Artigo Destaque dos editores

Interrupção voluntária da gestação:

abortamento voluntário

Exibindo página 1 de 2
01/02/2003 às 00:00
Leia nesta página:

                Desde há muito, e porque não dizer desde o início da vida em sociedade, a raça humana convive com a prática da Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG). Nas diferentes sociedades e nos diferentes períodos da história esse comportamento esteve sempre calcado sobre três grandes pilares: a moral, a religião e a lei.

            Por se tratar de assunto extremamente delicado ao envolver os três aspectos citados, os quais têm uma variabilidade grande dentro do planeta em que vivemos, encontramos, conseqüentemente, diferentes posições quanto à aceitabilidade ou não da IVG nos ordenamentos jurídicos dos Estados que constituem o globo terrestre.

            Entendendo-se o abortamento como comportamento social de ocorrência diuturna e universal procedeu-se a uma pesquisa literária objetivando verificar como se comportam os ordenamentos jurídicos em quatorze Estados do leste europeu, Estados Unidos da América do Norte e nove Estados do Caribe, América Central e do Sul bem como o Brasil no que se refere ao abortamento e, em especial, à IVG.

            No mundo existe, atualmente, um grande número de Estados que recepcionam no seu ordenamento jurídico a IVG. Verificou-se ainda a existência de um grande número de países onde, mesmo sendo condenado pela religião e não recepcionado pelo ordenamento jurídico este procedimento é realizado de forma clandestina elevando os riscos já existentes daquelas mulheres que a ele se submetem através de pessoas despreparadas técnica e estruturalmente.

            Surge, daí, que a permissividade em relação à IVG está relacionada ao amparo dado à mesma pela legislação vigente assim, países permissivos respaldam-na através de normas específicas. Alguns países onde a permissividade está presente condicionam a IVG a determinadas situações ou prazos. estes são denominados condicionantes.

            Neste aspecto constatou-se como evoluíram os ordenamentos jurídicos nos Estados permissivos nas últimas décadas, que evolução ocorreu no Estado que mais influência exerce sobre os outros no globo terrestre, principalmente após o movimento social ocorrido na década de setenta quando do surgimento e proliferação dos grupos "hippies" com sua filosofia naturalista e pacifista de "paz e amor". Deu-se enfoque também, pela importância decorrente das raízes em relação ao idioma e à colonização, a alguns Estados da América do Sul, signatários ou não do Tratado do Mercosul, mas que têm a religiosidade firmada basicamente no cristianismo, em especial o catolicismo.

            A escolha deste tema teve por motivo o fato de ser considerado polêmico socialmente em decorrência do tripé básico que o mantém e, principalmente, por se entender que a evolução do comportamento da mulher na sociedade não é mais o mesmo de décadas e séculos passados, exigindo do legislador modificações relacionadas à propositura de novas leis bem como readequação das vigentes.

            Este comportamento social feminino exige da igreja um entender que a evolução é inexorável e que a sua função é fornecer importantes elementos balizadores do proceder humano em sociedade sem, contudo, querer aplica-los tendo como base única o indivíduo no seu âmbito religioso esquecendo-se do ser social que o homem é.

            Diante de tais pensamentos dar-se-á uma noção tecnicamente médica sobre o que é o abortamento, quais as suas principais classificações dentro da medicina, bem como discorrer-se-á sobre as implicações médico-legais do abortamento e as repercussões na saúde presente e futura da mulher que se submete a esse procedimento, vez que versa esta monografia sobre a Interrupção Voluntária da Gravidez ou seja; aquele abortamento realizado por médico ou não, com a vontade manifesta da paciente, em qualquer fase da gestação uma vez que o direito, ao contrário da medicina, não discrimina a expulsão não espontânea do concepto desde que o resultado morte esteja presente.

            Verificar-se-ão no desenvolver deste dados estatísticos relacionados ao abortamento em vários Estados, mesmo aqueles não relacionados especificamente ao tema uma vez que estes, isoladamente, não têm sido publicados na literatura médica e/ou doutrina legal.

            Faz-se uma análise da evolução do ordenamento jurídico pátrio no quarto capítulo bem como se mostram os vários projetos apresentados na última década objetivando uma maior amplitude no alcance social das normas vigentes sobre o tema.

            No último capítulo faz-se uma incursão na jurisprudência pátria verificando-se as incidências da IVG bem como o embasamento jurídico para a ISG em casos específicos.


Capitulo I A Vida Humana

            La vida humana es un derecho de aquel al cual pertenece. Se trata de un derecho subjetivo suyo y la vida intrauterina es un bien jurídico. Si esa vida pertenece al ser que vive en el seno materno ha de pensarse sin duda que ese mismo ser titulariza el derecho a gozar de ese bien que es suyo, que se llama vida. Es así que lo jurídico no debe desentenderse de ninguna realidad viviente-humana, porque es el producto del hombre para el hombre. Nacer no es comenzar a vivir, sino salir al mundo exterior después de que se haya adquirido el desarrollo necesario. La criatura es anterior al nacimiento.

            (Jurisprudência argentina)

            No direito pátrio, assim como nos ordenamentos jurídicos analisados, o direito à vida é o ponto básico de partida para a aquisição dos demais direitos pelo indivíduo humano.

            A Constituição Federal brasileira, promulgada em 05 de outubro de 1988 no seu artigo 5.º, caput, determina:

            Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos seguintes termos: (...) [grifa-se].

            No seu inciso XLI impõe: a lei punirá qualquer discriminação atentatória aos direitos e liberdades fundamentais.

            Trata, assim, o assunto em pauta, de um direito fundamental e inalienável do indivíduo do qual derivam todos os demais direitos adquiridos, necessários e imprescindíveis para uma perfeita vida em sociedade. O direito, através da normatização das regras de convivência, proporciona um relacionamento harmônico entre o indivíduo e a sociedade bem como a punição daqueles que, por seu comportamento anti-social, lesam o bem maior. Desta maneira o direito culmina o seu objetivo de justiça social.

            Cabe aqui relembrar os ensinamentos do grande mestre Miguel REALE ao discorrer sobre a tridimensionalidade do direito. Afirma o professor na sua Teoria Tridimensional do Direito que:

            a) onde quer que haja um fenômeno jurídico, há, sempre e necessariamente, um fato subjacente (fato econômico, geográfico, demográfico, de ordem técnica etc.); um valor, que confere determinada significação a esse fato, inclinando ou determinando a ação dos homens no sentido de atingir ou preservar certa finalidade ou objetivo; e, finalmente, uma regra ou norma, que representa a relação medida que integra um daqueles elementos ao outro, o fato ao valor;

            b) tais elementos ou fatores (fato, valor e norma) não existem separados uns dos outros, mas coexistem numa unidade concreta;

            c) mas ainda, esses elementos ou fatores não só se exigem reciprocamente, mas atuam como elos de um processo (já vimos que o Direito é uma realidade histórico-cultural) de tal modo que a vida do Direito resulta da interação dinâmica e dialética dos três elementos que a integram (1).

            Desta forma, cabe lembrar que a norma provém de um fato social, econômico, de ordem técnica, geográfica, etc. devidamente valorado dentro do seio social. Não se concebe a existência de qualquer norma sem que se perceba a necessidade social da mesma pois ela regulará o conviver dos indivíduos em sociedade. Entende-se, assim, que a norma advém da sociedade, existe para a sociedade e regula as relações sociais.

            Tanto o proceder social reiterado pode levar à necessidade da existência da norma como a existência da norma leva a um determinado proceder social estando os dois focos sujeitos ao valor do proceder. Um proceder que tem valor social preponderante leva, necessariamente, ao surgir de uma norma reguladora para determinar direitos e deveres, sendo o contrário também verdadeiro; onde a existência de uma norma socialmente imposta leva a um proceder social mais uniforme e condigno.

            A vida do indivíduo não é determinada por nenhuma norma de origem social e sim, e apenas, regida pela norma advinda da sociedade. Advém a vida das regras da natureza onde todos, de forma natural, têm o direito à ela no seu sentido mais amplo.

            Bioeticamente tem-se encontrado na literatura semelhança ao acima exposto com relação ao pensamento do professor Reale. Guy DURANT (2) diz que surge na atualidade uma nova problemática em relação às abordagens tradicionais relacionadas à ética e à vida em sociedade, bem como o viver. Afirma que a bioética deve ter por dever renovar antigas regras e que abra novos caminhos, criando regras e princípios novos que sirvam ao conjunto da ética e levem em consideração os seus diversos campos de preocupação.

            Assim como o mestre REALE na sua Teoria Tridimensional do Direito, o autor citado mostra que bioeticamente as normas surgem da aplicação dos princípios sobre àquilo que a sociedade valoriza, como se verifica no esquema abaixo:

            Valores... que são a categoria do bem e indicam atributos do Ser.

            Princípios... que dão as grandes orientações, que fixam as atitudes.

            Regras... que determinam a ação, que organizam a decisão.

            Ilustrando o acima descrito observa-se o providencial esquema abaixo inserido, tendo como exemplo o valor "vida" no que se refere a um enfermo.

            Valores... – vida

            - caráter sagrado da vida

            - autonomia da pessoa

            Princípios... - respeito pela vida

            - proibição de matar

            - autodeterminação

            Regras - exigência de usar os meios proporcionais

            - informação ao doente

            Verifica-se desta forma que:

            A palavra norma é mais geral: ela aplica-se melhor ao nível dos princípios do que ao plano das regras. Quase sempre a norma é percebida ou apresentada como uma espécie de tabu ou de um imperativo categórico: ela está lá, ela se impõe, sem que se saiba exatamente de onde veio e porque está lá. Sem entrar em polêmicas, pode-se dizer, parece-me, que habitualmente as normas (princípios e regras) estão a serviço de valores que os traduzem em termos operacionais. As duas realidades não se opõem: elas se completam e se remetem uma à outra; a norma conduz ao valor, o valor se traduz em norma. (3)

            Em se tratando do assunto vida faz-se importante ressaltar que o princípio básico que sempre deverá vigir tanto no viver diário como na criação de normas sociais é o do "primum non nocere". Em se respeitando esse princípio básico ao se manejar questões inerentes ao viver, à criação de novas vidas e à própria vida instalada, seja intra ou extra-útero, estar-se-á obedecendo um princípio natural e universal em seu aspecto tão amplo ao ponto de não encontrar barreiras sequer entre raças ou espécies.

            Óbvio é que quando se propõe a discorrer juridicamente sobre este assunto impreterivelmente advém a tona para participar dos embasamentos discursivos a religiosidade, a moral e a ética. É exatamente esta multidisciplinariedade ecumênica que, fazendo o assunto palpitante e irremediavelmente inesgotável, lança o desafio de não ser este apenas mais um trabalho a criticar ou apoiar o abortamento não previsto na lei nacional.

            Faz-se mister ter-se uma pequena parcela de embasamento técnico em relação ao assunto em pauta para que este, associado ao conhecimento jurídico, forneça as bases necessárias para um juízo crítico, provido não apenas deste como ferramenta. Em assim se procedendo poder-se-á dar à interpretação das normas a visão multidisciplinar focalizada na ciência, na ética, no sentimento cristão o que, indubitavelmente, promoverá verdadeiramente a justiça.

            1.1 Conceito de Vida

            Os dicionários pátrios conceituam o vocábulo "vida" de diversas maneiras como se pode verificar na citação abaixo (4).

            Vida s.f. (Do latim vita )1. Característica própria aos seres vivos que possuem estruturas complexas (macromoléculas, células, órgãos, tecidos), capazes de resistir a diversas modificações, aptos a renovar, por assimilação, seus elementos constitutivos (átomos, pequenas moléculas), a crescer e reproduzir.2. Conjunto de condições e características da existência próprias a um tipo de ser vivo. 3. O período existente entre o nascimento e a morte; existência. 4. Maneira de viver própria a um grupo, caracterizada por um conjunto de condições sociais, econômicas e culturais, históricas, etc. 5. Duração da existência humana; conjunto de acontecimentos que sucedem nesta existência.

            Os conceitos supra também podem ser também obtidos em qualquer dicionário da língua portuguesa pois os conceitos da vida serão sempre os mesmos enquanto os padrões de vida se modificam com as transformações da sociedade. Para o desenvolver deste trabalho considerar-se-á a definição de vida como o espaço de tempo decorrido entre a geração e a morte do indivíduo, pois no conceito biológico a vida de inicia quando da união do material genético masculino com o feminino, o que ocorre na fecundação.

            É ponto pacífico nos diversos ordenamentos jurídicos pesquisados que o início do processo biológico denominado vida humana tem seu apogeu com a fusão dos pronúcleos masculino e feminino, respectivamente do espermatozóide e do óvulo.

            Teorias existem que procuram determinar que a partir do momento em que ocorre a fusão do material genético feminino com o masculino forma-se um pró-embrião que neste estado permanecerá até o momento em que ocorrer o processo biológico denominado nidação. Embasando-se neste argumento alguns Estados despenalizam o abortamento proporcionado nesta época. Como exemplo tem-se a França onde é liberado o uso da chamada "pílula do dia seguinte", conhecida no Brasil como "contracepção de emergência".

            Esta concepção tem na atualidade o seu valor decorrente do avanço tecnológico da medicina o que proporcionou a inúmeros casais inférteis a possibilidade da fertilização in vitro e outras técnicas para fertilização do óvulo fora do corpo da mulher. Decorrente da indução da ovulação por modernas drogas que o fazem de uma maneira bastante perdulária uma vez que dezenas de óvulos são liberados durante o processo de ovulação e estes, fecundados, são posteriormente selecionados e, os não implantados, congelados para posterior utilização. Caso esta utilização não ocorra serão, após algum tempo, "descartados", como ocorreu na Inglaterra há alguns anos tendo sido esta situação por demais comentada e investigada devido ao crescimento no planeta da Bioética e do Biodireito.

            No entanto, é por demais conhecido dentre as religiões cristãs que a fecundação corresponde ao inicio da vida- não se está aqui perquirindo a existência ou não da alma e, consequentemente, o momento da sua inserção na forma de vida que está evoluindo pois, nessa situação, o prisma do estudo deveria ser outro.

            No que se refere ao aspecto legal percebe-se, pela doutrina, que a vida de qualquer indivíduo da espécie humana se inicia ao nascer vivo, o que pode ser observado no artigo 4.º da Lei n.º 3.071 de 1.º de Janeiro de 1916 "A personalidade civil do homem começa com o nascimento com vida: mas a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro".

            Mesmo antes de haver sido seccionado o cordão umbilical pelo obstetra ou pela parteira, desde que o vagido tenha sido ouvido ou a inspiração preenchido os alvéolos pulmonares, considera-se que, legalmente, a criança nasceu com vida. Passa, assim, o rebento a ser sujeito de direito com a expansão pulmonar, independentemente de ser um indivíduo saudável, prematuro, sindrômico, deficiente ou dentro dos parâmetros de normalidade física e/ou psíquica.

            Afirma-se na doutrina jurídica que o fator determinante do início da vida é o nascer vivo conforme constatado no diploma legal citado acima. Se analisarmos o indivíduo como um ser determinado pela lei veremos que ele só passa a existir no mundo, para aquela, através da Declaração de Nascido Vivo a qual é o primeiro documento no qual se embasa o Cartório de Registro Civil para emitir a Certidão de Nascimento, base para a obtenção de todos os outros necessários à vida do cidadão.

            Segundo IVES GANDRA:

            Expressão salvar a vida da gestante, significa uma ordem de preferência para a vida já instituída, isto é, para aquele que já adquiriu o atributo personalidade e, portanto, atingiu inquestionavelmente a qualidade de pessoa, com a preterição do estado potencial (produto da concepção). (5)

            Afirma ainda que:

            este entendimento já era adotado em tempos medievais como opinavam Zacchia e Coreriu: Non punitor si judicio medicorum alieter non potest mater salvare... Pro salute mulieris excusatur.

            Assim, entende o legislador que existe, inquestionavelmente, um critério de valoração da vida juridicamente, ou seja; a vida extra-uterina tem predominância valorativa sobre a vida biológica em desenvolvimento intra-útero. Esta predominância, é óbvio, estabelece-se a partir do momento em que entram em choque os interesses da gestante e os do embrião (feto). Este é o grande ponto da discussão do tema que se propõe a desenvolver.

            Desta forma, a legislação protege como vida apenas a extra-uterina definindo que o direito à vida é inalienável iniciando com a aquisição da personalidade a qual, por sua vez, ocorre ao nascer com vida. O termo personalidade verbete Jur. Aptidão, reconhecida pela ordem jurídica, para exercer direitos e contrair obrigações, que, por sua vez provém da palavra pessoa Jur. Ser ao qual se atribuem direitos e obrigações.

            O professor José Afonso da SILVA, ao comentar sobre o direito à vida e à intimidade tendo a vida como objeto do direito demonstra que no texto constitucional a proteção ampla que a mesma determina não se restringe o direito à vida apenas no aspecto biológico pois:

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

            (...) é algo dinâmico, que se transforma incessantemente sem perder sua própria identidade. É mais um processo (processo vital), que se instaura mantendo sua identidade, até que muda de qualidade, deixando, então, de ser vida para ser morte. Tudo o que interfere em prejuízo deste fluir espontâneo e incessante contraria a vida. (6)

            Apoiado em RECASENS, argumenta ainda o douto professor:

            Todo ser dotado de vida é indivíduo, isto é: algo que não se pode dividir, sob pena de deixar de ser. O homem é um indivíduo, mas é mais que isto, é uma pessoa". (7) [Continua o grande mestre na obra citada]: "A vida é intimidade conosco mesmo, saber-se e dar-se conta de si mesma, um assistir a si mesma e um tomar de posição em si mesma" (8). Por isso é que ela constitui a fonte primária de todos os outros bens jurídicos.

            O que se observa na doutrina e legislação atual é uma nítida separação dos direitos em fases distintas do mesmo processo. Quando o ser ainda se desenvolve no ventre materno (...) a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro os quais não têm inseridos no seu bojo o direito à vida. Este direito passa a fazer parte de uma forma insofismável e definitiva ao nascer com vida como determina a primeira parte do artigo 4.° do Código Civil brasileiro.

            O direito à vida, conforme afirma José Afonso da SILVA, traz consigo direitos outros de forma indelével e inalienável como:

            Direito à existência (direito de estar vivo, de lutar pelo viver, de defender a própria vida e de permanecer vivo). É o Direito de não ter interrompido o processo vital senão pela morte espontânea e inevitável.

            Direito à integridade física. Agredir o corpo humano é um modo de agredir a vida, pois esta se realiza naquele. A integridade físico-corporal constitui, por isso, um bem vital e revela um direito fundamental do indivíduo. (9)

            Direito à integridade moral. A vida humana não é apenas um conjunto de elementos materiais. Integram-na também valores imateriais, como os morais. O elemento moral, em sua dimensão social, é um valor a que a Constituição empresta muita importância, não raro superpondo-o acima de outras garantias; assim, por exemplo, não aceita publicações contrárias à moral e aos bons costumes (art. 153,§ 8.º), não admite liberdade de cultos religiosos em desacordo com os bons costumes (§ 5,º). A moral individual, a honra pessoal, o bom nome, a boa fama, a reputação integram a vida humana, como uma dimensão imaterial. São atributos, sem os quais a pessoa fica reduzida a uma condição animal de pequena significação. (10)

            Direito à intimidade. O Direito à vida privada, o direito à intimidade (direito de estar só) como decorrência do direito da personalidade que, por sua vez, se integra no direito à vida, constitui, daí, um direito fundamental, assegurado na Constituição, em seu sentido genérico, como um componente deste último, e é, em caos específicos, garantido na forma da inviolabilidade do lar e do sigilo da correspondência. (11)

            Entende-se ser a vida um processo biológico com princípio, desenvolvimento e fim, o qual obedece, insofismavelmente, as leis da natureza mas que pode sofrer, em qualquer de suas etapas, interferência do indivíduo humano. Independente dos motivos que levam a esse proceder intra-específico, onde irá ocorrer agressão ao que "está por vir", esta agressão estará ocorrendo intra-especificamente, situação inadmissível moral e eticamente em uma sociedade evoluída. Filosoficamente, embasado no entender de HABERMAS (12) que eleva a unicidade do ser, tem-se a certeza de que a vida é inviolável. O direito pátrio positivado, porém, valora diferentemente a vida intra-uterina da extra-uterina fazendo uma "cisão ficta" no processo que tem início, desenvolvimento e fim.

            Determina o artigo 4.° do Código Civil uma "suspensão" de direitos daquele que nascerá como o faz em relação aos procedimentos e atos processuais. A norma positivada determina que aquele que se move no ventre materno terá personalidade e, portanto, estará vivo para o "mundo jurídico", apenas após nascer com vida. Desta forma o direito faz uma "cisão ficta" no processo contínuo que é a vida e determina que os direitos só podem ser pleiteados a partir daquele marco (introdução no mundo jurídico).

            Entende-se, desta forma, que não pode o legislador diferenciar a vida intra-uterina da extra-uterina facultando o fim da primeira em qualquer que seja o motivo, exceto quando a mãe corre risco de vida. Nesta situação é inquestionável que morrendo a mãe, via de regra, morrerá o embrião.

            A vida, no nosso modesto parecer, corresponde a um conjunto de reações e processos orgânicos ininterruptos e interrelacionados os quais se iniciam com a fecundação e findam com a morte. Está-se aqui se referindo à morte biológica a qual, por sua vez, tem o condão de determinar a morte civil.

            Há, dentro da doutrina pátria, quem afirme não ser o embrião pessoa humana e sim potência de pessoa humana e, desta forma, ainda não o sendo, é passível de atos que provoquem o interromper do seu desenvolvimento. Este não é o nosso entender. Assim, torna-se necessário o entendimento do que é "pessoa humana" nos seus conceitos básicos, diferencia-la de "ser humano" para que se possa avançar no tema proposto neste trabalho.

            1.2O SER HUMANO

            Ao serem analisados em estágios iniciais de desenvolvimento embriões como o da salamandra e o do homem observa-se serem extremamente semelhantes na sua morfologia, ou seja; no seu aspecto morfobiológico. O que pode levar a primeira vista o incorrer em erros aqueles que não creditam ao embrião humano a característica da vida. Ao se observar a morfologia do embrião incorre-se no falso julgamento uma vez que suas características morfológicas em muito pouco podem lembrar o ser humano do nosso convívio diário. A única forma inequívoca de se identificar um embrião e determinar a que espécie pertence é, indubitavelmente, a identificação do seu "mapa genético", ou seja o seu Ácido Desoxirribonucleico (ADN). (13)

            Na espécie humana este "mapa genético" é caracterizado pela presença de quarenta e seis cromossomas (vinte e três pares) nas células somáticas e apenas vinte e três cromossomas não pareados nas células germinativas. Nas células somáticas encontram-se vinte e três pares correspondendo a vinte e três cromossomas maternos emparelhados aos vinte e três cromossomas paternos advindos da fecundação do óvulo pelo espermatozóide.

            Apenas a presença de vinte e três cromossomas em uma célula reprodutora não caracteriza um indivíduo da espécie humana mas sim a seqüência de nucleotídeos (14) na cadeia de ADN desses cromossomas. De forma mais simplificada o cariótipo (disposição dos pares de cromossomas de uma célula obtidos por microscopia eletrônica) de um indivíduo pode dar informações precisas se ele pertence ou não á espécie humana.

            Assim sendo para se identificar biologicamente se um indivíduo é ser humano ou não deve-se ter como ponto de partida o seu material genético (ADN).

            Este método (ADN) é o utilizado para determinação da paternidade bem como para o elucidar de casos de estupro e assassinatos pela perícia técnica e dão índices de acerto que em muito se aproximam dos cem por cento. É, na atualidade, um exame necessário para a confirmação ou exclusão da paternidade e que, embora extremamente expensivo, é condição para o prolatar da sentença judicial, o que é demonstrado pelo patrocínio do Estado nos casos onde o investigado não tenha condições financeiras para realizar o exame.

            Desta forma, entendido que biologicamente o ser humano tem uma cadeia de ADN que lhe é típica tal qual a impressão digital do indivíduo ou mesmo a imagem fotográfica do seu fundo de olho (retina), pode-se, agora, fazer uma pequena e superficial incursão filosófica para conceituar a pessoa humana.

            1.3 A PESSOA HUMANA

            Em 1967, o relatório publicado pela Conferência Internacional Sobre o Aborto, estudo patrocinado pela Harvard Divinity University e pela Kennedy Foundation afirmava que a presença da pessoa humana, sob o ponto de vista médico, biológico e genético era evidenciada a partir da concepção. Esta afirmação pode ser encontrada na página 39 do referido relatório onde se lê: "O potencial para o futuro desenvolvimento da pessoa é tão grande no óvulo fecundado quanto no embrião, no feto, no prematuro, no infante e na criança."

            Já no seu tempo JOHN LOCKE, em sua obra Segundo Tratado do Governo Civil publicada em 1690, teorizava sobre o liberalismo político chamando sua atenção para três pontos que considerava fundamentais:

            - a igualdade natural de todos os homens;

            - a defesa do regime representativo

            - a defesa dos direitos subjetivos dos indivíduos diante dos possíveis e freqüentes excessos do rei.

            Em seu Ensaio Sobre o Entendimento Humano, publicado em Londres no ano de 1690, expressava que a pessoa humana era, como citado por GHIRARDI:

            un ente pesante inteligente, que tiene razón y reflexión y puede considerarse a sí mismo, la misma cosa pensante, em diferentes tiempos y lugares; lo que hace únicamente por essa conciencia que es inseparable del pensamiento y me parece esencial a él, pues nadie puede percibir sin percibir que percibe [...] conservándose la misma conciencia, sea en la misma o en distintas sustancias, se conserva la identidad personal (15)

            onde a mesma substância imaterial sem a mesma consciência (16) não constituiria a mesma pessoa.

            Nesse sentido, assevera OLSEN A. GHIRARDI (17):

            El grado de civilización de una sociedad, de una época, depende del modo de disponer y disciplinar estas interferências entre sujetos personales, los cuales deben predisponerse en actitudes que no sólo respeten la persona, sino que favorezca el desarollo de la personalidad.

            Caberia aqui uma pergunta: pode-se conceber a existência de uma pessoa humana sem a vida?

            Segundo GONELLA a teoria clássica da pessoa existe em função de uma doutrina da vida. GHIRARDI (ob. cit.) afirma:

            La vida no es sólo propiedad fundamental de la persona sino que les es naturalmente consubstancial. De aquí el derecho a la vida sea reconocido por los sistemas jurídicos como un derecho esencialíssimo de la persona humana. Cuando se arroja una mirada a los derechos que inspira la noción de persona, surge de inmediato el recuerdo de que el compuesto humano está constituido por dos principios: la materia y el espíritu. Llamo la atención sobre el punto: no se trata de dos elementos separables, sino de dos principios. Y, en consecuencia, al tratar de enumerar los derechos fundamentales de la persona inspirados por esta concepción, caben dos ángulos: el biológico y el espiritual. (18)

            Pode-se esquematizar o pensamento de GHIRARDI (obra citada) da maneira abaixo:

            Pode-se verificar pelo esquema acima que o primeiro direito do ser humano no sentido biológico é, insofismavelmente, o direito à vida. Como afirma GHIRARDI:

            El derceho a la vida no significa vivir solamente hoy, vivir un período determinado, sino toda la vida, desde la concepción hasta la muerte. El derecho a la vida implica, fundamentalmente, el derecho a la continuidad de la vida. Incluye el derecho a oponerse a la interrupción de ella en cualquiera de sus extremos y en cualquier segmento. (19)

            A teoria pactista de JOHN LOCKE é considerada a pedra angular das normas e estas são caminhos por onde deve seguir a conduta humana, assim sendo: La persona es definida en la norma y es lo que ésta dice que es. A lo sumo, deja margen para una labor de interpretación, cuyo horizonte no va más allá del caso concreto. (20)

            O professor MIGUEL REALE ao discorrer sobre o tema (21) relembra que:

            Persona era a máscara usada pelos artistas no teatro romano – do qual, por sinal, não participavam mulheres – a fim de configurar e caracterizar os tipos ou "personagens" e, ao mesmo tempo, dar maior ressonância à voz. O símile é feliz pois a "pessoa" é a dimensão ou veste social do homem, aquilo que o distingue e o "apresenta" e projeta na sociedade, para que ele possa ser, de maneira autônoma, o que corresponde às virtualidades do seu ser individual. Pessoa é, por outras palavras, a dimensão atributiva do ser humano, ou seja, a qualificação do indivíduo como ser social enquanto se afirma e se correlaciona no seio da convivência através dos laços ético-jurídicos. [Continua o mestre em sua obra (22)]: A idéia de pessoa é fundamental tanto no domínio da Ética como no campo estrito do Direito. A criatura humana é pessoa porque vale de per si, como centro de reconhecimento e convergência de valores sociais. A personalidade do homem situa-o como ser autônomo, conferindo-lhe dimensão de natureza moral. No plano jurídico a personalidade é isto: a capacidade genérica de ser sujeito de direitos, o que é expressão de sua autonomia moral.

            Desta forma, para o mestre MIGUEL REALE "Personalidade todos os homens têm, desde o nascimento" (23), e esta pode ser considerada, em sentido amplo, pré-requisito para se ter capacidade. No entanto, a personalidade não determina necessariamente a capacidade do indivíduo pois menores de quatorze anos, índios não civilizados, loucos e dementes, dentre outros, têm personalidade porém são civilmente incapazes. [não existe grifo no original]

            A definição de pessoa foi diferentemente consubstanciada no decorrer do tempo dentro da filosofia. Cita-se, por exemplo, os dizeres de BOÉCIO ao afirma que pessoa é a naturae rationalis individua substantia.

            Já para HARTMANN pessoa é "o ser que olha para o futuro, o ser previsor que coloca fins, o ser atuante que, ao atuar, decide livremente e que, ao mesmo tempo possui o sentido do valor e do desvalor..." (24).

            MAX SCHELER, contrapondo-se a Boécio, afirma que a pessoa nada tem a ver com a substantia ou com o sujeito uma vez que estaria ela no plano material do ato "Pessoa é a concreta e essencial unidade de ser de atos de diferentes classes de essência, que em si antecede a todos os diferentes atos (percepção interior e exterior, querer, pensar, sentir, amar, etc.)". (25)

            Immanuel KANT afirma em seus escritos prevalecer o aspecto ético e axiológico: "a pessoa é um fim em si mesma e digna de respeito; nunca pode ser utilizada como puro meio". (26)

            A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) tem expressa com fidelidade a máxima kantiana: "Age de tal maneira que trates a humanidade, tanto na sua própria pessoa como na do outro, sempre como um fim e jamais como um meio ". Demonstra, desta forma, KANT que o tratar o outro como um fim significa reconhecer a pessoa como um centro de alteridade e dignidade.

            O filósofo acompanhando a tendência de alguns pensadores de seu tempo diferenciou indivíduo (ser) de pessoa afirmava no concernente ao assunto que aquele seria

            (...) uma entidade psicofísica dotada de uma certa complexidade e de unidade que a torna distinta de outro indivíduo, assim, um cão é um indivíduo. A pessoa, ainda que seja, até certo ponto, também um indivíduo, já que também se constitui de um corpo e de uma estrutura psicofísica, não se reduz totalmente a essa estrutura. O indivíduo é limitado pelas suas características psicofísicas – o cão se submete totalmente à sua condição psicofísica de cão – enquanto a pessoa tira de si mesma suas determinações. Por isso, a pessoa é sobretudo liberdade, pois ela é capaz de se autodeterminar (27).

            Quando se trata de estudar e definir a pessoa humana pesquisa-se a metafísica a antropologia jurídica e voltam-se as conclusões para a Filosofia do Direito, como pode-se verificar pelo citado por GHIRARDI:

            Inútil es decir que, a la hora de interpretar un texto legal, en mi ánimo pesará siempre la definición clásica, especialmente si hay ruídos de fondo. Hacerlo de outra manera significaría una renuncia a mis convicciones más profundas. Y toco aquí toda una cuestión que no debe ser ignorada: todo texto legal debe ser interpretado ante el caso concreto, en cuya circunstancia las normas, a través de sus definiciones conceptuales, cobrarán el sentido que la vida que vivimos trasunta. (28)

            Para Miguel REALE,

            A idéia de que o homem é enquanto deve ser implica a identidade ontológica de todos os homens, enquanto é intrínseco ao homem a condição transcendental ontológica e deontológica de ser pessoa, isto é, de ser todo homem uma pessoa a priori. (29) [Continua o mestre]: A pessoa é a constante, a categoria axiológica fundamental, o valor-fonte e primordial em virtude do qual e pelo qual todos os homens valem. Quem diz espírito, diz valor. (30)

            Afirma ainda GHIRARDI : En el acto de juzgar, fijamos el sentido del momento, sentido que nos da lo esencial y lo mutable.

            Quando se fala em vida é importante se lembrar que a pessoa existe na vida e a vida existe na pessoa. A vida porém... se da en el tiempo porque vida es un proceso biológico.

            Como se está dissertando sobre a vida intra-uterina faz-se mister se situar aqui se o embrião que se desenvolve no útero materno é ou não uma pessoa. Ainda citando GHIRARDI vê-se que:

            No hay que olvidar que la persona existe en la vida que se da en el tiempo como proceso biológico. El embrión, por entanto, en cuanto representa una nueva vida, un nuevo ente, comienza de inmediato sui proceso de desarollo. Filosoficamente es muy difícil sostener que la persona existe ya en el instante mismo de la concepción y que este embrión, así concebido, es actualmente una persona. Es, quizá, mucho más correcto decir que el embrión es virtualmente una persona.

            Virtual es lo que existe en potencia. Es lo que todavía no existe plenamente en acto. (31)

            Torna-se óbvio que a virtualidade da personalidade do embrião está inexoravelmente fadada à materialidade da mesma uma vez que todos os elementos necessários para a sua manifestação estão contidos no concepto e se desenvolvem juntamente com ele a ponto de, quando do seu nascimento, mesmo sem haver completado as quarenta semanas, reconhece o ordenamento jurídico a sua condição.

            LACADENA, J. J. já afirmava em sua obra: el hombre es persona desde el primer momento. (32)

            Conforme afirma Marciano VIDAL em sua obra Bioética (1989):

            De una moral naturalista es necesario pasar a una moral en la que el criterio fundamental sea la persona. Ahora bien, la compressión normativa de persona es necesario entenderla dentro de una visión integral. La moral del futuro está buscando un concepto de totalidad que abarque todo: La dignidad y el bienestar del hombre en cuanto persona, en su relación esencial para com Dios, para com el hombre y para com el mundo que le rodea.

            Vê-se aqui que a alteridade é o fator preponderante para o entendimento ao respeito à pessoa e à vida humana.

            O entendimento dos posicionamentos acima descritos no concernente à personalidade humana tem uma guinada vertiginosa quando procura-se examinar, à luz do direito atual, o resultado oriundo dos avanços biotecnológicos como a FIVETE (33) (Fertilização "in vitro" e Transferência de Embriões) por exemplo.

            1.4 AS TEORIAS SOBRE A VIDA

            Duas teorias procuram estabelecer o momento exato da aquisição da personalidade pelo novo ser, uma afirmando que a aquisição da personalidade deve ser reconhecida a partir do momento da concepção (teoria concepcionalista) e outra aceitando-a a partir da nidação. Nesta última teoria somam-se todas aquelas que afirmam existir pessoa humana após a formação da crista neural (início da formação do Sistema Nervoso Central) bem como a aceita pela legislação autóctone onde encontra-se afirmado que a personalidade é "adquirida com o nascer com vida" (teoria natalista).

            Neste último aspecto é que se têm os enfoques bioéticos e do biodireito que aguçam na atualidade os interesses das organizações não governamentais (ONGs (34)) denominadas "pró-vida" (35) e, por sua vez causam mal-estar para o setor da biotecnologia. Verificam-se com grande facilidade estas afirmações quando se percebe na legislação alemã jurisprudências afirmando não ser o zigoto (36) um "bem juridicamente protegido", o que, por conseguinte, permite a realização de experimentos biotecnológicos com os mesmos. O mesmo pode-se verificar nas legislações espanhola e inglesa, dentre outras, onde nos

            primeiros 14 dias após a fecundação "in vitro" os embriões podem ser alvo de experimentos, congelados por até cinco anos, descartados ou destruídos sempre que existam sinais de impossibilidade de implantação uterina dos mesmos. Não são poucas as posições no sentido de que não existe personalidade durante os primeiros 14 dias após a concepção. Esta teoria explicaria o porquê da "contracepção de emergência" não ser considerada abortamento. Estas e outras situações ainda não definidas especificamente em lei são alvo da ciência surgida em 1971 com Potter nos Estados Unidos e que desencadeou, por sua vez, o surgimento de várias linhas, sendo um estímulo para o surgimento do Biodireito.

            Teorias outras existem procurando afirmar que a personalidade só é adquirida mais tardiamente, ou seja, quando o feto já está praticamente viável. Parece-nos ser esta uma teoria aceita pelos movimentos "pró aborto" que muito se difundiram nos estados europeus e americanos do norte onde se procura fundamentar o ato abortivo no "direito à intimidade" (Rigths of Privacy) e "direito ao próprio corpo".

            Para o professor Moisés TRACTEMBERG (37)o ser humano é corpo e ao mesmo tempo mente, consciência. Para esse pesquisador, cujas conclusões são derivadas da análise de ultra-sonografias, o indivíduo passa a existir a partir do momento em que se forma o seu "ego", o que se dá por volta do quarto ou quinto mês de gestação. Afirma o autor citado que passa a existir a partir desse momento uma "mente consciente" que é caracterizada por uma atividade mental que tem consciência de si e do próprio ambiente que cerca o feto.

            Através do estudo do sistema nervoso central (SNC) do feto e do embrião é que o professor TRACTEMBERG iniciou a formulação da sua

            teoria uma vez que verificado que em um embrião de oito semanas o peso do SNC correspondia a 25% do total, que em uma gestação a termo (40 semanas) este peso decairia para 15% enquanto que em um adulto o peso do SNC corresponde a apenas 3 a 5%. Verificou ainda que já com 12 semanas o feto responde com taquicardia (aceleração dos batimentos cardíacos) ao som de uma buzina acionada em contato com o ventre materno. Este teste é hoje utilizado como fator preditivo de comprometimento fetal e é realizado nos exames ambulatoriais de consultas pré-natais.

            Desta forma, verifica-se que a própria ciência médica procura também demonstrar que o início de uma gestação não significa necessariamente a existência de uma pessoa humana uma vez que o "ego" incorpora-se ao feto após o quarto mês.

            Como afirmam DINIZ e ALMEIDA No entanto, não são os dados evolutivos da fisiologia fetal que decidem quando se pode ou não abortar, mas sim os valores sociais concedidos a cada conquista orgânica do feto (38). O que demonstra ser o abortamento um proceder do indivíduo por uma causa iminentemente social. Seja ela solitária (motivos que dizem respeito ao próprio indivíduo, como a sua autonomia de vontade) seja ela comum (motivos que dizem respeito a um segmento ou toda a sociedade como o estupro, a superpopulação, gravidez em religiosas, etc.).

            O professor José Afonso da SILVA, ao tecer considerações acerca do direito à vida, reconhece a dificuldade de uma definição, como se constata na seguinte leitura: Não intentaremos dar uma definição disto que se chama vida, porque é aqui que se corre o risco de ingressar no campo da metafísica suprarreal, que não nos levará a nada. (39)

            Ao desenvolver este tema sabe-se da polêmica que o mesmo poderá gerar face às diversas definições e conceitos do vocábulo em questão, bem como à gama enorme de situações e fatos, legais e ilegais, aos quais o mesmo encontra-se ligado.

            Cita o jurista HÉLIO BICUDO (40):

            Sem dúvida, como salienta a professora Márcia Pimentel, PhD em genética humana, ela começa com a concepção, "pois, a partir do momento em que o óvulo é fecundado pelo espermatozóide, inicia-se uma nova vida, que não é aquela do pai ou da mãe, e sim a de um novo organismo que dita seu próprio desenvolvimento, sendo dependente do ambiente intra-uterino da mesma forma que somos dependentes do oxigênio para viver. Biologicamente, cada ser humano é um evento genético único, que não mais se repetirá.

            No âmbito religioso, especificamente dentro do catolicismo, religião predominante no Brasil, a vida não se restringe ao período decorrido desde o nascimento com vida até a sucumbência definitiva das atividades orgânicas. Crê-se na existência de vida após a morte devidamente interpretado nas citações existentes nos diversos livros da Bíblia. Outro fato de evidente importância na religião católica é o crer na existência de uma alma a qual seria incorporada ao indivíduo no momento da concepção residindo neste fato, talvez, o ponto mais forte do repúdio que o católico tem pelo abortamento (41).

            Estas situações claramente demonstram que o início da vida se dá dentro do organismo materno, em condições naturais, e portanto, confirmam que os direitos da pessoa que está sendo gerada já lhes são inerentes intra-útero sendo apenas formalmente efetivados ao nascer com vida.

            Veja-se o que afirma Carlos José MOSSO:

            Quien afirma que antes de la anidácion no hay un ser humano, debería poder responder a que naturaleza pertenece el cigoto no anidado, si es un animal, un vegetal o un extraterrestre. Si dijera que es un animal, debería poder explicar en virtud de qué esse animal puede mutar de especie y convertirse en un ser humano después de la anidácion. Aún por la vía del absurdo podemos concluir que hay ya un ser humano cuando el espermatozoide penetra en el óvulo. (42)

            Não há que se confundir o tema até o momento desenvolvido com as teorias de SAVIGNY – teoria da fictio juris, teoria de GIERKE – teoria organicista ou real, teoria de Maurice HAURIOU – teoria institucionalista entre outras uma vez que estas dizem respeito à personalidade jurídica em especial e não apenas ao sentido de pessoa (43). No entanto, devido à sua importância para o direito, far-se-á mais adiante uma pequena explanação sobre as diferentes teorias da personalidade.

            É importante se observar que, nesta situação, contrapondo-se ao interesse jurídico existente, embasado no artigo 5.º da CF/88 quando no seu caput determina a garantia da vida, encontra-se o direito da gestante à intimidade e á privacidade ao próprio corpo. Desta forma estabelece-se um distúrbio de interesses tendo por um lado um ser que está sendo gerado através de um ato humano no ventre materno e, por outro lado, o desinteresse da gestante em levar ao termo aquela gravidez por motivos que, para ela, são relevantes. Este é, talvez, na atualidade, o termo crucial da discussão uma vez que pontos de vista religiosos, legislativos e filosóficos conflitam-se isolada ou associadamente.

            Pelo até o momento exposto, torna-se necessário enfatizar a impossibilidade de confundir ou utilizar-se como sinônimos os termos "ser humano" e "pessoa". Tornou-se bastante claro na explanação supra que todos da espécie humana são seres humanos porém não são, necessariamente,

            pessoas. Para a personalização torna-se necessária a interação plena do ser humano com o meio onde vive, a inter-relação com outros seres humanos e pessoas. A simples presença do ser humano no seio da sociedade não o faz pessoa mas sim a consciência e inter-relação do mesmo no seio social são fatores determinísticos para tal. Torna-se necessária a autodeterminação como "conditio sine qua non" para determinação da personalidade.

            Segundo GOBSTEIN (44) o que é condição necessária para que o embrião possa ter a ele atribuídos direitos denomina-se consciência e afirma:

            Porém, no processo que conduz à emergência da consciência, a sensibilidade surge como forma rudimentar do que será mais tarde a consciência de si reflexiva. É por isso que a definição do momento em que o embrião começa a sofrer determina o início do seu ser pessoal.

            ENGELHARDT (45) afirma não ser o fato do ser humano pertencer à

            espécie humana que atribui o homem o seu valor, mas a consciência, a racionalidade e o sentido moral de que são capazes os membros dessa espécie, embora também devessem ser considerados pessoas os seres que não pertencessem à espécie humana mas que apresentassem, no entanto, essas características. (não existe grifo no original)

            Afirma Eliane S. AZEVÊDO (46) que

            As discordâncias também não convergem para um ponto geral de aceitação total; muito ao contrário, as opiniões divergem e as sugestões de quando a vida humana se inicia buscam fundamentação no surgimento de estruturas em momentos diversos do desenvolvimento embrionário.

            Em 1979, o Ethics Advisory Board nos Estados Unidos da América do Norte propôs que o 14.° dia de gestação fosse considerado o inicio da vida, justificando ser este dia o final da fase de implantação.

            Para outros o 6.° dia, quando as células passam do estado de totipotência para o de unipotência, deve ser considerado o início da vida humana, porque a partir deste momento sabe-se se será formada mais de uma pessoa (gêmeos) ou uma única pessoa. Para outros, todavia, o momento divisório entre ser ou não humano é o início da formação do sistema nervoso, ou seja, o início da vida cerebral, que o ocorre na 8.ª semana.

            Para outros, o marco é o surgimento do suco neural no 11.° dia.

            A Comissão Waller-Australia considera o aparecimento da linha primitiva. Para os que defendem este momento, a justificativa é que o aparecimento da linha primitiva é o sinal de que se começa a formar um só embrião. Antes desse momento, para os defensores dessa tese, não teria sentido falar da presença de um verdadeiro ser. Criou-se, assim, o termo pré-embrião para definir uma entidade não-humana sobre a qual se estaria permitindo a realização de pesquisas. (47)

            Afirma ainda a autora citada (48) que ENGELHARDT determina que

            o recém-concebido não tem consciência, não tem racionalidade e não tem senso de moral e ainda que sendo estas características próprias das pessoas, quem não as tem não merece o reconhecimento de pessoa, e continua assim, nem todos os seres humanos são pessoas, e entre os não-pessoas estão os fetos, os recém nascidos, os retardados mentais graves e pessoas em estado de coma.

            Discorrendo ainda sobre o assunto continua a autora:

            Para Singer, somente é pessoa quem possui autoconsciência, auto controle, sentido de presente e futuro, capacidade de se imaginar em relação aos outros, respeito pelos outros, além de ser capaz de comunicar-se e demonstrar curiosidade.

            A Declaração dos Direitos do Homem datada de 1948 e que, na realidade, corresponde a uma adequação temporal da declaração de 1789 pode, segundo Gilbert HOTTOIS (49), proporcionar um recurso ambíguo não concludente no que se refere ao assunto abortamento pois a afirmação em nível individual tende a entrar em conflito com as "exigências do bem comum".

            Afirma em sua obra o autor supra citado:

            Como compreender o artigo 3 (50), que defende o "direito à vida" de "qualquer indivíduo"? Haverá quem queira ler nele uma interdição firme de qualquer aborto, sublinhando o termo vida; outros, acentuando o termo indivíduo, negarão que um embrião com alguns dias ou algumas semanas possa ser considerado um indivíduo propriamente dito. Porém, sê-lo-ia se surgissem outras dificuldades em virtude do direito à saúde (art.25): um embrião não tem o direito de nascer de boa saúde, sem deficiências? Baseada na proteccão dos indivíduos, a "Declaração Universal dos Direitos do Homem" não evoca a preservação do "bem comum", embora esteja evidentemente subentendido desde 1789 (art. 4) que a minha liberdade pára onde começa a prejudicar o outro e que a idéia de um "contrato social" implica a consideração essencial do bem colectivo (51).

            Pergunta então o autor citado: "A partir de que momento se torna mais importante proteger o colectivo (isto é, de facto, os indivíduos também) violando os direitos de certos indivíduos ou de certos grupos de indivíduos?".

            Na atualidade observa-se uma grande preocupação dos constitucionalistas no que se refere à observância de princípios e regras constitucionais. Tal tendência tem como centro a idéia de que no positivismo jurídico, como nos é ensinado por Kelsen, a Constituição corresponde à norma mater e todas as demais normas são dela oriundas ou a ela devem se submeter.

            Ao adotar-se a teoria principialista cai, automaticamente, por terra a doutrina que classificava as normas em preceptivas e programáticas onde a estas últimas lhes era negado o caráter de força de lei.

            Os princípios constitucionais têm como característica fundamental o poder de serem critérios objetivos do processo de interpretação-aplicação do direito que podendo ser invocados colmatam as lacunas porventura existentes na lei.

            Constituem, portanto, os princípios constitucionais um segmento das normas jurídicas que constituem o ordenamento jurídico. O ordenamento jurídico é composto, ordinariamente, por normas jurídicas as quais, por sua vez, se diferenciam em regras e princípios.

            Duas teorias se apresentam na atualidade no concernente aos princípios frente à Constituição: concepção forte e concepção fraca.

            No concernente à concepção forte dos princípios tem-se como base que existe uma distinção "lógica e quantitativa" entre os princípios e as regras.

            No que se refere à concepção fraca dos princípios observa-se que afirmam os autores não existir uma diferenciação clara entre princípios e regras. Os princípios, segundo esta concepção não asseguram a solução justa nem mesmo eliminam a necessária discricionariedade do julgador.

            São, na atualidade, fortes representantes da teoria forte dos princípios Letizia Gianformagio, Ronald Dworkin e Robert Alexy a qual tem uma forte aceitação pela maioria dos doutrinadores.

            Em se referindo aos princípios frente ao tema abordado neste trabalho observa-se que fatalmente haverá colisão entre dois deles quando o assunto é a IVG. Colidem o princípio do direito à manutenção da vida, do viver, do existir que é auferido ao nascituro pela CF e o direito à autonomia, à liberdade, à privacy, ao determinar e gerir o próprio corpo reivindicado pela gestante.

            A colisão de dois direitos garantidos por princípios e regras constitucionais determinam ao julgador um julgamento onde deverá o mesmo fazer a interpretação e valoração de cada qual de per si. Tarefa árdua onde valores éticos, sociais, morais, religiosos e legais confluem para o caso concreto e devem ser decantados e separados fornecendo como produto final a justiça para o mesmo.

            Quando dois princípios se conflitam ocorrendo a "colisão de princípios" necessariamente, in caso, um deverá suplantar o outro. Observe-se entretanto que não haverá jamais a invalidação do princípio suplantado mas apenas o seu preterimento justificado frente ao outro princípio. Este preterimento justificado ocorrerá, exclusivamente, no caso concreto. Fora do caso a ser analisado os princípios mantém cada qual o seu valor e podem ser invocados a qualquer momento por qualquer do povo.

            A preterição de um princípio em relação a outro tem como fulcro a "regra da ponderação" onde o preterimento de um princípio em relação a outro só se justifica quando o grau de importância de satisfação do princípio oposto é maior.

            Segundo Robert ALEXY cuanto mayor es el grado de la no satisfación o de afectación de um princípio, tanto mayor tiene de ser la importância da la satisfación del outro (52).

            Ainda em referência aos princípios, com extrema propriedade afirma Letizia GIANFORMAGIO que i principí non sono mai tra loro incompatibili: sono sempre tra loro concorrenti (53) e isto explica de forma clara a necessidade do preterimento de alguns princípios em relação a outros.

            Desta forma quando se verifica a existência de colisão entre os direitos do nascituro de manter a sua existência, de ter um futuro que somente teria interferência das ações oriundas da própria natureza de forma independente da ação humana e os direitos da gestante relacionados à sua autonomia, deverá o julgador ter em conta as teorias dos princípios pois ambos os direitos aqui pleiteados têm o respaldo da Constituição Federal.

            Verifica-se que isolados os direitos acima citados não são conflitantes. Ao ver deste acadêmico são, pelo contrário, dependentes uma vez que torna-se impossível falar-se em direito à autonomia, direito ao próprio corpo, rigth of privacy, quando o postulante a tais direitos não é provido de vida. Deste modo, o direito á vida, como posto pela doutrina vigente, é anterior a quaisquer outros direitos fundamentais que, por sua vez, são decorrentes daquele.

            Não se quer afirmar que pela sua primogenitude deverá prevalecer o direito à vida sobre qualquer outro direito. Quer-se, sim, que, ao interpretar a norma (regra ou princípio) o julgador tenha para si que a mesma dignidade existente e determinada pelo artigo 1°. III da Constituição Federal para a gestante, também existe para o nascituro. Que ambos têm esse direito pois ambos são seres humanos e vivos (embora separados por uma barreira) constituídos por células diferenciadas em cujos núcleos encontramos 46 (quarenta e seis) cromossomas.

            Ao se aceitar a idéia de que as barreiras modificam os seres da mesma espécie estaríamos aceitando a teoria de Adolf HITLLER que, na Segunda Grande Guerra Mundial, mantinha isolados em campos de concentração milhares de judeus para, a seguir, encaminha-los às câmaras de gás culminando com maior holocausto até o momento conhecido pelo hommo sapiens.

            A partir das considerações acima, será possível discorrer sobre o tema central do presente trabalho, que versa sobre a Interrupção Voluntária da Gravidez, vulgarmente conhecida como aborto, que será objeto de estudo do próximo título.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COLETTI, Luigino. Interrupção voluntária da gestação:: abortamento voluntário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 62, 1 fev. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3781. Acesso em: 18 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos