5.Dos agentes capazes de praticar atos contra legem sujeitos ao controle judicial.
  É evidente que aqui não se pretende dar a amplitude que o sub-título induz, se desconsiderado seu estrito contexto. Os atos referidos que são contrários à lei em sentido amplo são aqueles capazes de originar um dano na esfera jurídica de alguém, através da negativa, da afronta ou da violação de direitos fundamentais tendo em vista a relação entre uma parte extremamente forte e grande, e outra relativamente pequena e insuficiente capacitada.
  Não é atoa que CARNELUTTI define a administração pública como uma grande parte, tão grande que tornava a outra extremamente pequena, permanecendo no entanto com a característica de parte, possuindo os mesmos direitos processuais da outra. Seria necessário então a criação de mecanismos que possibilitassem o equilíbrio das relações de forma a propiciar a estabilidade na relação subjetiva.
  É claro que qualquer pessoa pode praticar atos contrários à lei, entretanto, se esta "pessoa" dispõe de meios muito mais robustos para a prática de quaisquer atos, dispõe de condições organizacionais, financeiras, de alcance, exerce enfim, um certo poder, tanto de ordem legal como de ordem fática, que passa a ser merecedora de atenção do Estado de modo que sua atuação seja sempre sujeita a um tipo de controle.
  Evidente que se está falando do controle realizado pelo Poder Judiciário através dos diversos instrumentos garantidores dos direitos dos cidadãos. Mas - e ai vem a questão nodal do presente trabalho -, nos dias atuais, somente o Estado, com sua administração pública direta ou indireta, é quem detém esta característica de preponderância de poder que levou gerações de teóricos e doutrinadores a buscarem um instrumento capaz de por a salvo o indivíduo contra atos praticados sem a observância da legalidade ou da Constituição?
  Será que somente o Estado, quer por si próprio, quer por agentes que estejam executando funções de imperium podem praticar atos com notável preponderância de condições sobre o cidadão comum?
  É o Estado o único sujeito capaz de figurar passivamente nas ações constitucionais instrumentais que visem a resguardar, proteger, tutelar, enfim, os direitos fundamentais?
  Sobressaem-se inúmeros questionamentos sobre a atualidade dos instrumentos garantidores de direitos no tocante ao seu uso para fins de proteção em face de entes que não se confundem com o Estado, se tomada sua natureza, sua composição ou finalidade formal, mas têm com este grande similitude ao deterem condições tão avantajadas, tamanha robustez de recursos e meios à disposição, que o cidadão comum, o indivíduo detentor de direitos fundamentais, não possui instrumentos capazes de, com a mesma rapidez e eficiência, dar-lhe proteção imediata contra atos capazes de sufragar-lhe tais direitos.
  Ou seja, entes particulares ocupando funções de caráter público, ou entes particulares que, mesmo exercendo funções caracteristicamente privadas, possuam uma condição legal ou fática tal que os efeitos de seus atos possam acarretar danos nos direitos individuais fundamentais tão relevantes e tão imediatos que a busca por uma resposta ou um restabelecimento deste direito não possa sofrer os percalços de um processo ordinário comum, como os disponíveis atualmente para aforamento em face de entes privados.
  Com efeito, na sociedade moderna a relação com inúmeros entes privados espantosamente gigantes em sua composição, em seus recursos e em sua capacidade de influência direta na vida social dos cidadãos, e por conseguinte atingindo o campo delimitado de seus direitos fundamentais, faz aflorar a necessidade da criação ou um aperfeiçoamento de um sistema de garantias que contemple a proteção para relações jurídicas entre estes sujeitos.
  Necessário abrir-se um pequeno parênteses para que se tenha bem situado o efetivo estágio da evolução conceitual dos direitos fundamentais. Acompanhando o ideal da revolução francesa de liberdade, igualdade e fraternidade, os direitos fundamentais estão em sua terceira geração, protegendo agora os direitos difusos, sejam estes o direito a um meio ambiente saudável e ao crescimento econômico, dentre outros. BRESSER PEREIRA os denomina de "Direitos Republicanos", inserindo também o direito que os cidadãos teriam de cobrar do Estado a correta utilização dos recursos financeiros governamentais. O mesmo autor traz a definição de uma nova cidadania, abarcando os direitos republicanos em sua plenitude.
  Muito bem, neste contexto, onde os chamados direitos republicanos, difusos ou ainda de "terceira geração" são protegidos, onde o Estado abandonou atividades que lhe eram pertinentes até muito pouco tempo; onde os recursos financeiros de certos serviços de interesse público não são mais destinados exclusivamente ao Estado, mas a particulares, detentores de uma força administrativa extremamente desproporcional em relação aos cidadãos comuns. Instala-se então a polêmica da existência, da abrangência e da eficácia dos instrumentos disponíveis para a proteção dos direitos fundamentais em relação a estes entes, que não o Estado, nem partes dele.
6.Mandado de segurança contra atos corporativos.
  Se CARL SCHMITT revisitasse HOBBES nos dias atuais, que em muito diferem dos de sua época principalmente nas relação econômicas e portanto nas relação de preponderância de parte a parte, talvez teríamos a presença não de um único LEVIATÃ, mas de um grupo que, unido, teria as mesmas características.
  É inevitável a dependência dos Estados a entes que são, até certo ponto, intangíveis ou não identificáveis, por exemplo: o mercado de capitais. O Brasil, nos dias atuais, é extremamente dependente das ocilações que o "mercado" impõe, com suas regras estapafúrdias (ou não, em raras vezes), mas sempre atendendo a um interesse próprio, restrito, embora difundido entre os seus membros. Poderia o chamado "mercado" ser o novo Leviatã.
  O Estado não detém a necessária distância que possa abstê-lo de relacionar-se de forma perniciosa com este tipo de "entidade", o que traz à sociedade uma total submissão aos atos de certas "corporações", quer sejam identificáveis como algumas empresas ou grupo de empresas com interesses extra nacionais, quer de certas "pessoas" ou reunião destas, impossíveis de serem apontadas individualmente como causadoras de perturbações no estado de direito das pessoas. Infelizmente ainda não se dispõe de suficiente evolução teórico-jurídica que possa viabilizar a criação de um sistema protetivo em relação a estes entes não identificáveis, como o "mercado", portanto somente podemos nos delimitar a um estudo contra aqueles que possam efetivamente ter a qualidade de sujeitos numa relação jurídica, in casu, as grandes corporações econômicas.
  É contra estas pessoas, corporação gigantescas com poderes às vezes mais amplos e mais irrestritos que certos Estados, e contra estes entes digamos atécnicamente "despersonificados" que o cidadão vê-se inteiramente desprovido de meios para fazer valer seus direitos fundamentais.
  Se um grande conglomerado de empresas resolve por fim a um determinado serviço ou majorá-lo de forma que lhe atenda aos interesses de seus acionistas, ou ainda pior, se o mesmo ente afrontar diretamente direitos fundamentais do cidadão desrespeitando por completo sua dignidade humana, este teria que padecer esperando a providência estatal, pois não dispõe de meios eficazes e ágeis, que de plano poderiam restabelecer seus direitos sufragados.
  Em se tratando de direito comparado, importa destacar que há países que admitem a impetração de recursos judiciais (semelhantes ao nosso mandado de segurança), contra atos de particulares, exatamente quando estes revestirem-se das qualidades já mencionadas alhures – parte extremamente grande em relação a um indivíduo ou um conjunto de indivíduos. Temos como exemplo o adotado na Costa Rica, onde é possível a impetração do amparo constitucional para a salvaguarda de direitos fundamentais, em face de entes particulares que detenham uma condição extremamente mais benéfica e que, por essa condição, reduzam a margem de atuação do indivíduo, dificultando-lhe a preservação e garantia dos direito fundamentais.
  A existência efetiva de um poder legal ou de fato que se sobrepõe ao indivíduo faz com que as mesmas razões que fizeram surgir o instrumento de amparo constitucional, e isso pode ser verificado na próxima história do instituto, apontem para a necessidade de uma reformulação dos dispositivos garantidores, de modo a dar-lhes alcançar a proteção dos direitos quando violados por entes particulares, no exercício de funções próprias do Estado, ou ainda em funções privadas onde o poder de fato seja evidente.
  Na Costa Rica, além de estar previsto o amparo contra particulares "é permitido quando – ainda realizando a função privada – o sujeito de direito privado se encontrar numa posição jurídica ou fática de poder em face do amparado, que faça com que os mecanismos processuais comuns sejam lentos ou ineficazes para tutelar o seu direito adequadamente." [5]
  Numa concepção atual de direitos fundamentais, um instrumento como o mandado de segurança com possibilidade de impetração em face de conglomerados econômicos seria um instrumento extremamente ágil, seria como vislumbrar-se a existência do mandado de segurança como hoje conhecemos numa época de imperialismo absolutista. Seria uma inovação tremenda.
  Há inúmeros casos cuja finalidade ampliada do remédio heróico traria uma enorme vantagem e uma garantia muito ampla aos cidadãos, uma das hipóteses seria na violação à honra perpetrada por um órgão de comunicação. O cidadão vitimado poderia impetrar mandado de segurança postulando a imediata publicação de errata, sanando-se a situação gravosa na mesma medida, com a mesma intensidade e com grande agilidade.
  A possibilidade de impetração contra grandes corporações também não elimina a possibilidade de aviamento em face dos particulares detentores de antigas funções atribuídas unicamente ao Estado. Aqui se refere aos setores privatizados.
  Se hoje é muito clara a lembrança de todos os setores recentemente privatizados, há de se cogitar que, sendo a jurisprudência uma das fontes do direito, e esta é mutável, ou seja, se no futuro, por força do entendimento jurisprudencial, passar-se a entender que o exercício de funções públicas não contempla por exemplo as telecomunicações, então se deixaria de viabilizar a impetração de mandado de segurança contra empresas deste ramo. Basta a evolução do conceito das atribuições estatais para se deixar de admitir a viabilidade do mandado de segurança contra inúmeros atos, já que a norma dispõe a possibilidade de impetração contra atos de "autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público." (artigo 5º, inciso LXIX, da CF/88).
  É preciso que os juristas tenham a preocupação de regular, pela formação de opinião da sociedade, as situação futuras, já que é as alterações na economia e nas relações do Estado com a sociedade vêm modificando-se a nível internacional, de forma assustadoramente rápida. Seria inimaginável na década de 70 que se privatizasse setores considerados vitais como as telecomunicações ou de distribuição de energia elétrica, pois eram vistos como intrínsecos à própria função estatal, indelegáveis.
  Atualmente, não se admite pensar em privatizar o setor da saúde, por exemplo, mas não estar-se-ia cometendo o mesmo equívoco de nossos antepassados ao duvidar-se de uma evolução social que admita a possibilidade de um serviço de saúde privatizado?
  Claro que com o passar dos anos as funções tidas como essenciais, ou próprias do Estado vão alterando-se e, não é impossível que dentro de alguns anos, ninguém mais admita ser uma função do Estado, por exemplo, prospectar petróleo, ou atuar na distribuição de energia elétrica, ou ainda, na educação.
  O que importa é que, no estagio atual do desenvolvimento, o sistema de proteção dos direitos fundamentais do indivíduo não acompanhou a evolução das relações do Estado com a sociedade.
7.Aspectos jurídicos do procedimento e sua utilização
  Embora nossa Constituição tenha apresentado inovações na impetração do mandamus, a lei de regência dos procedimentos data de 1951 (Lei nº1.533), portanto, inadequada aos anseios deste século XXI. A atual Carta Magna ampliou a possibilidade de impetração estendendo-a não somente a autoridades como dispunha a retro citada lei federal, mas a quaisquer agentes de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público (artigo 5º, inciso LXIX, CF).
  Não se pode negar que houve uma ligeira evolução, admite-se. Todavia esta ampliação da sujeição passiva da impetração não é suficiente para impedir as inúmeras violações cometidas por agentes que, embora não executem uma função precipuamente de interesse público, ferem, da mesma forma que feriria uma autoridade administrativa, os direitos fundamentais daqueles com que se relacionam.
  Não é necessário que se retome a enumeração das empresas e entes privados ou privatizados capazes de atingir de forma fulcral os direitos protegidos constitucionalmente pelo Estado. São inúmeras as corporações econômicas, as gigantes empresas privatizadas, enfim, de forma geral, empresas de domínio particular e interesses não compatibilizados com aqueles que seriam do Estado, mas que detém um poder extremo em relação aos cidadãos. São estas as pessoas que também deveriam estar sujeitas à impetração do mandamus.
  Em outras palavras, o mandado de segurança deveria ter aplicação para tutelar direitos fundamentais violados por organizações que detenham demasiada preponderância de meios em face do cidadão comum.
  Pode-se dizer que o sistema processual pátrio já dispõe de meios eficazes e rápidos, capazes de superar a inexistência de um remédio como o proposto neste trabalho, neste sentido o disposto no artigo 273 do Código de Processo Civil, através da antecipação dos efeitos da tutela.
  É forçoso admitir, como admite toda a majoritária doutrina, que o próprio fundamento contido no artigo 7º, inciso II da Lei nº1.533/51 traz os mesmos pressupostos para o deferimento da antecipação de tutela no procedimento ordinário. Mas, o procedimento a qual se submete o impetrante de um mandado de segurança e o que submete-se o autor de uma ação ordinária com pedido de antecipação de tutela é muito diverso.
  O mandado de segurança é meio cuja utilização é restrita e, neste sentido, cumpre destacar que neste enfoque de estudo, somente se pode pensar o mandado de segurança contra ato corporativo que viole (controle repressivo) direitos fundamentais (somente estes), não se dando a amplitude de possibilidades de defesa dos direitos infra constitucionais. Neste compasso, a impetração destina-se a coibir a manutenção ou perpetuação de atos violadores de direitos fundamentais.
  A propósito, no Novo Código Civil em seu Capítulo II, que trata dos "Direitos da Personalidade", especificamente em seu artigo 12 onde está disposto que "pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei." O dispositivo civil não distingue contra quem pode-se exigir a cessação da ameaça ou da lesão a direito da personalidade, mas explicita claramente que a cessação do ato lesivo a um direito fundamental do indivíduo, merece um tratamento ímpar, em razão de sua extrema relevância no ordenamento jurídico como um todo. O impedimento de consumação ou de continuação de lesões a direitos fundamentais ganha força no aspecto subjetivo, entretanto, não há a devida correspondência no âmbito do direito adjetivo. Não há instrumentos capazes de dar a garantia aos direitos fundamentais da pessoa se o violador de tais direitos for um particular – ao menos não na intensidade que o legislador civil pretendeu. Pergunta-se: quão eficaz seria a existência de um instrumento como o mandado de segurança contra ato de particular? Haveria uma grande efetivação assecuratória do direito insculpido no artigo 12 do Novo Código Civil.
  O remédio heróico é instrumento célere, sem dilação probatória, onde o direito se proclama de forma muito rápida. A rotina diária dos tribunais vem mostrando que os juizes decidem rapidamente as questões aviadas em mandados de segurança, tornando efetiva a busca pela tutela jurisdicional. Ao contrário, as demandas onde há uma grande dilação probatória têm seu julgamento definitivo sufocado pela enorme gama de atos a serem praticados.
  A inexistência de dilação probatória e a necessidade de prova robusta ab initio do direito invocado (direito líquido e certo) como pressuposto da formação da relação processual atinente ao mandado de segurança são requisitos que fundamentalmente divergem daqueles que seriam capazes de em tese, viabilizarem o deferimento de medida liminar antecipando os efeitos da tutela jurisdicional. A impetração como aqui proposta teria o condão de ampliar os sujeitos passivos do mandamus e não alterar sua formação procedimental.
  A finalidade do instrumento garantidor de direitos fundamentais estaria restrita a esses casos exclusivamente, obrigando o impetrante a buscar a via ordinária se não conseguisse provar seu direito líquido e certo, como se faz hodiernamente.
  O processo do mandado de segurança é muito eficiente, de modo que impossibilitar seu uso para proteção de direitos fundamentais contra atos de corporações detentoras de condições privilegiadas em face dos indivíduos seria como impedir a plena realização destes direitos.