco administrativo. Aqui, há responsabilidade do ente estatal mesmo nas hipóteses de excludentes da responsabilidade civil comum, como na existência de culpa exclusiva da vítima, fato de terceiro, caso fortuito ou de força maior.
Aqui, não se cogita sequer do nexo causal da conduta estatal, podendo subsistir responsabilidade até na situação em que a culpa é inteiramente da vítima. Citemos, por exemplo, a hipótese em que um indivíduo se atira deliberadamente à frente de uma viatura da polícia militar. Nos moldes dessa teoria, o Estado seria responsável por eventuais danos físicos ou psicológicos causados à vítima, ou, no caso de óbito, ser obrigado ao pagamento de danos materiais e morais à família. A persistir a possibilidade de indenização nesses moldes, é adotar teoria “injusta, absurda e inadmissível no direito moderno[27]”.
Semelhante à teoria do risco integral, tem-se cogitado, em tempos atuais, a chamada teoria do risco social, segundo a qual o foco da responsabilidade civil é a vítima, e não o autor do dano, de modo que a reparação estaria a cargo de toda a coletividade, dando ensejo ao que se denomina socialização dos riscos[28] – sempre com o intuito de que o lesado não deixe de merecer a justa reparação pelo dano sofrido.
Sobre essa tendência, observa Saulo Bahia:
Do dano entendemos que dificilmente qualquer teoria da responsabilidade civil do Estado poderá um dia prescindir. Só se repara um dano. Não se repara o irreparável. Contudo, a necessidade de este dano ser causado por conduta ou risco relacionado diretamente à atividade desenvolvida pelo Estado passou a ser entendida como não absolutamente necessária para que sua responsabilidade se fizesse observar. Ou seja, haveria casos em que a responsabilidade civil do Poder Público deveria ocorrer por ação ou omissão não relacionados diretamente ao Estado [...]. Esta é, talvez, a última fase da responsabilização. Seu advento ainda é mais anunciativo e previsto do que acontecido. Mas, de qualquer modo, caminha até nosso mundo concreto a grandes passos[29].
Com a leitura sempre crítica do mundo fenomênico, José dos Santos Carvalho Filho repudia com veemência o desenvolvimento de referida teoria, sob o argumento de que o caráter genérico da responsabilidade poderia provocar grande insegurança jurídica e graves agressões ao erário, prejudicando em última análise os próprios contribuintes[30].
NOTAS DE REFERÊNCIA E NOTAS EXPLICATIVAS
[1] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 21ª ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 606.
[2] Confira-se, a respeito, a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello (Apontamentos sobre os agentes e órgãos públicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984, p. 61): “Como pessoa jurídica que é, o Estado, entidade real, porém abstrata (ser de razão), não tem vontade nem ação, no sentido de manifestação psicológica e vida anímica próprias”.
[3] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 21ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2009, p. 519.
[4] Quanto ao tema, cumpre observar a lição de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello (Princípios gerais de Direito Administrativo. 3ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 477), no seguinte excerto de sua obra: “não obstante a distinção das duas pessoas, o fenômeno jurídico da imputação à pessoa jurídica, do ato da pessoa natural, que integra o órgão, como parte do seu organismo moral, há de considerar-se como da própria pessoa jurídica. A pessoa natural, na verdade, age em nome e por conta da pessoa jurídica, na consecução de suas atividades, portanto, em causando dano à terceiro, mediante ato ilícito, a pessoa jurídica responde por ele”.
[5] CARVALHO FILHO, op. Cit., p. 521.
[6] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 13ª ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 106.
[7] Dentre outras causas de interdependência, podemos citar a regra disposta no art. 126 da Lei nº 8112/90, de seguinte redação: “A responsabilidade administrativa do servidor será afastada no caso de absolvição criminal que negue a existência do fato ou sua autoria”. Quer dizer, uma provada a ausência de autoria ou de materialidade do fato danoso no juízo penal, o juízo civil, acaso já provocado, deve obrigatoriamente arquivar o processo por ausência da própria possibilidade jurídica do pedido condenatório cível.
[8] A responsabilidade penal resulta da prática de crimes ou contravenções tipificadas em lei prévia ao ato ou conduta. Já a responsabilidade administrativa decorre de infração pelos agentes da Administração Pública – ou por particulares que com ela possuam vinculação jurídica específica, sujeitos, portanto, ao poder disciplinar -, das leis e regulamentos administrativos que regem seus atos e condutas.
[9] O fato do príncipe consiste em determinação estatal de ordem geral, que repercute reflexamente na execução do contrato, ao contrário do instituto do fato da administração, o qual incide especificamente sobre o contrato.
[10] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 950.
[11] DUEZ, Paul apud CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade Civil do Estado. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 20.
[12] “Nos Estados absolutistas, onde prevaleciam preceitos como ‘The king can do no wrong’, vigente nas monarquias inglesas, ou ‘L´Etat, c´est moi’, afirmado no regime monárquico francês, seria fácil concluir pela irresponsabilidade civil do Estado. Ora, se o Estado e o monarca são a mesma pessoa, e se o monarca não erra, como seria possível construir uma teoria que condene o Estado a ressarcir prejuízos sofridos pelos súditos?” (FURTADO, Lucas Rocha. Curso de direito administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 1002).
[13] “Na realidade, a expressão the King [...] não se refere tão somente ao rei, mas a todos os altos funcionários (servants of the crown), principalmente aos diretamente dependentes do soberano. Cumpre, porém, não tomar como absoluta essa máxima, porque o resultado que proporcionaria uma ação específica é geralmente alcançado pela petition of rights. É certo que a Coroa tem a faculdade de impedir essa iniciativa, mas quase nunca se prevalece dela” (AGUIAR DIAS, José de. Da responsabilidade civil. 10ªEd. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 556).
[14] CAHALI, op. cit., p. 21.
[15] Os Estados Unidos e a Inglaterra abandonaram a teoria da irresponsabilidade por meio do Federal Tort Claim Act, de 1946, e Crown Proceding Act, de 1947, respectivamente.
Quanto à responsabilidade estatal nesses países, Maria Sylvia Zanella Di Pietro (Direito Administrativo. 21ª Ed.. São Paulo: Atlas, 2008, p. 608) professora: “Nos Estados Unidos, em grande parte dos casos, o particular pode acionar diretamente o funcionário, admitindo-se, em algumas hipóteses, a responsabilidade direta do Estado, porém, desde que haja culpa, apurada da mesma maneira e tão amplamente como a de um particular em iguais circunstâncias. Trata-se de responsabilidade subjetiva. [...] Na Inglaterra, a partir do Crown Proceeding Act, a Coroa passou a responder por danos causados por seus funcionários ou agentes, desde que haja infração daqueles deveres que todo patrão tem em relação aos seus prepostos e também daqueles deveres que toda pessoa comum tem em relação à propriedade [...]”.
[16] DI PIETRO, op. cit., p. 179.
[17] “Essa forma de atenuação da antiga teoria da irresponsabilidade do Estado provocou grande inconformismo entre as vítimas de atos estatais, porque na prática nem sempre era fácil distinguir se o ato era de império ou de gestão. Ao mesmo tempo, a jurisprudência procurava distinguir, de um lado, as faltas do agente atreladas à função pública e, de outro, as faltas dissociadas de sua atividade. Logicamente, tais critérios tinham mesmo que proporcionar um sem-número de dúvidas e confusões” (CARVALHO FILHO, op. Cit., p. 523).
[18] O Código Civil em vigor, de 2002, alterou o art. 15 e dispôs no art. 43: “As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo”. Conforme veremos no capítulo II deste trabalho, referida redação encontra-se em consonância com o posicionamento adotado na Constituição Federal de 1988.
[19] Comentário de CAVALIERI FILHO (2010, p. 245) acerca do artigo: “Não obstante a redação ambígua desse dispositivo, o que ensejou alguma controvérsia inicial, a melhor doutrina acabou firmando entendimento no sentido de ter sido, nele, consagrada a teoria da culpa como fundamento da responsabilidade civil do Estado. Tanto é assim que fala em representante, ainda ligado à ideia de que o funcionário representaria o Estado, seria o seu preposto, tal como ocorre no Direito Privado. Ademais, as expressões ‘procedendo de modo contrário ao Direito ou faltando a dever prescrito por lei’ não teriam sentido se não se referissem à culpa do funcionário”.
[20] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 38ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 556.
[21] Acerca do tema, merece nota o escólio de José de Aguiar Dias (Da responsabilidade civil, vol. II, p. 566) no seguinte trecho: “Na culpa administrativa, portanto, decorrendo a responsabilidade da falta anônima do serviço público e não se cogitando de culpa do funcionário, é sem utilidade a distinção entre culpa pessoal e culpa profissional, asserção que é válida também para a doutrina do risco social. No sistema em que a responsabilidade só se configura em face da culpa de determinado agente do poder público, essa distinção é necessária, porque a falta pessoal, ainda quando praticada no exercício do cargo, só empenha a responsabilidade do agente, ao passo que a falta do serviço acarreta a responsabilidade do Estado, como inerente à função”.
[22] MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de apud CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 9ª ed. São Paulo: Atlas, 2010, p. 241.
[23] Interessante o posicionamento de Jacinto de Arruda Câmara (A culpa na responsabilidade extracontratual do Estado. In: Revista Gênesis, n. 12, p. 41, jan./mar. 1997), o qual anota que “a responsabilidade por ‘culpa do serviço’, ao contrário do que muitos autores defendem, não constitui modalidade diversa de responsabilidade do Estado – responsabilidade objetiva -, mas sim da mesma responsabilidade subjetiva, aperfeiçoada de modo a abranger, além das condutas culposas cuja titularidade possa ser individualizada na figura de um agente público, aquelas cuja culpa não se individualiza e que passa a ser imputável ao aparato administrativo como um todo”.
[24] CAVALIERI FILHO, op. Cit., p. 243.
[25] DI PIETRO, op. Cit., p. 610.
[26] Vide, em igual tom, nota de José dos Santos Carvalho Filho (op cit., p. 525): “Além do risco decorrente das atividades estatais em geral, constituiu também fundamento da responsabilidade objetiva do Estado o princípio da repartição dos encargos. O Estado, ao ser condenado a reparar os prejuízos do lesado, não seria o sujeito pagador direto; os valores indenizatórios seriam resultantes da contribuição feita por cada um dos demais integrantes da sociedade, a qual, em última análise, é a beneficiária dos poderes e das prerrogativas estatais”.
[27] CARVALHO FILHO, op. cit., p. 524.
[28] “Acredita-se que essa teoria está fora de um contexto real, social, efetivo. Não há maneira de se evoluir para tal teoria como uma possibilidade de concretização para o futuro. Seria uma espécie de ‘porto inseguro’, apenas para usar a metáfora habermasiana”. (BUHRING, Márcia Andrea. Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado. São Paulo: IOB Thomson, 2004, p. 112).
[29] BAHIA, Saulo José Casali. Responsabilidade civil do estado. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 91-92.
[30] CARVALHO FILHO, op. cit., p. 524.