A eliminação de candidatos na fase de investigação social em concursos públicos

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23/02/2015 às 14:08
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Como conciliar o princípio da moralidade administrativa com o da presunção de inocência na fase de investigação social em concursos públicos?

RESUMO

A sociedade brasileira está em diáspora para a ocupação de um cargo público. Milhares de brasileiros sujeitam-se diuturnamente a elevadas cargas de estudo em busca da segurança e da credibilidade que o serviço público proporciona. Constitui típica fase dessas provas a temida “investigação social”, na qual a Administração Pública averigua se o pretendente ao cargo possui idoneidade moral, considerada no âmbito criminal ou mesmo cível. É nesse campo pantanoso – em que se vacilam os conceitos de improbidade e de reputação ilibada – que iremos abordar os fundamentos adotados pelas bancas examinadoras para concluir pela aptidão ou inadequação Brasil afora, procurando sufragar ou desconstruir sob a ótica dos princípios da presunção de inocência, da moralidade administrativa e da razoabilidade.

Palavras-chave: Concurso público. Sindicância de vida pregressa e investigação social. Princípio da presunção de inocência. Princípio da moralidade. Princípio da razoabilidade.

1 INTRODUÇÃO

É legal e legítimo que um candidato a cargo público seja eliminado do certame por ter respondido ou estar respondendo a processo judicial criminal sem que haja sentença condenatória transitada em julgado? Pode o mesmo candidato ser extirpado do concurso por estar cadastrado em sistema de proteção ao crédito ou por ter cometido falta grave no emprego anterior? Inserido nessa seara, este trabalho tem por escopo investigar o resultado da colisão dos princípios da presunção da inocência, da moralidade e o da razoabilidade na intitulada fase concursal de “sindicância de vida pregressa e investigação social”.

A prevalência de um princípio em detrimento do outro, mediante exercício de ponderação de valores, pode, eventualmente, desaguar em uma injustiça, muitas vezes irreparável, declinada na eliminação de alguém do certame e a sua frustração em ocupar um cargo público – atualmente digno de cobiça – quando, na verdade, era investigado sem um lastro probatório mínimo; ou, ao revés, pode-se permitir o ingresso no serviço público de alguém desprovido das mínimas condições morais.

Nesse terreno sensível iremos plantar a semente do senso crítico e procurar investigar os motivos determinantes utilizados pelas bancas examinadoras ao optarem pela eliminação ou pela aptidão, bem como apurar os entendimentos oriundos dos Tribunais Superiores.

Ressalva-se que este trabalho terá apenas o intuito de instigar a necessidade de um estudo mais aprofundado acerca do tema, não tendo, contudo, a pretensão de esgotá-lo.

Por demonstrar ser o mais adequado tipo de pesquisa para auferir os resultados almejados, torna-se válido informar que a base bibliográfica será composta por doutrinas jurídicas, legislações comentadas, artigos científicos e outras produções pertinentes.

2 A RELEVÂNCIA DA INVESTIGAÇÃO SOCIAL NOS CONCURSOS PÚBLICOS

A investigação social em concursos públicos, concretizada normalmente na etapa de sindicância de vida pregressa, é instrumento utilizado pela Administração Pública para garantir a higidez de seu corpo de agentes, de modo a construir uma barreira ao ingresso no serviço público àqueles que se encontram de alguma forma maculados em sua estampa social.

Tem por finalidade averiguar sobre a vida pregressa e atual do candidato, quer seja social, moral, profissional, escolar, impedindo que o candidato com perfil incompatível seja contratado para servir ao público.

A Administração Pública, dessa forma, concede eficácia plena às normas diretivas previstas na Constituição Federal, apontadas para um serviço público constituído de colaboradores íntegros, probos, honestos, que servem ao Estado no seu intento de servir-se à população, jamais objetivando apenas interesse próprio.

Assim, a investigação social ganha tessitura normativa apta a proteger, em última instancia, o patrimônio público, seja ele econômico ou moral. Em razão desse nobre escopo, a investigação social em concurso público não se resume a analisar a vida pregressa do candidato quanto às infrações penais que porventura tenha praticado. Serve também para avaliar sua conduta moral e social no decorrer de sua vida, visando aferir seu comportamento frente aos deveres e proibições impostos à coletividade em geral.

Trata-se, portanto, de meio indispensável posto a serviço do bem público, a fim de extirpar das seleções públicas aqueles que possuem histórico desabonador ou suspeito no trato da coisa pública ou mesmo na esfera privada.

2.1 O princípio da moralidade administrativa como vetor axiológico do exercício da função pública

O texto constitucional, ao apontar os princípios que devem ser observados pelo administrador público no exercício de sua função, inseriu entre eles o princípio da moralidade. Essa expressa disposição normativa quis dizer que, no exercício da função pública, o administrador público deve atender aos ditames da conduta ética, honesta, exigindo a observância de padrões éticos, de boa-fé, de lealdade, de regras que assegurem a boa administração e a disciplina interna na Administração Pública. Quando se fala em moralidade administrativa, está a dizer que o administrador moral é aquele tido por confiável administrador, irretocável em sua conduta.

Pelo princípio da moralidade administrativa, é insuficiente ao administrador o mero cumprimento da estrita legalidade; ele deve obediência aos princípios éticos de razoabilidade e de justiça, haja vista que a moralidade constitui pressuposto de validade de todo ato administrativo praticado, quer dizer, é substrato de sua finalidade ou motivo.

Ainda que o princípio da moralidade tenha surgido apenas na Constituição Federal de 1988, entende-se que o fato de não ter sido explicitado nos textos constitucionais anteriores não representa que o administrador possuía um cheque em branco, sendo-lhe facultado, à época, proceder de forma imoral ou mesmo amoral. Isto porque o princípio da moralidade, como vetor axiológico, constitui antes princípio geral de direito, existindo por força própria, independentemente de figurar em texto legislativo.

E quando o agente público está no seu ofício, deve não apenas agir de acordo com a moral administrativa, mas também mostrar tal qualidade, tal como a mulher de César[1]. Do mesmo modo, em sua conduta privada, deve manter postura condigna de quem detém um cargo público.

O que se requer em face da moralidade administrativa são justiça e probidade, que não têm medida somente no espaço interno da administração. Com efeito, não se pode falar de um justo administrativo ou de um honesto administrativo diferente de um justo ou um honesto no corpo social.

Acerca da necessidade de o administrador público cumprir as expectativas da população, pontua Lino Osvaldo Serra Sousa Segundo (2014) que:

No tempo que corre, não só no Brasil, mas em todo o mundo, com o fortalecimento da estrutura do estado de cunho democrático e o fim dos regimes de força, as administrações públicas se vêem cobradas pelo povo ao qual serve. Do administrador exigem-se qualidades morais para o trato da res publica. A boa administração é, cada vez mais, além de administração eficiente, administração honesta.

Relevante notar que a aferição dessa honestidade deve ser feita ladeando-a com o momento da sociedade, isto é, quando se está a falar de moral, fala-se em um sentido moral histórico: o que é de acordo com a moral em um determinado momento poderá não sê-lo em outro.

O Direito surge como instrumento de coação de estruturação do corpo social, o qual, nem todo trabalho do cientificismo positivista[2] foi suficiente para assumir posição estanque e perfeitamente isolada da moral, porquanto determinado conteúdo ético sempre se fez presente seja na atividade legiferante seja na aplicação do ordenamento advindo dessa atividade criadora. O legalismo estrito cada vez mais é lançado ao limbo do arcaico.

A mera legalidade formal administrativa, como técnica de garantia da liberdade, consoante entendida no passado, é insuficiente, pois pressupõe a concepção de uma vida social autônoma à administração, o que, a toda evidência, é inexistente em um Estado que se imiscui em todos os âmbitos da sociedade. A administração, no seu agir, submete-se não só a regras formais, mas a princípios materiais de direito, os quais – antes de normas de direito – são normas de justiça, de conteúdo axiológico.

No contexto atual, é indisputável o fato de que as interferências entre o direito e a moral são de grande monta.

A noção ética de moralidade (no sentido axiológico, impregnada de valores) apregoa-se em todos os campos do agir humano e em suas formas de organização.

A moralidade, além de princípio ético geral do agir humano, ganha conotação jurídica quando transposta em noções, desafinadas e infinitas, para o ordenamento positivo, no que podemos dizer que o direito é atingido por ela de "fora" e no seu âmago.

Vários institutos de direito refletem noções essencialmente morais, como o abuso de direito, vedação ao enriquecimento ilícito, a boa fé e a honestidade.

Dentro da moralidade, verifica-se que qualquer noção de administração pública envolve a ideia de administração da res publica, cujo escopo é o empreendimento de fins também publicamente considerados[3].

O mero critério teleológico, entretanto, não é suficiente para dizer que o ato administrativo está ou não de acordo com a moral administrativa; o ato não pode ser somente teleologicamente moral, mas o deve ser ontologicamente.

É elucidativa a doutrina de Carmen Lúcia Antunes Rocha (1994, p. 190-191):

A razão ética que fundamenta o sistema jurídico não é uma "razão de Estado". Na perspectiva democrática, o direito de que se cuida é o direito legitimamente elaborado pelo próprio povo, diretamente ou por meio de seus representantes. A idéia da qual se extraem os valores a serem absorvidos pelo sistema jurídico na elaboração do princípio da moralidade administrativa é aquela afirmada pela própria sociedade segundo suas razões de crença e confiança em determinado ideal de Justiça, que ela busca realizar por meio do Estado. [...] o Estado não é a fonte de uma Moral segundo suas próprias razões, com se fosse um fim e a sociedade um meio. O Estado é a pessoa criada pelo homem para realizar os seus fins numa convivência política harmônica. Quando e onde o Estado arvora-se em fonte de uma moral e transforma-se em um fim, não há, ali, qualquer moral prevalecendo, pois o que em seu nome se pratica não pode ser assim considerado pela circunstância de que ali estará a aplicar regras antidemocráticas, de voluntarismo do eventual detentor do poder, sem preocupação com o ideário jurídico da sociedade.

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É necessário arvorar-se em um conceito democrático de moralidade administrativa, apenas acessível de fora para dentro da administração, pelo povo e seus valores. Isto é, buscar uma moral irrigada pelos valores reinantes no meio social.

Assim, a moralidade administrativa como norma principiológica não concretiza em si mesma, mas é fruto da conduta proba dos agentes públicos.

Enfim, a moralidade, sendo princípio constitucional, envolve juízo tanto de legalidade formal quanto de legitimidade formulado com base na tábua de valores socialmente vigentes (SOUSA SEGUNDO, 2014), ao que deve estar atento o agente administrativo no exercício de sua atividade, razão pela qual se investe de relevância um sistema rígido e eficaz de seleção de pessoas para ocuparem um cargo público. Não se pode tolerar um serviço público cujas peças humanas não se possam confiar.

2.2 A impositiva distinção entre carreiras civis e militares

No contexto da investigação social para ingresso no serviço público, é praxe estabelecer uma distinção entre carreiras civis e aquelas de ordem militar, ou as chamadas carreiras de estado (magistratura, ministério público etc.), nas quais se exigem maior retidão, lisura e probidade, dada a existência de situações limítrofes a serem vivenciadas por esses agentes.

A própria Constituição Federal de 1988, no seu art. 39, §3º, cuidou de estabelecer requisitos diferenciados para a investidura em determinados cargos públicos.

Nos cargos de natureza policial, por exemplo, são legais, em regra, as exigências de idade máxima, altura mínima, teste de aptidão física etc., em razão da própria natureza do cargo, condicionados esses requisitos à previsão em lei específica e no edital do concurso público.

Colham-se precedentes do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça acerca da legalidade dessas condições mínimas:

ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. CONCURSO PÚBLICO. MILITAR. SOLDADO. LIMITE DE IDADE. PREVISÃO NA LEI LOCAL E NO EDITAL. NATUREZA DO CARGO. LEGALIDADE. DATA PARA AFERIÇÃO DO LIMITE ETÁRIO. PRECEDENTES DO STJ. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. INOVAÇÃO DE TESE RECURSAL, EM SEDE DE REGIMENTAL. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTES. PROVA PRÉ-CONSTITUÍDA. INEXISTÊNCIA. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO.

[...]

III. A jurisprudência do STJ é firme no sentido da possibilidade de exigência de limite de idade para ingresso, na carreira militar, em face das peculiaridades da atividade exercida, desde que haja previsão em lei específica e no edital do concurso público. (grifo nosso)

Precedentes: STJ, RMS 44.127/AC, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, DJe de 03/02/2014; STJ, AgRg no RMS 41.515/BA, Rel.Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, DJe de 10/05/2013.

[...]

Precedentes: RMS 31923/AC, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJe 13/10/2011; AgRg no RMS 34.018/BA, Rel. Min. Humberto Martins, DJe 24/06/2011; RMS 32.733/SC, Rel. Min. Herman Benjamin, DJe 30/05/2011; RMS 31.933/AC, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJe 12/11/2010; e RMS 18759/SC, Maria Thereza de Assis Moura, DJe 01/07/2009" (STJ, AgRg nos EDcl no RMS 34.904/BA, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, DJe de 02/12/2011).

XI. Agravo Regimental improvido.

(STJ, AgRg no RMS 35.226/BA, Rel. Ministra ASSUSETE MAGALHÃES, SEGUNDA TURMA, julgado em 04/09/2014, DJe 11/09/2014)


CONCURSO PÚBLICO – PROVA DE ESFORÇO FÍSICO. Caso a caso, há de perquirir-se a sintonia da exigência, no que implica fator de tratamento diferenciado, com a função a ser exercida. Não se tem como constitucional a exigência de prova física desproporcional à cabível habilitação aos cargos de escrivão, papiloscopista, perito criminal e perito médico-legista de Polícia Civil. (grifo nosso)

(STF, RE 505654 AgR, Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, julgado em 29/10/2013, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-225 DIVULG 13-11-2013 PUBLIC 14-11-2013)

Para esses cargos destinados à segurança pública e para aqueles considerados carreira de estado, a exigência de um padrão irretocável de conduta assume maior relevo, chegando mesmo a afastar a presunção de inocência, a depender do caso concreto, porém é questão divergente na jurisprudência.

O STJ possui um precedente afirmando que, em caso de cargos públicos de “maior envergadura”, em que os ocupantes agem stricto sensu em nome do Estado, é possível a eliminação do candidato que responde a processo penal acusado de crimes graves, mesmo que ainda não tenha havido trânsito em julgado. Segundo o Ministro Ari Pargendler, o “acesso ao Cargo de Delegado de Polícia de alguém que responde ação penal pela prática dos crimes de formação de quadrilha e de corrupção ativa compromete uma das mais importantes instituições do Estado, e não pode ser tolerado.” (STJ, 1ª Turma. RMS 43.172/MT, Rel. Min. Ari Pargendler, julgado em 12/11/2013).

No mesmo sentido:

RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. CONCURSO PÚBLICO. POLÍCIA MILITAR. INVESTIGAÇÃO SOCIAL. EXCLUSÃO DO CERTAME. POSSIBILIDADE.

1. Entende a jurisprudência desta Corte que a investigação social não se resume a analisar a vida pregressa do candidato quanto às infrações penais que eventualmente tenha praticado. Deve ser analisada a conduta moral e social no decorrer de sua vida, visando aferir o padrão de comportamento diante das normas exigidas ao candidato da carreira policial, em razão das peculiaridades do cargo que exigem a retidão, lisura e probidade do agente público.

2. Não há qualquer resquício de discricionariedade administrativa na motivação do desligamento do candidato que não ostenta conduta moral e social compatível com o decoro exigido para cargo de policial.

Trata-se de ato vinculado, como conseqüência da aplicação da lei, do respeito à ordem jurídica e do interesse público. Ausente, portanto, a comprovação de desvio de finalidade em eventual perseguição política por parte do Governador do Estado. (grifos nossos)

3. Recurso ordinário a que se nega provimento.

(STJ, RMS 24.287/RO, Rel. Ministra ALDERITA RAMOS DE OLIVEIRA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/PE), SEXTA TURMA, julgado em 04/12/2012, DJe 19/12/2012).

O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, a contrario sensu, abona a presunção de inocência em qualquer caso, de modo a afastar a eliminação quando efetuada nos moldes acima declinados:

EMENTA Agravo regimental no agravo de instrumento. Concurso público. Delegado da Polícia Civil. inquérito policial. Investigação social. Exclusão do certame. Princípio da presunção de inocência. Violação. Impossibilidade. Precedentes. 1. A jurisprudência da Corte firmou o entendimento de que viola o princípio da presunção de inocência a exclusão de certame público de candidato que responda a inquérito policial ou ação penal sem trânsito em julgado da sentença condenatória. 2. Agravo regimental não provido. (grifos nossos)

(STF, AI 829186 AgR, Relator(a):  Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, julgado em 23/04/2013, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-123 DIVULG 26-06-2013 PUBLIC 27-06-2013).

Pedimos vênia ao entendimento da Suprema Corte para divergir. Pensamos que outra solução deve ser dada quando se cuida daqueles cargos públicos cujos ocupantes agem com forte parcela de poder advinda do Estado. Com efeito, como dispensar o candidato ao cargo de Juiz de Direito, por exemplo, de ter uma conduta irretocável, quando a ele incumbe o julgamento de comportamentos desviantes da norma penal? Como pôr em harmonia, de um lado, o afastamento do cargo por incompatibilidade da conduta de eventual ocupante, determinação essa efetuada pelo juiz, e, de outro, autorizar o acesso à magistratura por quem está sujeito a uma ação penal? Parece provocar suspeição no agir.

Assim, pensamos que ninguém, em pleno poder de suas faculdades mentais, pode afirmar que cargos desse jaez (juiz de direito, delegado de polícia, promotor de justiça etc.) pode ser exercido por quem está sendo processado criminalmente por crimes de elevada gravidade (e somente nesses casos, a depender de fundamentada decisão da banca examinadora). Permitir a investidura de alguém nessas condições é autorizar que as instituições do Estado sejam tomadas de assalto por quem não está comprometido em preservá-las, ainda que à custa de eventual violação ao princípio da inocência (art. 5º, LVII, da CF). Esclareça-se, todavia, que a eliminação deve ser apenas em casos realmente significativos de violação a uma conduta ilibada e, para conferir guarida legal, deve vir acompanhada de relatório circunstanciado firmado pelos membros da banca examinadora.

3 A REPROVAÇÃO SOB O CRIVO DO JUDICIÁRIO

É importante destacar, como dito alhures, que o acesso aos cargos públicos pressupõe o preenchimento de requisitos estabelecidos em lei – dentre eles, requisitos de natureza subjetiva –, como os que este trabalho procurou retratar ao abordar a necessidade de conduta moral para lograr êxito na fase de investigação social, destinada à análise da capacitação moral do indivíduo por intermédio da captação de informações acerca de sua sociabilidade, atividade profissional, conduta familiar e social, assim como sobre questões e dados pessoais por este prestados.

Sobre tais requisitos de ordem subjetiva, não compete, em regra, ao Poder Judiciário apreciar critérios na formulação e na conclusão das comissões dos concursos, tendo em vista que, em respeito ao princípio da separação de poderes consagrado na Constituição Federal, é da banca examinadora desses certames a responsabilidade. Excepcionalmente, contudo, havendo flagrante ilegalidade que dê azo a arbitrariedades por parte dos agentes integrantes da comissão, bem como que implique ausência de observância às regras previstas no edital, admite-se sua análise pelo Judiciário por ofensa ao princípio da legalidade e da vinculação ao edital.

Imperioso salientar que o princípio constitucional da harmonia e independência dos poderes não constitui óbice à reapreciação, pelo Poder Judiciário, de comportamentos concretizados pela Administração; ao contrário, justifica tal intromissão, na medida em que reclama controle concreto e efetivo entre os poderes, para evitar distorções e desmandos.

Assim leciona José Afonso da Silva (2004, p. 98):

Há interferências que visam ao estabelecimento de um sistema de freios e contrapesos, à busca de equilíbrio necessário à realização do bem da coletividade e indispensável para evitar o arbítrio e o desmando de um em detrimento do outro e especialmente dos governados.

É claro que este controle não se revela absoluto, já que é vedado ao Poder Judiciário apreciar o conteúdo presente nos atos administrativos, ou seja, o mérito do ato, devendo cingir sua análise aos seus aspectos formais.

Mas, de qualquer maneira, nada impede que a estrutura que integra o Judiciário seja provocada para examinar se o substrato que foi responsável pela exteriorização de determinado comportamento proveniente do Poder Executivo atende às prescrições consagradas pelo Texto Constitucional, pela legislação complementar ou ordinária, ou pelo próprio regimento.

Nesses moldes, abordaremos nos subitens a seguir hipóteses concretas de eliminação e como os tribunais superiores julgaram a matéria.

3.1 O que configura maus antecedentes?

Como é cediço, investigação da vida pregressa de candidatos que concorrem a cargos públicos tem por escopo saber se o candidato apresenta bons antecedentes ou boa conduta social, indicativos de que obedece, em sua vida privada, a uma moralidade similar à que dele será exigida no exercício do cargo público.

Antes de adentrar o casuísmo jurisprudencial, mister é investigar, segundo abalizada segundo, o verdadeiro sentido da expressão “maus antecedentes”.

Segundo Inácio de Carvalho Neto (1999, p. 27), “define-se os antecedentes como tudo o que se refere à vida pregressa do réu”. Todo o retrospecto do acusado ou, no caso em análise, do candidato, fica registrado para fornecer ao julgador/membro examinador subsídios que possam auxiliá-lo quando da análise de sua personalidade.

Importante frisar que o examinador não é um psicólogo ou sociólogo, que dispõe de técnicas capazes de aferir com certa precisão, inerente ao ofício, se de fato a pessoa investigada possui ou não “personalidade voltada para o crime”.

São, portanto, considerados, para efeitos de antecedentes, quaisquer fatos relevantes anteriores ao crime. Assim, podemos arrolar com a doutrina: “processos paralisados por superveniente extinção da punibilidade, inquéritos arquivados, condenações não transitadas em julgado, processos em curso, absolvições por falta de provas.” (CARVALHO NETO, 1999, p. 28).

Os antecedentes penais são, conforme ensina o doutrinador criminalista José Frederico Marques (1999, p. 100):

As condenações que sofreu, as persecuções criminais contra ele intentadas e que se frustraram por ocorrência de alguma causa de extinção da punibilidade, ou os processos criminais ainda não findos. Questões que tenham tido na justiça civil, em que se retrate a fraqueza de seu caráter, traduzem, muitas vezes, manifestações de uma personalidade mal ajustada ao convívio social.

No mesmo sentido, Damásio de Jesus (1997, p. 546) sufraga o entendimento ao afirmar que:

Antecedentes são os fatos da vida pregressa do agente, sejam bons ou maus, como condenações penais anteriores, absolvições penais anteriores, inquéritos arquivados, inquéritos ou ações penais trancadas por causas extintivas da punibilidade, ações penais em andamento, passagens pelo Juizado de Menores, suspensão ou perda do pátrio poder, tutela ou curatela, falência, condenação em separação judicial etc.

A despeito de se considerar com maior afinco os antecedentes como intrinsecamente ligados a condutas criminosas, forçoso reconhecer que é de praxe as bancas examinadoras valerem-se de outros elementos na avaliação. É pacífico que, em sede de concurso público, não se restringe à análise da vida pregressa do candidato quanto às infrações penais que porventura tenha praticado. Tem a utilidade, em adição, de perquirir sua conduta moral e social no decorrer de sua vida, visando aferir seu comportamento frente aos deveres e proibições do cargo público almejado.

 De posse desses elementos informativos, passemos à análise de casos típicos e comumente judicializados.

3.1.1 Candidato beneficiado com transação penal ou com a suspensão condicional do processo (arts. 76 e 89, respectivamente, da Lei 9.099/95)

A transação penal é instituto despenalizador criado pela Lei 9.099/95, a lei dos juizados especiais. Trata-se de benefício concedido ao autor do fato, o qual se submete de pronto a alguma pena restritiva de direitos ou multa oferecida pelo Ministério Público, em troca de ver o processo encerrado prematuramente, sem ao menos o oferecimento de denúncia. Em outros termos, o instituto da transação penal importa concessões recíprocas entre o Ministério Público e o suposto autor do fato (mediadas pelo Juiz) para extinguir o conflito instaurado pela notícia da prática de crime, declinando o titular da ação criminal da prerrogativa de oferecer a denúncia, mediante aceitação, pelo suspeito, do cumprimento de uma medida restritiva de direito ou multa, consensualmente ajustadas.

Ela obsta a condenação e é um direito subjetivo do réu, nos casos permitidos, não produzindo efeitos, se cumprida, de deletar a presunção de inocência, que sempre existe enquanto não houver condenação.

Uma vez cumprida a transação penal, é extinta a punibilidade do autor do fato, mediante aplicação analógica do art. 89, §4º, da Lei 9.099/95.

Assim, certo é que a extinção da punibilidade do delito supostamente cometido pelo candidato deve eliminar a sua possibilidade de ser excluído do certame, porquanto a Administração Pública deve respeito ao postulado constitucional da presunção de inocência (art. 5º, LVII, da CF), porquanto é nítido que o poder persecutório do Estado encontra-se esvaziado. Como é elementar, a aceitação da transação penal não representa condenação do autor do fato.

Do mesmo modo ocorre se o crime imputado ao candidato prescreveu e houve extinção da punibilidade por tal motivo. Aqui, novamente a repressão penal do Estado se perdeu e essa inércia não pode ser imputada ao candidato.

É nesse diapasão que os tribunais superiores têm decidido:

Ementa: PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. DEFICIÊNCIA NA FUNDAMENTAÇÃO DA PRELIMINAR DE REPERCUSSÃO GERAL. CONTROLE JUDICIAL DO ATO ADMINISTRATIVO TIDO POR ILEGAL OU ABUSIVO. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. JURISPRUDÊNCIA DO STF. OFENSA INDIRETA AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. SÚMULA 636/STF. EXCLUSÃO DE CONCURSO PÚBLICO DE CANDIDATO BENEFICIADO PELA TRANSAÇÃO PENAL . OFENSA AO PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA. PRECEDENTES. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO. (grifo nosso).

(STF, ARE 763338 AgR, Relator(a):  Min. TEORI ZAVASCKI, Segunda Turma, julgado em 03/06/2014, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-118 DIVULG 18-06-2014 PUBLIC 20-06-2014)

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Sobre o autor
André Bernardes Dias

Especialista em Direito Público pela PUC-MG. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela UNESA. Graduado em Direito pela Universidade de Brasília - UnB. Assessor no TJDFT.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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